“O que vi aqui superou todas as minhas expectativas. Pareceu-me um mundo novo, e seu esplendor é imenso.”

Essas palavras foram anotadas pelo barão Georg Heinrich von Langsdorff em seu diário, no dia 21 de dezembro de 1803. Ele tinha 29 anos, era médico e fazia parte da tripulação do veleiro russo Nadjeda, em viagem de volta ao mundo. O lugar que o maravilhava era a ilha de Santa Catarina, onde o navio acabara de aportar. As palavras registravam, portanto, suas primeiras impressões do Brasil – e foram o ponto de partida de uma gigantesca aventura.
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“Acompanhados do capitão mor e do juiz da vila de Porto Feliz dirigimo-nos para o porto, onde já estava o vigário para abençoar a viagem, como é costume, acompanhado de um grande número de pessoas que vieram assistir a nosso embarque. Os amigos e parentes abraçavam-se, despediam-se uns dos outros. Tomamos os lugares nas canoas e romperam-se então da cidade salvas de mosquetes, que foram respondidas pelos nossos remadores. Ao som desses alegres estampidos deixamos as praias e a vila onde tive a felicidade de conhecer amigos, conviver com gente boa e afável, passar uma vida simples e tranquila.”

Diário de Hércules Florence, 22 de junho de 1826.

“Vamos percorrer um caminho nunca dantes percorrido. É como se estivéssemos diante de um véu escuro. Vamos abandonar o mundo civilizado para viver no meio de índios, tigres, onças, tapires, macacos e outros animais.”

Diário do barão Langsdorff, rio Tietê, 23 de junho de 1826.

“Quando a gente se banha em lugar de poucas piranhas o perigo é diminuto, mas mesmo assim é preciso cobrir com as mãos as partes pudendas, porque por ali é que elas atacam. O senhor barão foi mordido, sem contudo sofrer grande mal, porque pulou fora da água. O peixe não se despegou senão alguns instantes depois; correu sangue e cinco dentes ficaram bem marcados.”

Diário de Hércules Florence, rio Taquari, Mato Grosso, 11 de dezembro de 1826.

“Adrien Taunay chegou à margem do Guaporé bem em frente à cidade. A trovoada roncava com força e a chuva caía a cântaros. Impacienta-se. Pula para a água. Atira-se à correnteza; chega ao meio do rio; perde as forças; luta; dá um grito; levanta um braço e, vítima da temeridade, desaparece. (…) De madrugada, vieram me avisar que o corpo foi encontrado. Corro; chego; vejo-o estendido na margem, mutilado pelos peixes. Lanço-me sobre ele. Poupai-me os pormenores.”

Carta do biólogo Luiz Riedel, Vila Bela, Mato Grosso, 8 de março de 1827, noticiando a morte do pintor Adrien Taunay a um seu parente

“Acabrunham-nos as enfermidades. Os mosquitos causam duros sofrimentos, não nos dando a menor trégua. Chove torrencialmente há dois dias, e até o que temos dentro das barracas está molhado. A caça e a pesca nada produzem, tornando a parada intolerável. Vimo-nos reduzidos a comer carne de macacos. Nesse lugar se manifestou a doença do senhor Langsdorff, com a perda de memória das coisas recentes e o completo transtorno das ideias, devido às febres intermitentes. Essa perturbação obrigou-nos a por termo à viagem, cujo plano era vastíssimo.”

Diário de Hércules Florence, 7 de maio de 1828, no Salto Augusto, rio Juruena.

“Com pesar, devo informar a Vossa Excelência que encontrei o senhor Langsdorff numa situação completamente miserável. Privado de todas suas capacidades mentais, ele age como uma criança, não pode ocupar-se de absolutamente nada e tampouco consegue conversar.”

Carta de Franz Borel, embaixador da Rússia no Rio de Janeiro, em novembro de 1829.

Nos 26 anos passados entre um momento de alumbramento e outro de alheamento, o barão Georg Heinrich von Langsdorff foi o responsável pela coleta da maior coleção brasileira até seu tempo. Somente a fração artística do tesouro que reuniu já é suficiente para extasiar – algo que pode ser confirmado facilmente em uma visita à exposição Expedição Langsdorff. A mostra terá lugar no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, até 25 de abril. Depois, seguirá para os CCBBs de Brasília e Rio de Janeiro.

Mas essa coleção de desenhos é apenas uma parte do grande mergulho no país que tragou o barão. Além da coleção de objetos, existe também uma saga monumental, uma história de paixão. Coleção e história começaram na própria ilha de Santa Catarina, no primeiro desembarque de 1803. Médico, muito interessado em zoologia, o barão aproveitou a parada para recolher peixes e insetos, além de fazer alguns desenhos de pessoas.

Esse material foi juntado a milhares de outras amostras e centenas de desenhos que foi fazendo ao longo da viagem, que duraria ainda quatro anos. Na volta para a Rússia, foi preciso ainda um tempo para tratar de todo o material e publicar trabalhos – e conseguir um modo de voltar ao ponto que mais o atraíra em todos aqueles que visitara no planeta.

Em 1813, o barão desembarcou no Rio de Janeiro, nomeado cônsul da Rússia junto à corte de Dom João VI. Em vez de se instalar apenas na cidade, comprou uma fazenda perto do porto de Estrela, no fundo da baía da Guanabara. Era um lugar estratégico, ponto final da rota terrestre que levava até Minas Gerais – e ao sertão de meio Brasil.

Ali, instalou sua vasta biblioteca e começou a juntar coleções de plantas, animais e minerais. Ao mesmo tempo, arriscava-se em experiências agrícolas derivadas de suas pesquisas. A Fazenda Mandioca logo fez fama em uma corte onde, volta e meia, apareciam cientistas, pintores e viajantes. A maior parte dos europeus que percorria o interior começava suas viagens terrestres pela estrada que passava ao lado da propriedade, de modo que acabavam fazendo visitas e enriquecendo as coleções.

De olho no futuro, ele mandava parte do material que recolhia como presente para o czar Alexandre I. Quando sentiu que havia interesse, em 1819, deixou o Rio de Janeiro com tudo que tinha juntado e voltou para São Petersburgo. Conseguiu persuadir o governante a financiar uma grande expedição científica ao Brasil – em parte porque descreveu a então parte do Reino Unido como um território inteiramente selvagem, além de totalmente desconhecido.

Tendo levantado o dinheiro, começou a executar um plano grandioso. Levou de Moscou o cartógrafo Nestor Rubtsov; na França, achou o zoólogo Eduard Ménétriès; na passagem pela Alemanha, contratou um pintor de 19 anos chamado Johann Moritz Rugendas. Não se esqueceu de contratar também a viagem de alguns colonos alemães, que iriam para sua fazenda.

Desembarcou no Rio de Janeiro em março de 1822. A primeira notícia foi ruim: o dinheiro para pagar os colonos não havia chegado, de modo que tinha uma revolta de colonos e uma falência para encarar. A segunda notícia foi maravilhosa: José Bonifácio de Andrada e Silva, grande amigo de seu amigo Alexandre Humbolt, acabara de ser nomeado ministro do regente Dom Pedro I.

José Bonifácio deu uma nova dimensão ao projeto de seu amigo alemão. Emprestou dinheiro para pagar os colonos, facilitou o trabalho de cônsul. Mas, acima de tudo, demorou muito pouco tempo para levar a até a Fazenda Mandioca a princesa Leopoldina, uma apaixonada por botânica, e o regente Dom Pedro – um apaixonado por cavalos que, no lombo deles, se apaixonou pela região, até comprar terras em Correias, perto da atual Petrópolis.

Assim, o que era para ser uma expedição apenas russa acabou se tornando também um projeto brasileiro. O apoio do governo permitiu que uma série de conhecimentos sobre os caminhos do interior e modos de vencê-los se incorporassem ao planejamento da expedição.

Mas foi preciso tempo para ajustar tudo. O barão de 48 anos e formação militar tinha uma equipe formada por jovens cientistas de pouca rodagem – embora ansiosos para começar. Havia muita tensão no ar. O barão resolveu então começar leve. Mandou os cien tistas para pequenas viagens ao redor da fazenda. Em 1822, houve uma pequena incursão até Nova Friburgo. Estalaram os primeiros conflitos, mas também surgiram soluções. Na viagem, se incorporou ao grupo o botânico Luiz Reidel, outro apaixonado pelo Brasil, que vinha juntando plantas desde Ilhéus.

FLORA E FAUNA
Em sentido horário: jararaca, arara azul, araticum e jacu, por Florence. Acima, um sagui, de Rugendas

Com o pessoal reforçado, o barão deu outro passo, em 1824: viajar até Minas Gerais. Parecia fácil. O grupo percorreu um caminho frequentado por dezenas de tropas a cada semana, com inúmeros pousos e cidades para se hospedar no meio do caminho. Quase uma excursão de turismo. Mas turismo ao modo da época, com a possibilidade de colher plantas e animais selvagens quase na beira da estrada – e assim o barão viu os primeiros índios: um grupo de Coroados que vivia pouco adiante de Barbacena.

Nada disso diminuiu as tensões no grupo. Pouco depois de passar por Sabará, o pintor Rugendas desentendeu-se com o chefe pela última vez e partiu, levando os desenhos que o tornariam famoso como retratista do Brasil. Mesmo sem a parte do artista, o material recolhido até março de 1825 foi respeitável: 29 caixas de amostras de minério; 15 de herbário, com 1.400 espécies de plantas; 398 peles de aves, 23 de mamíferos – fora o material cartográfico.

No Rio de Janeiro, para cobrir a baixa, o barão contratou dois pintores. Primeiro, Adrien Taunay. Ele tinha apenas 25 anos, mas seu currículo de viajante impressionava. Com apenas 16 anos embarcara em uma expedição francesa de volta ao mundo, a bordo do Urânia. Depois de percorrer todo o Pacífico, o navio naufragou na volta, nas ilhas Malvinas. O jovem passou seis meses na base da carne de foca, até ser resgatado. O segundo pintor foi Hércules Florence, um aventureiro que corria o mundo por sua conta – e se apresentou ao barão respondendo a um anúncio de jornal.

Com eles, começou a grande viagem. A bagagem inicial do grupo era imensa: foi preciso contratar uma tropa de 63 mulas para levar tudo de Cubatão até Porto Feliz. Ali, foram gastos seis meses para escavar troncos de duas árvores centenárias até os transformar em duas canoas com 20 m de comprimento por dois de largura. Nelas e em alguns batelões todos embarcaram. O caminho era conhecido e mapeado: a centenária rota das monções de Cuiabá – que incluía o passo de Camapuã, onde as canoas eram arrastadas ao longo de 20 km por juntas de bois e força do braço escravo.

O percurso levou os tradicionais seis meses – e no intervalo dos dois jovens pintores foram aprendendo a distinguir detalhes do Brasil com seu olhar agudo. Além de produzirem algumas vistas da paisagem que os impressionava e das plantas e animais, foram percebendo a variedade das gentes. Índios de muitas etnias, com costumes e línguas inteiramente diferentes uns dos outros. Escravos vindos de muitas nações da África, cada qual com sua língua e costumes.

Principalmente, perceberam também que ali todos se misturavam – e começaram a detalhar a variedade de rostos dos mestiços. Aos poucos, foram também descobrindo que uns adotavam os costumes dos outros – surgiram então índios vestidos como europeus, nobres embaixo de tendas como as dos índios, e até retratos dos próprios viajantes já acostumados com as redes.

Em Cuiabá, o grupo se dividiu por duas rotas abertas séculos antes. O biólogo Reidel e Taunay seguiram pelo caminho da grande bandeira de Raposo Tavares, entrando pelo Guaporé para descer o Madeira. Já o grupo de Langsdorff e Florence desceu pelo Juruena e o Tapajós. O ponto de encontro de ambos deveria ser o então povoado de Manaus, de onde iriam subir o rio Negro – rota que os brasileiros conheciam há mais de dois séculos, e sobre as quais a expedição estava bem informada, possivelmente graças ao apoio do governo.

Mas nada disso foi possível. Sem o condutor enlouquecido, a expedição foi interrompida. Ficou um tesouro – cuja história é tão lendária como a expedição.

NÃO CAIA NESSA
Existe apenas um ponto baixo em toda a exposição: a falta de conhecimento sobre o Brasil exibida nos textos. Ele está aquém do básico, pois mistura de forma infantil propaganda antiga com realidade histórica. Que o barão vendesse pioneirismo, exotismo e selva para russos do século XIX se entende, já que era assim mesmo que se arrumava dinheiro na época. Mas achar que isso era a realidade do Brasil de então é uma possibilidade ao alcance apenas de um historiador desinformado.A expedição misturou viagens em estradas movimentadas com trechos por rotas seculares, como as da Monção de Cuiabá ou da chamada Monção do Norte (de Belém a Cuiabá), todas devidamente mapeadas por cartógrafos do século XVIII. Percorreu o caminho da produção mercantil da sociedade brasileira.
Tudo isso desaparece nos textos. Os apresentadores russos não se pejam em descrever o país histórico com a linguagem de propaganda do barão, tratando o Brasil como país “desconhecido pela humanidade”, como se os brasileiros não fizessem parte dela nem de nenhuma sociedade organizada. É uma confusão constrangedora, mas também significativa.

A grandeza real da coleção só vai ser dimensionada em confronto com o conhecimento atual dos cientistas brasileiros sobre seu país, muito maior que o apresentado nos textos. Mas essa tarefa é muito dura quando se tem de partir de algo tão tosco como as noções mostradas na linguagem da exposição.

Uma longa viagem pela Selva das Gavetas
As coleções reunidas pelo barão Langsdorff iam sendo mandadas aos poucos para Moscou. A última grande leva foi enviada por Hércules Florence, do ponto de sua partida: apaixonado por Angélica Vasconcelos, que conhecera em Porto Feliz, deixou a vida de aventureiro para se tornar fazendeiro em Campinas.

Poderia fazer como Rugendas e ficar com o muito que havia sob sua guarda para fazer seu nome – um tesouro que incluía toda a coleção de pinturas, com quase 400 trabalhos dos três artistas que trabalharam para o barão, além dos diários do próprio comandante. Mas, honesto que era, preferiu organizar tudo – inclusive seus próprios trabalhos – e mandar para São Petersburgo. Luiz Reidel, o biólogo, também tinha planos de ficar pelo Brasil. Mas, antes, levou para a capital russa material suficiente para ocupar o espaço de 84 passageiros no navio.

Se soubessem do que acontecia com suas remessas, talvez os dois não agissem com tanta retidão. As caixas e caixas de material desembarcavam diretamente da selva tropical para outra ainda mais feroz, a da burocracia. O espólio era duramente disputado pelo diretor do Museu Botânico e o diretor do Jardim Botânico. Dependendo dos azares da conjuntura e da circulação da papelada com pareceres, as caixas eram levadas de um lado para o outro – com algumas perdas no caminho.

Enquanto foram vivos, os dois brigaram por um tesouro. Quando morreram, deixaram como espólio um conjunto de caixas cujo conteúdo ninguém sabia ao certo qual era. Mas como em uma grande burocracia nada se perde, as caixas ficaram sempre guardadas.

Somente quando a hibernação completou oito décadas, um jovem cientista russo, Henrique Manizer, passou pelo Rio de Janeiro em 1915, na volta de uma viagem à Antártica. Visitando o Museu Nacional, viu expostas algumas peças da expedição que haviam sobrado no Brasil – entre elas, o retrato de Langsdorff feito por Hércules Florence – e comprou uma edição do diário do pintor-fazendeiro, que havia sido publicado em 1875. Com essas informações, publicou na volta um artigo com as notícias “inéditas” sobre a expedição.

Foi preciso mais uma década e meia até que as caixas fossem desenterradas dos arquivos onde jaziam para serem finalmente reunidas como uma única coleção. Isso atraiu alguns estudiosos. Mal eles começaram a juntar as primeiras peças do quebra-cabeças, estourou a Segunda Guerra. A antiga capital russa, cujo nome era então Leningrado, ficou cercada durante quase três anos e sob intenso bombardeio. O arquivo sobreviveu, mas foi preciso esperar muitos anos de reconstrução até o reinício dos estudos.

Como eram tempos de Guerra Fria, a troca de informações com o Brasil, essencial para o entendimento do todo, era rala. Apenas em 1988 aconteceu a primeira exposição do material por aqui. Por isso, essa segunda oportunidade para ver uma parte do lendário tesouro do barão Langsdorff não pode ser perdida de maneira nenhuma. Ali está o maior retrato do Brasil feito em seu tempo – e retrato essencial em país de herança iconográfica pífia.


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