La mariposa de lindos colores

Em Cuba, mariposa é um pássaro pequeno e canoro, desses que enchem a tarde com seu canto e suas cores. Tico-tico no fubá dos cubanos. Mariposa é também o nome de uma canção de Ernesto Lecuona, talvez o grande maestro daquele país: Mariposa de lindos colores / que en mi patio cantas al atardecer… Pois o Brasil também tem sua mariposa. Nasceu no interior do Rio de Janeiro e migrou para São Paulo. Hoje, espalha seu canto por aí. Seu nome é Marina de la Riva.

Marina não gosta de falar de política. Mas fala. Resiste a conversar sobre sua família com medo de se desnudar. Mas conversa. Está sempre atenta – nas entrevistas, nos ensaios, na produção dos shows – e cuida para que tudo saia do seu jeito. Mas é nos gestos espontâneos, no riso sincero, na piscadela encabulada de quem acaba de ser surpreendida com o dedo enfiado no doce de leite que ela revela sua porção mais encantadora.
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Há uma explicação para isso. Os gestos de Marina, essa moça que mistura samba e rumba com a habilidade de um boticário a manusear poções, são feitos de colcheias e semicolcheias. O piscar de olhos marca o ritmo. Sua prosa é pura harmonia. E o riso – ah, o riso… – o riso é melodia que prende na cabeça e não larga nunca mais.

Marina canta porque o canto está em tudo o que faz. Para cantar, abdicou do bacharelado em Direito logo depois de formada. Para cantar, deixou para trás a usina de açúcar onde passou a infância. Ou melhor, levou cada pedacinho da usina para dentro do estúdio e, com mãos de fada, transformou saudade em canções. Para cantar, lapidou o primeiro álbum durante três anos, escolhendo repertório, fazendo arranjos, escutando centenas de vezes cada faixa e fazendo dezenas de modificações até ficar satisfeita.

Marina canta com a mesma intenção que tinha o poeta cubano José Martí ao escrever. Yo sacaré lo que en el pecho tengo (“Arrancarei o que tenho no peito”), ela cita no texto de apresentação do CD, lançado em junho. “Sempre fui apaixonada por música”, diz. “Meu sonho não era ser cantora, mas viver embrulhada em música, imersa em música, ser música.” Se pudesse, Marina de la Riva construiria com música as paredes da sua casa.

Na verdade, as paredes de sua casa, no bairro do Morumbi, em São Paulo, não são feitas de música. Nem os quadros que pinta e as orquídeas que cultiva. Mas houve um tempo em que a música foi seu principal alimento. “Minha mãe dava dinheiro para o lanche e eu guardava para comprar discos. Quantas vezes eu não morri de fome na aula de Matemática…”, lembra, faceira. O ronco do estômago anunciava mais um vinil na prateleira. E o bolachão podia ser de qualquer estilo. “Em casa, não havia música cubana, música brasileira, música russa ou espanhola. Era tudo música.

O Trio Matamoros era vizinho da Maysa e Tchaikovsky vivia ao lado dos Scorpions.”

Esse amálgama de estilos definiu sua formação musical. Brasil e Cuba se entrelaçam sob lençóis para formar o set list de seus shows da mesma maneira que os dois países trocaram alianças para conceber Marina de la Riva, 35 anos atrás. Fernando, seu pai, era um rapazote quando trocou Havana por Miami no agitado réveillon de 1959, a noite da revolução. Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos marchavam triunfantes por las calles enquanto Fernando acompanhava o pai, a mãe e a irmã aos States, em busca da liberdade.

“Meu avô, também chamado Fernando, era pobre e se tornou o segundo homem mais importante economicamente de Cuba”, ela conta. “Acabou asilado na Flórida com uma mão na frente e a outra atrás.” Um ano depois, bons contatos permitiram que o avô de Marina arrendasse terras e, com o apoio de Henry Ford, construísse uma nova usina.

Na época da primeira colheita, no entanto, São Pedro pregou-lhe uma peça e toda a safra foi perdida. Devendo os tubos, o avô vendeu a usina para preservar a honra. Viúvo, seguiu para o Brasil com os dois filhos, onde estabeleceu sociedade com um grupo paulista para tocar uma pequena usina em Baixa Grande da Leopoldina, distrito de Campos dos Goytacazes, no interior fluminense. Era 1964 e o usineiro estava pronto para recomeçar. “Meu avô era a representação humana da Fênix, que sempre ressurge das cinzas”, diz ela.

A mãe de Marina, Margarida, entrou na história pouco depois. Mineira de Araguari, Margarida morava no Rio com a mãe, também viúva, quando conheceu Fernando, jovem cubano filho de usineiro. Apaixonada, largou tudo e se mudou para a roça. Foi assim que a vitrola dos Riva passou a jorrar diversidade. Dali brotavam boleros e sambas-canções, ópera e bossa-nova. O pai cantava. A mãe tocava piano.

“No trajeto de carro entre a fazenda e a escola, em Campos dos Goytacazes, eram 35 quilômetros de música”, a mariposa conta. Ouvia-se. Contemplava-se. Aprendia-se. Fernando, o pai de Marina, era o professor: esta ária é da ópera tal, composta em tal ano por tal pessoa. Marina absorvia tudo como abelha refestelando-se de flor em flor. “É como se eu fosse uma esponja encharcada de tanta influência”, ela compara.

Eclética desde niña, Marina vivia agarrada a um disco de Rachmaninoff que tinha a foto de uma cachoeira na capa. “Era o disco da cachoeira”, conta. Adorava a “Rapsódia sobre um Tema de Paganini”. Aos 9 anos, pediu ao avô que lhe desse de presente uma viagem a São Paulo para que ela pudesse ver um show do Frank Sinatra. E mais: queria se hospedar no mesmo hotel que ele, o Maksoud Plaza, em cujo teatro se deu a apresentação, a última de Sinatra no Brasil.

O abuelo bancou o mimo e, no meio da apresentação, Marina deixou sua mesa, driblou os seguranças e, com uma flor na mão, acomodou-se em um degrau à beira do palco. Blue Eyes notou a menina e fez um gesto para que ela subisse. Marina lhe deu a flor. Em troca, ganhou um beijo e um lenço. Inolvidable. Aos 13, foi ao Rock in Rio e quase teve um troço quando o Queen subiu ao palco e a multidão, de braços erguidos, entoou em coro: We are the champions, my friend…

Até descobrir que a música poderia ser sua profissão, Marina dedicou-se à pecuária. Aos 17 anos, inaugurou uma criação de búfalos em Baixa Grande. Fazia inseminação artificial nos animais e abriu um restaurante especializado em carne de búfalo em Campos. Aos 21, casada, mudou-se para São Paulo. A bubalinocultura perdeu uma militante. Nós ganhamos La Riva.

Marina estudou canto lírico, foi vocalista de um grupo de rock e integrou a banda Alta Fidelidade, de São Paulo, que mistura jazz com eletrônica. Já soube de cor todo o repertório de Julie London. Tateando, acabou descobrindo a singela combinação sonora que a levaria à carreira-solo – e que, de certa forma, a conduziria de volta à sala da fazenda onde o pai degustava charutos e ela ouvia o “disco da cachoeira”.

Para definir o repertório, Marina foi além daquilo que ouvia em casa e pesquisou muito. Acabou achando coisas de Cuba que o pai desconhecia. E não teve medo de misturar estilos, mudar andamentos e servir em baixela de prata seu arroz com mango, saboroso mix de ritmos que lhe é tão peculiar. Chegou a discutir com o pai, “um purista”, em razão de certos sacrilégios sonoros que ela supostamente cometeu em suas fusões.

A maioria das canções remonta à primeira metade do século 20. São músicas em preto e branco (algumas em sépia) como “Ta-hí”, pérola de Joubert de Carvalho imortalizada por Carmen Miranda, o samba-de-roda “Sonho meu”, de Yvonne Lara, o acalanto “Drume Negrita”, que rodou o mundo na voz de Bola de Nieve, e, fechando o CD, a melancólica canção de Silvio Rodríguez “Te Amaré y Después”.

Gravação em Havana
Trompete, piano e contrabaixo deixam Marina à vontade para flutuar entre Brasil e Cuba, dois cenários que lhe são tão conhecidos. Fisicamente, no entanto, Marina pisou na Ilha pela primeira vez para gravar o disco. “Passei um mês em Havana trabalhando sem parar. Não tomei um mojito sequer”, lamenta. “É pena que a maioria das pessoas resuma Cuba a política. O que há de ritmos e cultura naquela ilha é impressionante.” O que era brasileiro foi gravado aqui; o que era cubano foi gravado lá.

Algumas faixas tiveram de se desdobrar para cumprir as exigências da moça. Em “Tin Tin Deo”, rumba de Chano Pozo, há citação de “Xote das Meninas”, de Zé Dantas e Luiz Gonzaga. Cajón, clave e conga foram gravados em Havana. Berimbau e pandeiro, no Rio. Músicos dos dois países dividem a cozinha e trocam receitas. No álbum, Davi Moraes toca violão e assina alguns arranjos. Chico Buarque pôs voz em “Ojos Malignos” e ajudou a transformar em samba o bolero de Juan Pichardo Cambier.

Marina de la Riva é lá e cá. Aerolineas tupi-caribeñas. Um avião que faz a rota Brasil-Cuba sem solavancos ou turbulência. Morando em São Paulo com o segundo marido e o filho Paulo de Tarso (um jovem baterista e aprendiz de mágico de 11 anos), ela transita entre dois hemisférios com a naturalidade de quem chama de “nossa música” tanto o que é brasileiro quanto o que é cubano. Buena Vista da Portela. Velha Guarda Social Club.

Para 2008, Marina prepara um DVD em parceria com Décio Matos Jr., diretor do documentário Fabricando Tom Zé, no qual a cena musical de Havana será o pano de fundo para suas imagens de estúdio e shows. Em apresentações pelo Brasil, às vezes divide o palco com um improvável Andreas Kisser, guitarrista do Sepultura. Rápida, já começou a preparar o próximo trabalho. Quer cantar Jorge Drexler. Hesita em incluir composições próprias. Sonha gravar algo inédito do Chico (aquele que dispensa sobrenome).

La Riva é assim. Raíz sin raíces. Ou llena delas. Um samba que mexe o corpo da gente, diria Yvonne Lara. Mariposa de lindos colores que en mi patio canta al atardecer.


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