Quando Corisco foi subjugado pela força policial do estado, montada para acabar com o poder paralelo exercido pelos cangaceiros no sertão nordestino, um dos movimentos mais emblemáticos da história chegou ao fim. O golpe fatal havia sido dado dois anos antes, quando o bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, tombou perante a volante de João Bezerra, em 28 de julho de 1938. O épico protagonizado por cangaceiros, coronéis e volantes, no entanto, sobreviveu no imaginário popular, exercendo fascínio nas décadas seguintes. Os feitos de seus personagens foram cantados por repentistas, narrados nos versos do cordel, revelados no cinema e imortalizados em extensa bibliografia. Agora, a saga é contada por meio de registros fotográficos da época em Iconografia do Cangaço.
Organizadas por Ricardo Albuquerque, as imagens fazem parte do acervo mantido pelo Instituto Chico Albuquerque, um dos mais completos sobre o cangaço nordestino. Foram tiradas por fotógrafos profissionais, viajantes e, principalmente, por Benjamin Abrahão (1890-1938), que passou duas temporadas com Lampião, Maria Bonita e seu grupo.
Mítico desde o berço, o advento do cangaço surge no Nordeste por volta do século 18. Eterna evidência de nossa histórica chaga social, naqueles tempos a região era verdadeira terra de ninguém: quem podia mandava e quem queria viver obedecia. A regra era seguida à risca pelos coronéis que dominavam sob a lei das armas. Castigado pela seca, maltratado pela fome e massacrado pela violência, o sertanejo via com fascínio os que se armavam e se embrenhavam pelo sertão, assumindo as rédeas de seu destino, abraçados à vida nômade cujo código de sobrevivência baseava-se no banditismo. Assim, os bandoleiros despertavam sentimentos antagônicos de medo e admiração.
Foi justamente pela narrativa popular que o cangaço difundiu sua história. Os feitos de Antonio Silvino, ou Rifle de Ouro, também famoso como “o terror da Great Western”, empresa que implantava o sistema ferroviário na Paraíba, se espalhavam de boca em boca entre o povo local, chegando a todos os cantos do País por viajantes que ouviam e recontavam. No início do século 20, a mitologia dos anti-heróis do sertão já possuía uma galeria de notáveis e, por mais macho que fosse, qualquer um tremia só de ouvir os nomes de José Gomes (Cabeleira), Lucas Evangelista (Lucas da Feira), Adolfo Meia-Noite e Sinhô Pereira. Mas foi na figura de Lampião que o movimento manteve viva sua memória. Fosse escrita por um roteirista, a epopeia do rei do cangaço não seria tão cinematográfica. Começa com uma desavença entre duas famílias: Ferreira e Nogueira. A fagulha foi acesa quando João Caboclo, que vivia na fazenda de José Saturnino, da família Nogueira, roubou bodes dos Ferreira. Saturnino saiu em defesa de seu empregado, recusando-se a entregá-lo para o castigo. Estava declarada a guerra. Nessa peleja, a família de Virgulino levou a pior, acabando expulsa de suas terras.
Mas a coisa não tinha acabado e pegou fogo quando uma volante, sob o comando do sargento José Lucena, filho de Saturnino, assassinou o patriarca dos Ferreira. Reza a lenda que em frente ao túmulo do pai, Virgulino teria dito “a partir de hoje, minha casa é meu chapéu”, prometendo não descansar até que o sangue fosse pago com sangue – anos depois, o mesmo José Lucena seria o superior direto de João Bezerra, chefe da volante que selou o destino do cangaceiro na batalha.
Como recrutas no bando de Sinhô Pereira, os irmãos Ferreira caíram na clandestinidade. Anos depois, a pedido de Padre Cícero, Pereira abandonaria o cangaço, passando o comando de seu bando ao seu homem de confiança: Lampião. Nascia assim a lenda do rei do cangaço.
Os caminhos de Lampião e Benjamin Abraão, então secretário particular de padre Cícero, teriam se cruzado pela primeira vez em Juazeiro, quando o beato convocou os cangaceiros para combater a “ameaça” comunista, representada pela Coluna Prestes. É também quando o bandoleiro ganha o título de capitão, que ostentaria com orgulho a partir daí. Frágil, a trégua entre foras da lei e o Estado não vingou, e o acordo foi rompido. Mas deu tempo para que o libanês ganhasse a confiança do já famoso líder do bando. A ideia de registrar o cotidiano dos cangaceiros teria sido de Adhemar Albuquerque, dono da Aba Filmes e avô do organizador de Iconografia do Cangaço, que emprestou e ensinou ao libanês como utilizar o equipamento. É fruto das duas aventuras dele – na primeira, devido à inexperiência de Abrahão, muitos dos filmes teriam sido queimados –, grande parte das imagens que compõem a obra. Além das fotos, o libanês também filmou os cangaceiros nos acampamentos montados em meio à caatinga que, décadas mais tarde, iria inspirar o roteiro de O Baile Perfumado.
Lampião enxergava na fotografia e no cinema instrumentos para propagandear seu poder e espalhar sua fama. Assim, ele concedeu entrevistas, posou para fotografias e, juntamente com seu bando, deixou-se filmar em uma afronta direta ao poder constituído. Muitos historiadores colocam tamanha exposição entre os motivos de sua queda. As imagens de foras da lei gozando livremente da desobediência civil em pleno Estado Novo eram muita ousadia. Getulio Vargas tomou como ponto de honra acabar com o cangaço. Autorizou a criação de uma espécie de força-tarefa, formada por sertanejos com conhecimento da região, o mesmo biótipo e vestimenta dos cangaceiros, confundindo os que protegiam. Ao contrário dos antigos “pés de barro” – como os bandoleiros chamavam seus antigos perseguidores, inexperientes na guerrilha do sertão –, esses tinham o mesmo conhecimento que seus alvos sobre o campo de batalha, estavam em maior número e melhor armados, virando rapidamente o jogo. Acabar com os cangaceiros, no entanto, não bastava. Era preciso humilhá-los. Por isso, as cabeças cortadas e expostas como troféus das fotos que ilustram o último capítulo do livro.
Lampião não queria ser herói. Embora gostasse dos artigos de jornais que muitas vezes o comparavam a Robin Hood, confessava ter “um bicho por dentro” para explicar seus atos de violência. Se é possível explicar o fascínio que ainda personagens como os cangaceiros nordestinos despertam, talvez seja que, em tempos de heróis forjados ao gosto do público para sustentar democracias frágeis, é sempre preferível ficar com os anti-heróis. Ricamente ilustrado, Iconografia do Cangaço chega como item precioso sobre um período fascinante da nossa história.
O REI DO CANGAÇO GAY?
Uma contenda digna de um bom libreto de cordel, envolvendo a publicação de uma nova biografia e a família de Virgulino Ferreira da Silva, prova que Lampião ainda gera polêmica. O mote seria Lampião Mata Sete, de Pedro Morais, que defende a tese de que o rei do cangaço era gay. O livro teve seu lançamento suspenso devido a uma liminar expedida pelo juiz Aldo Albuquerque, da 7a Vara Cível de Aracaju, depois de uma ação movida pela filha de Lampião, Expedita Ferreira. O autor, também juiz aposentado, promete recorrer da decisão no Tribunal de Justiça de Sergipe (TJ-SE). Caso a Justiça insista em manter seu trabalho proibido, Pedro Morais diz que vai jogar os cerca de mil exemplares que lhe restam no Rio Sergipe. Ao que tudo indica a peleja ainda deve dar o que falar.
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