Juvenal de Holanda Vasconcelos

Em 2004, às vésperas de completar 60 anos, o percussionista Naná Vasconcelos se preparava para representar o Brasil nos XXVII Jogos Olímpicos, que seriam realizados em Atenas, Grécia. Ele estava a mil, para variar, e me concedeu uma entrevista maravilhosa – a mil significa falando com o corpo todo, interpretando os fatos com gestos, recriando situações, sem uma ordem cronológica, tudo a mil. Espiritualmente a mil. Afinal, era de manhã. O fato é que a revista que eu escrevia não publicou a matéria por idiotice e as Olimpíadas contaram com a ausência de Naná por uma série de fatores. Dane-se. Os jogos ocorreram, Naná fez sessentinha, e eu guardei a fita da entrevista. Naná estava particularmente inspirado. Conta coisas incríveis, que poucos sabem. Que é filho de branco; que o celebrado Dança das Cabeças foi feito sem querer.

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Nana é capaz de tiradas mágicas tipo: “Eu quero morrer jovem. O mais tarde possível, mas sempre jovem”. Ou “Meu berimbau é igual a todos os outros. Eletrônico sou eu”. E de tecer conceitos mais elaborados do tipo: “Vivo cheio de coisas assim totalmente opostas, diferentes, que é o que eu gosto mesmo. Eu sempre vivi, desde que vivi fora do Brasil, sempre assim, só que em um mundo de música improvisada. Um dia, eu tocava com o Pat Metheny, que era um grupo pop de jazz rock. Aí, depois ia tocar com o CoDoNa ou com o Egberto Gismonti, uma coisa orgânica, acústica, e seguia para a Escandinávia para tocar com o Jan Garbarek. Sua música é baseada no folclore norueguês, não tem ritmo, percussão e então eu tinha de compor o ritmo e manter a música norueguesa. Esses desafios assim, eu acho a maior escola do mundo. Aprendi muita coisa, até como utilizar o silêncio e fazer com que vire percussivo”.

Ou

“É muito bom essa coisa de tocar com músicos jovens. Adoro jogar cabeça com essa garotada. O primeiro disco do Cordel do Fogo Encantado fui eu que produzi. Gosto de me envolver com isso. O simples fato de eu ter saído do Brasil antes deles terem nascido já diz muito. Porque, apesar das minhas aventuras pelo mundo, nunca perdi minha identidade, porque nunca saí daqui, culturalmente. Morava fora, mas a base do meu trabalho está na raiz. E isso é um ponto muito importante para essa geração que está mexendo muito com computadores, com essas coisas.”

Sempre de um fôlego só.

Naná Vasconcelos, para quem não sabe, é um músico que saiu do Brasil no final dos anos 1960, em plena ditadura. Mas também em um momento em que grupos como o baiano, de Caetano e Gil, e o mineiro, de Milton Nascimento, começavam a mostrar a cara. Naná trabalhava com eles e, ao sair do Brasil, transformou-se na interface ambulante entre a sofisticação jazzística e o primitivismo da percussão. E como diz a piada, ele tocou com duas pessoas apenas: Deus e o mundo. Apertem os cintos.

Quem vai aos shows de Naná está acostumado a vê-lo alternar os sons produzidos por seus instrumentos com outros obtidos através da manipulação dos próprios, da voz, da percussão corporal e modificados pelos pedais de efeito acoplados ao microfone. Nem sempre foi assim que modificam o som. Nem sempre foi assim. Seu primeiro contato com a Drum Machine, a bateria eletrônica, ocorreu em 1984 e foi meio traumático. Naná havia deixado uma turnê de Pat Metheny, cansado de ser “artista convidado” e resolveu se envolver com breakdance. O hip hop varria o mundo e Naná contatou um cara do Bronx nova-iorquino, apresentou-se e marcou um dia para visitar uma turma de lá. Chegou com a sua “catrevage” – que era como sua mãe chamava aqueles instrumentos, ou seja, entulho, lixo de construção – e começou a tocar. Não deu três minutos e um menino de no máximo oito anos o interrompeu. “Stop! I don`t want that fucking jazz”, e virando-se para um outro, “Put the box on!”. Naná saiu arrasado, lágrimas nos olhos, não dormiu.

“Box é aquele radião deles. Fizeram a maior exibição. No dia seguinte, saí e comprei uma bateria eletrônica que programei com ritmos nossos, maracatu e xaxado. Voltei lá e disse: “Tenho um negócio aqui para vocês aí, e… bum!”. O mesmo garoto de oito anos veio pra mim e falou: “Hey man, you do have a break beat!. Continuei fazendo ritmos ao vivo. Mas para a pulsação, tinha a máquina agora. Tive que aprender a tocar com a máquina, porque ela não tocava comigo. Ela fica na dela. Isso abriu uma nova dimensão para mim. Comprei um harmonizer – recurso eletrônico que modifica sons, a voz, por exemplo – e excursionei pela Europa com esses mesmos meninos do Bronx. A experiência deu no disco Bush Dance (1986), que provocou uma confusão entre os críticos de jazz, porque na época eu estava sendo considerado o melhor percussionista, o melhor não sei o quê, e aí apareço com uma bateria eletrônica…”

Naná diz que se tornou uma pessoa flexível, porque toca com todo o tipo de músico, de música. Pare ele, tem a música boa e a boa música.

“A música boa é aquela que cansa, que toca tanto em qualquer rádio que enche. Agora, a boa música não. A boa música simplesmente existe. A música boa é imposta e vem vestida, como em um desfile de moda. Às vezes, vem fantasiada de axé, com um modelito techno ou um modelo brega. E é facinha, é boa, dá pra todo mundo. No Brasil, nós temos essa variedade, essa miscigenação racial que reflete nas artes, na música, que é essa coisa mais imediata, que é o momento, assim para todo lado que você vai, em diferentes direções musicais, tem dez superestrelas. Talvez no país de Julio Iglesias só tenha ele, porque só é um estilo. Aqui, já tem todos. Para onde se vai tem dez estrelas. Mas a música mais criativa que está acontecendo no Brasil, está acontecendo com os alternativos, os independentes, os que não têm contrato com gravadora. Aí é que está saindo uma coisa criativa, uma coisa ousada, uma coisa sem o compromisso de que a música tenha de ter três minutos. E é uma coisa criativa, interessante, que é a mistura dos jovens que entendem a eletrônica, porque a época é essa, mas ao mesmo tempo estão indo lá beijar o pé do mestre lá no morro. Sabendo quem foi que fez o maracatu, quem fez o bumba-meu-boi, aprendendo isso para poder misturar. Então, isso é interessante. Sem jabá… mas também sem contrato de gravadora”. (Isso em 2004.)

Naná esclarece que seu trabalho sempre foi assim. Lá fora, ele tem a ECM (gravadora escandinava, com base em Munique, fundada por Manfred Eicher em 1969), gravadora de Keith Jarret e Chick Corea em determinados momentos de sua carreira, onde Naná trabalhou com Egberto Gismonti, Pat Metheny, com o CoDoNa (trio completado por Colin Walcott e Don Cherry, ambos falecidos). Onde nenhum artista tem contrato. Terminou de gravar, terminou o contrato e é assim até hoje. O Manfred Eicher continua lá.

“O que está diferente é que quando a ECM apareceu, só tinha ela. Então, a Warner Bros. americana contratou a ECM para distribuir pensando: ‘Nós temos músicas de qualidade, prestígio’. Acontece que esse prestígio, essa qualidade, virou quantidade. Porque todo mundo ficou louco, começou a vender muito. Então, os americanos falaram: ‘Espera aí, isso está errado, vamos fazer a nossa ECM’. Aí, começaram a fazer selos new age. Aí, começou Windham Hill ou todos esses selos que eram uma cópia da ECM, e escantearam a ECM. Mas a ECM continua. Você não vê a mesma distribuição que tinha antes por isso, porque tem muitas imitações. E hoje em dia, você tem como fazer em casa”.

Foi na ECM que surgiu Dança Das Cabeças, gravado por Naná e Egberto, em 1976, premiado na Inglaterra como pop, nos Estados Unidos como folclórico e na Alemanha como erudito. Foi disco do ano pela Down Beat, revista especializada em jazz. Rendeu diversos outros prêmios e uma turnê mundial – que não passou pelo Brasil lógico.

Dança Das Cabeças foi um biboco (pipoco). Eu sempre fui muito orgulhoso de ter participado, de ter conhecido o Egberto, mas foi tudo coincidência. Eu morava em Paris e o Egberto passou lá para ir pegar um violão em um Luthier que ele mandou fazer, um violão de oito cordas, aquelas coisas do Egberto. Ele telefonou e eu disse: ‘Ô campeão, fica aqui em casa’. Ele estava indo para Oslo para gravar um disco com seu quarteto. Veja bem a situação. Acontece que na época, para sair do Brasil, qualquer brasileiro teria que depositar 20 mil cruzeiros, não sei o quê, o compulsório, e o governo não liberou para os músicos viajarem e eles não tinham esse dinheiro para depositar. E foi assim. Egberto telefonou para a gravadora e mencionou meu nome. Os caras já me conheciam e disseram: ‘e então, vem vocês dois’… E foi assim. Nós ensaiamos um pouco, gravamos, e saiu essa coisa. Os extremos. Duas pessoas de dois mundos diferentes, o músico extraordinário que ele é, um maestro, já era naquela época, e eu aquela coisa assim orgânica, vindo da rua, da cultura… falando de um Brasil… Eu acredito que até hoje o Brasil não conhece. Nós nunca tocamos no Brasil (recentemente o disco foi apresentado pelos dois em algumas capitais brasileiras). O disco vendeu umas 200, 300 mil cópias e vende até hoje. Nunca saiu de catálogo, isso é que bom da ECM. Meu disco Saudades (1979) ou Eventyr (1980), que fiz com Jan Garbarek, nunca saiu de catálogo. Os três discos do CoDoNa, o CoDoNa (1978), CoDoNa II (1980) e o CoDoNa III (1982), os três discos que eu fiz com Egberto, Dança das Cabeças (1976), Sol do meio-dia (1977) e Duas vozes (1984) até hoje nunca saíram de catálogo”.

Segundo Naná, o CoDoNa foi o pioneiro do que chamam hoje world music. Colin Walcott, americano branco que tocava sitar e guitarra, o “Co” do nome do grupo, foi roadie do Ravi Shankar, com quem aprendeu a tocar sitar. Quem lhe ensinou tabla foi o próprio Allah Rakah. Dá para acreditar? O Do era o trompetista Don Cherry, papai de duas estrelas, Eagle-Eye Cherry e a Neneh Cherry, negros suecos.

“Eles são irmãos da mesma mãe, o pai da Neneh é outro. Criados na Suíça, eles me têm como tio, viajavam junto, Eagle-eye com seis anos, a Neneh com sete. Viajávamos juntos como um grupo, o Organic Music Theater. Eram quatro Kombis, eu ia com o Don Cherry e a família, e o cachorro. E tinha um outro grupo, tinha um pintor, um cara de circo, um que engolia fogo. Chegava ao lugar, acampava, e o show era isso. As crianças sentadas lá. Eles estavam passando por uma fase religiosa, o budismo tibetano, que estava sendo muito propagado lá pela Escandinávia. Eu estava lá e tinha de ver, verificar qual era, aprendi muito. Depois, ia tocar com um grupo de muçulmanos, e já virava outra história. Eles perguntavam: ‘Qual é a tua religião?”. E eu dizia: ‘Contemporary voodoo‘, E eles: ‘O que é isso?’. E eu dizia: ‘É quando eu pego o berimbau para tocar’. Mas aprendi muita coisa. Tudo o que eu procurei ler, aprender até hoje serve para mim. Eu sou religioso, não no sentido de instituição religiosa, mas eu rezo muito e agradeço. Sou de família católica. É claro envolvida com candomblé. Minha mãe era negra, meu pai branco, descendente de português. A relação entre eu e a música está aí no meio”.

Sua relação com o berimbau é no mínimo rica. Não sabe o que faz, não aprendeu com ninguém. Na prática, Naná tirou o berimbau da capoeira e o colocou como instrumento solista acompanhado de uma orquestra.

“Hoje, eu posso explicar mais, mas na época eu me virei fazendo. Fui tocar berimbau pela primeira vez fora do Brasil porque tinha medo de tocar aqui. Estudava escondido, porque aqui tinha um negócio das tradições. Não se pode mexer com as tradições, não está certo. Então, ninguém nunca ousou tirar o berimbau da capoeira. Aí, eu tive de fazer lá fora primeiro, para depois chegar aqui e dizer: ‘Olha, fiz, gravei um concerto para berimbau’. E o teto não caiu. Mas para não dizer que eu estava certo, chegaram até a comentar assim: ‘Mas seu berimbau não é igual aos outros’. E eu respondia: ‘Rapaz, meu berimbau é igual. Eletrônico sou eu’. Só tenho este berimbau (e me mostra). Tem 36 anos, fui eu que fiz. Só tenho eu e ele aí pelo mundo. É o maior sucesso nos aeroportos por onde eu ia, aí pelo mundo, porque o pessoal nunca tinha visto e aí de repente… eu queria ter engolido uma câmera de filme, porque era impressionante a reação das pessoas. Era questão de cinco segundos. Mas se eu tivesse uma câmera aqui (na altura do peito) para filmar a pessoa. Eu estou aqui (berimbau a tiracolo). Aí, vou passar. ‘O que é que é isso aí?’, perguntavam. E eu: ‘É um instrumento’. E a pessoa já parava. ‘E serve para tocar assim’. Aí, eu pegava o berimbau e aí, quando fazia assim (faz ecoar com a varinha, rítmico, o som metálico da corda),.a pessoa já mudava. Repetia (modulando o som de grave para agudo, como um pedal de wah-wah, simplesmente aproximando e afastando a cabaça da barriga), eles olhavam incrédulos. Aí, fazia assim (esfrega a varinha na cabaça produzindo um ruído idêntico a uma fita magnética sendo tocada em velocidade alterada, com eco e muitos harmônicos), eles ficavam derrubados. O animal que tem um som absurdo assim também é o elefante, parece som eletrônico. Tem até um trompetista que diz: ‘Minha influência maior é o african elephant‘. Aí, depois disso eu passava pelo guichê do aeroporto e fazia: ‘Bye, bye’.”

Naná confessa que queria fazer com o berimbau o que Jimi Hendrix fez com a guitarra. Ele ouvia muito Jimi Hendrix e entendeu com o guitarrista que o instrumento não tem limitações. Ainda acredita que o que ele fez na época dele, até hoje ninguém superou com essa tecnologia toda. O percussionista acha seu percurso de descobertas tão maluco que daria um filme. A descoberta de coisas que sempre estiveram aí e ninguém viu. O berimbau, por exemplo.

“Porque o berimbau sempre foi tocado aqui (e manda ver um acompanhamento típico de jogos de capoeira), ritmo de capoeira. Aí, eu comecei a sair do ritmo de capoeira e comecei a fazer este ritmo (a mesma base, com batidas mais picadas, preenchendo os espaços). Estava tudo aqui, como era normal. Aí, depois, não sei por que, nem como, depois que fiz todo o negócio do ritmo, aí eu ‘entrei’ (começa a bater a varinha na corda, mas por dentro, explorando toda a extensão, modificando os timbres). Aí, a madeira disse: ‘E eu?’ (bate na madeira do arco). E agora? Agora, tenho de tocar nas duas juntas (e manda um xaxado, alternando batidas no arco e na corda, mais ritmado, dividindo os espaços). Entendeu? E a necessidade que eu estava das guitarras (faz vários sons). E aí, teve a necessidade de (respira e move a cabaça junto ao corpo) de respirar. E aí, depois ele (o berimbau) falou para mim: ‘Rapaz, o negócio está interessante. Mas e aqui?’ (referindo-se à cabaça). Aí sim, aí eu fui para este assim (esfrega a vareta na cabaça retirando sons nitidamente eletrônicos). Um dia, eu estava sentado no meio do mato, porque eu ia lá para o meio do mato, para a roça, um dia apareceu o índio. E aí, ficaram os dois conversando (o berimbau e o ‘índio’), e eu já comecei a agregar a voz (do eco à respiração, o assobio, até chegar a emitir notas super rápidas). Agora, ele disse para mim (o índio), que todos aqueles sons estavam no berimbau. Aí, eu tive de estudar uns três meses. Não era velocidade. Uma vez eu fui até (e chega até ao assobio) e falei ‘Opa, calma aí!’, me assustei, dá medo. Mas tem muita coisa aí nesse mundo das artes. O número de berimbau lá fora parece número de circo, para quem nunca viu.”

Sobre a execução musical, propriamente dita, Naná segue a composição estabelecida, mas toca o que sente. Faz isso mesmo quando à frente de uma orquestra, “para não ficar parecendo uma gravação”, explica. Mas ele faz questão de frisar que é capaz também de tocar exatamente a composição. “Em disco, se tiver de tocar dez vezes a mesma coisa, dez berimbaus em uníssono, eu toco.” Ao vivo, com orquestra, não quer ter esse comportamento, como se estivesse lendo. Fica livre, combinando com o maestro uma deixa para a orquestra entrar. Durante a composição, entra e sai, mas respeitando a composição.

“Eu estou um fazendo um negócio (entra em um tema complicado), aí dou a deixa (desacelera com toques pontuados). Aí, começa a entrar a orquestra. Porque eu acho que o músico quando toca tem de procurar dizer alguma coisa e não explicar. Ninguém perguntou nada! O que explica é aquele cara que enche o palco de instrumento e fica preocupado em mostrar para você que ele toca rápido e alto. E música não é isso. Mas tem aquela coisa assim de esperar a música. Porque tocar o que você já sabe, você já sabe. Agora, tocar o que você não sabe é ousar. O músico improvisador tem essa coisa. Eu estudo muito as bases. Ponto de referência. Porque assim eu nunca me perco. Porque eu saio e de repente ‘e agora?’, volto para a base que está lá, automaticamente. Então, essa é uma forma que eu mostro quando eu faço meus workshops explicando. Você tem de ter a base sólida. Porque aí você pode se dar a liberdade de sair e voltar, é tão simples, tão automático. Um negócio totalmente livre. Cada vez que eu toco, é cada vez. Quando eu toco sozinho. Quando eu toco com orquestra, eu só tenho de combinar com o maestro as deixas.


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