Lágrimas de sangue

Pargo, faca e acrilex, por Hélio Campos Mello

Faz 25 anos. Anos 1980. Lembro-me do Rock in Rio, dos shows no morro da Urca, do Parque Lage, Circo Voador… Outra fase de “sexo, drogas e rock and roll”. Era a emoção de gozar fora. Nessa época, falava-se na cápsula, que começou a envolver o meu palitinho. Palestras sobre Aids na escola… Overnight…

Shimbashi. Bairro ao lado de Ginza. Percorria entre as ruas estreitas os 10 km diários rumo ao aprendizado. Sempre por caminhos diferentes. Cada detalhe ia direto ao inconsciente. Lembro-me de que não havia chuveiro no ryo – dormitório para aprendiz – e o banho era sempre no sentô. Estilo tradicional. Entre gente tatuada, putas e muitos cozinheiros.

Todos entravam às nove. Mas não dava tempo de almoçar com os mestres, entrando no mesmo horário. Fui me dando conta de que precisava começar o aprendizado às seis… Preparando a área de cada mestre. Quatro com o senhor Masao Takagi, chef proprietário, que se encaixava em qualquer posição.  Eu dava apoio a todos, ficava no final do balcão, ao lado da cozinha. Só havia duas bocas de fogão, geladeira de quatro portas… Espaço de três por três.

Recebíamos praticamente tudo vivo. Uma vez, quando eu ainda não sabia da logística da entrega dos peixes, que vinham embrulhados em um papel especial protegido por um plástico, começou a se mexer um polvo que queria dominar a cozinha. Andava como gente grande. O kuruma ebi – camarão mais firme que, quando toca na língua da gente é como uma pérola feminina – vinha dormindo na serragem. Lembro-me do tai – pargo – e do linguado hirame debatendo-se na tábua de corte. Cada dia era um susto diferente. Não podia estressá-los. Os fãs do Ozushi – templo onde iniciei meu aprendizado, inaugurado no final da era Meiji – iam perceber quando colocassem na boca.

Depois de libertar da jaula de papel o que chegou do mar para nos alimentar, preparava o dashi – caldo base que faz a comunicação entre o cozinheiro e a natureza – com concentração na temperatura e na sua delicada cor, como uma chuva dourada.

A solidão do outro lado do mundo com os habitantes do mar morrendo na minha frente, em cima da área de corte. No silêncio, alguns ainda gemiam. Dor? Alegria? Eles esperavam os mestres chegarem. Mas se eu soubesse manejar a faca, poderia minimizar a dor deles – e a minha.

Libertei a água que tocou o arroz. Senti no toque como ela estava com sede, ficava ao lado da panela de ferro donabe até ela ficar pronta. Saudade, mamãe. Misturava o vinagre e abanava para o shari (arroz do sushi) mostrar o seu brilho. Próximo passo: tirar da concha os akagai, hokkigai, mirugai, awabi, torigai… – variações de mariscos japoneses, saborosos e sensuais.

Com uma pegada firme, segurei no deba – faca grossa e pesada de 21 cm – para desossar o peixe com o objetivo: tirar a carne do pargo, mantendo ele vivo. Respirei. Prendi a cabeça e com a outra mão, com os dedos esticados, apoiava o corpo. Se continuasse a se debater, estragaria sua delicada carne. Ele era muito forte. Tinha 1,5 kg. Enfiei com vontade a lâmina entre a nadadeira lateral e o corpo. Escorria sangue no manaita – tábua de corte. Corte profundo. A lâmina tocava no final do dedão esquerdo, misturando o nosso sangue. Mesmo com a minha dor, ele morreu… Lágrimas e sangue. Até hoje contemplo com gratidão as minhas cicatrizes, principalmente essa da mão esquerda. Sem dor não há aprendizado!

* Kappo Cuisine é o conceito que Tsuyoshi Murakami trouxe ao Brasil e tem como base a transparência, o cozinhar em frente ao cliente e o uso de alimentos sazonais. Murakami é sócio e chef do restaurante Kinoshita, em São Paulo. murakami@restaurantekinoshita.com.br


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