Laerte de corpo inteiro

Arte para cato-postal. Foto divulgaço
Matemática não é o forte do cartunista Laerte. Ele já tentou somar quantos cartuns, tiras e histórias em quadrinhos fez em 40 anos de carreira, mas se perdeu na conta. Somente nos últimos 28 anos, criou ao menos uma tira por dia, o que dá mais de dez mil trabalhos. Outra dificuldade é preservar tantos originais. “Não guardo tantos, perdi muitos e tento manter alguns”, diz, com a intenção de fazer trocadilhos. “Nem em metros ou quilômetros consigo precisar”. Sergio Gomes, editor da Oboré, lembrou certa vez que, para cada ilustração ou cartum feito por ele para a imprensa sindical, no começo dos anos 1980, dez outros eram descartados. Muitos, Gomes guardou. O filho Rafael Coutinho, que seguiu o mesmo caminho no mundo dos quadrinhos, acredita que passa de cem mil ilustrações. “É assustador. A quantidade, porém, é menos importante que encontrar ouro no meio de tanta produção.”

No entanto, restou o suficiente para montar a mostra Ocupação Laerte, no Itaú Cultural. É a maior exposição de toda a carreira do artista. São 500 trabalhos, metade deles de originais. Um exemplo significativo para deleite dos fãs ou justificativa para os que o consideram o maior autor de quadrinhos do Brasil surgido nas últimas quatro décadas.

O evento foi dividido em fases: infância, juventude e sindicato, anos 1950 e 1960, tiras e personagens, histórias curtas e anos 1980. Tudo distribuído em um espaço marcado por caminhos labirínticos nada cronológicos. No primeiro bloco estão os desenhos que Laerte realizou até a adolescência, cuidadosamente guardados por sua mãe.

Entre esboços e desenhos originais, muitos inéditos, o autor é revelado por vários ângulos: da resistência à ditadura militar à participação na redemocratização do País na década de 1980. Passa ainda pelo apoio à causa sindical. A curadoria oficial é de Rafael, mas Carol Carvalho, mulher e assistente do amigo Angeli, também participou da seleção, feita em sua casa. A colaboração, segundo Laerte, foi importante para dar forma ao evento, pois ela já tinha feito a Ocupação Angeli. “Eu dei alguns palpites. Rafael escolheu algumas coisas que não considerava representativas, mas ele argumentou bem e me convenceu do contrário”, diz Laerte. O filho pondera: “Meu pai é um artista com senso crítico muito forte do próprio trabalho, com modéstia excessiva e perde a perspectiva sobre a importância de algumas obras”. O projeto expográfico é do cenógrafo Fred Teixeira.

Rever tanta coisa não permitiu ao artista concluir que período considera mais representativo de sua obra. Rafael conta que seguiu um critério diferente da mostra feita no ano passado no Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, de proporção menor. “Queria achar um formato que fosse resultado dessa intimidade que tive com toda a produção dele.” O curador concluiu que só conhecia um terço da produção do pai. Para ajudar na pesquisa, o Itaú colocou uma equipe em busca de coisas raras. “Desde os trabalhos iniciais a gente percebe misturas de linguagens e experimentos que o acompanhariam por toda carreira, além de personagens que ele retoma em diferentes épocas, em um claro propósito de reformular ideias.”
Ao contrário do que muitos fãs e críticos de quadrinhos acreditam, Laerte não tem saudosismo da década de 1980, quando se consagrou como artista gráfico. “Não existe uma fase melhor, gosto e desgosto de todas. Adorei a época dos quadrinhos da Circo, muito rico, que acrescentou bastante em minha carreira, e gostei de ter vivido. Mas vejo tudo como recordações apenas de algo acabado”, diz Laerte. E quanto a sua contribuição aos quadrinhos? “Esse é um assunto delicado, não tenho resposta clara e óbvia e vem sempre um sentimento dúplice de crítica e de orgulho.” Lembra que eventos desse porte dão a sensação de que o artista morreu, pois se trata de uma retrospectiva e, ao mesmo tempo, homenagem. “Depois de trabalhar tanto tempo, existe implícito o tom de levantamento de uma vida, de uma pessoa que existiu e terminou de existir” (risos).

Enfim, conclui, bem-humorado, que a Ocupação Laerte tem algo de neurótico. Tanto que, no primeiro momento, não pensou em fazer uma mostra tão extensa, mas cedeu aos apelos de Rafael. A exposição cobre sua produção mais recente, quando foi muito criticado por criar quadrinhos experimentais em excesso para a Folha de S. Paulo. “Não deixei o formato da tira me aprisionar. Ao contrário, usei o espaço para me expressar sem a narrativa tradicional, até sem narrativa alguma, apenas com a construção poética. Tenho feito experiências nem sempre compreendidas até por eu mesmo.” Ele explica que a criação vai “rolando”, deixa tudo “solto” necessariamente. E que parou de criar personagens fixos “porque as regrinhas estavam me incomodando”. E regras Laerte subverte faz tempo.


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