Dona Sônia tem 57 anos e duas filhas casadas. É viúva há três. Vive em um belo apartamento em Perdizes e, desde que o marido se foi, tem a companhia de um Shitzu que ganhou das filhas. Ela nunca disse nada, mas o Shitzu é melhor companhia que o finado. Ele bebia demais. Chegava alto, jantava e ia dormir. O Shitzu não. Desde cedo está a seu lado. E assim, por todo o dia. Sempre em paz. No quarto, na cozinha e na sala, ao longo de todas as novelas.
Curiosamente, os cães de caça caçam, e os de guarda guardam, mas o cão de companhia precisa de companhia. Sair, para os donos desses cães, é um problema. Ela raramente saía, mas quando saía deixava o cachorrinho na cozinha e o bicho, como diziam as filhas, fazia merda. Ela achava horrível esse jeito de falar. Um dia, quando saiu, ela deixou a TV da cozinha ligada. O cachorrinho não fez lambança. Ela contou a descoberta para as filhas.
A mais velha disse que o cachorro era burro, ouvia a TV e pensava ter companhia. A menor defendeu o cachorro e logo foi buscar um ranking de inteligência de cachorro. Deu-se mal, o bicho estava em septuagésimo quarto lugar. Bem abaixo de bulldog, dinamarquês e outros broncos. A mais velha, sempre superior, disse: É o que digo. A mãe disse: Não encrenquem meninas, isso não importa.
Na fria noite de 15 de junho de 2008, Dona Sônia, já de camisola, assistia à novela, quando caiu a força. Ela esperou olhando pela janela, viu que tinha sido no bairro todo. Tentou falar com a portaria. Nada. Viu que o elevador também estava apagado. Ficou ali sem assunto e por fim resolveu descer para a portaria. Não desceria com o Shitzu no escuro. Prendeu o bicho no lavabo.
Desceu bem devagar e encontrou o Severino na portaria. Todo abrigado em um casacão azul escuro, iluminado por três velas. Parecia um almirante. No princípio, ela assustou, depois lembrou que gostava da luz de velas. Há quantos anos não falava à luz de velas? O Severino disse que tinha tentado saber o que acontecera, mas quando cai assim no bairro, demora. Ela já havia notado que, à luz de velas, as pessoas falam mais baixo.
Muito frio, Severino? Ela deu corda. Ele sorridente disse que a mulher do quinto tinha dado um tapetinho para ele não ficar com o pé na pedra. Estava bem. Ela fez mais umas perguntinhas e ele foi respondendo. Repassaram a vida dos moradores enquanto a força não vinha. A certa altura, o Severino disse: Vou contar uma coisa para senhora. Ela disse: Diga lá, Severino. Ele contou que o doutor Barbosa tinha trazido para ele uma pinga do sítio dele, em Bragança. Desce que é uma seda, boa pro frio. Ela não sabia o que dizer e sorriu em silêncio. Ele arriscou: A senhora quer experimentar?
Ela tinha motivos de sobra para não aceitar aquela pinga. Mas, não se sabe por que, ela disse: Quero sim Severino, muito obrigada. Ele, orgulhoso, serviu um martelinho. Ela foi bebericando e disse: Não é que desceu bem, Severino. Ele ficou surpreso, encantado. Relutante, tomou ele um martelinho. E, mais relutante ainda, ofereceu outro para ela. Misteriosamente, ela aceitou. E assim foram, à luz de velas, evoluindo para as coisas do espírito, os assuntos pessoais e, então, intimidades. Tomaram outros martelinhos e, não tardou muito, se atracaram. Ali mesmo. Atrás do balcão, em cima do tapetinho.
As filhas, que não haviam conseguido falar com a mãe ao telefone, preocupadas, vieram ver o que se passava. E viram. Atrás do balcão, em cima do tapetinho. Foi um perereco dos grandes. Gritos e muito choro. Por fim, tudo se acalmou. Subiram as escadas.
A mais velha agradava a mãe adormecida no sofá quando a menor, que limpava a lambança do Shitzu, disse: Sem TV, a mamãe também faz merda. A mais velha escutou aquilo, pensou e não disse nada.
Com aquele silêncio, encerrou-se o canhestro episódio. Para elas, não para o Severino, que foi despedido no dia seguinte. Mas, isso não vem ao caso.
*Engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP. Dedica-se também à literatura.
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