O Baldini é um homem das artes. Eu, às vezes, o via no Giba, meu barbeiro. Daquela vez ele estava de partida para Soncino, na Itália. Ia visitar a irmã de Piero Manzoni, um artista plástico. Perguntei quem era essa mulher. Ele me falou do tal Manzoni mesmo.

Imagine um discurso plástico, conceitual e instigante. Imagine que com esta retórica você convence o mundo de que seu trabalho tem valor. E, por último, mas não em último, você os convence de que seu trabalho abre caminhos! Assim foi Piero Manzoni.

Em 1958, produziu “esculturas pneumáticas”, balões inflados com o ar de seus pulmões. Em 1960, fez uma exposição de ovos cozidos, marcados com suas impressões digitais. Logo devorados por ele e por seu público. Vendeu então suas digitais impressas. Concebeu “esculturas vivas”, mulheres nuas que escolhia e assinava. Depois, criou um pedestal mágico. Quem nele subisse seria uma obra de arte.Voilá!

Que picareta! Eu pensei. Mas, disse o Baldini, em 1961 entra em cena o pai do Manzoni. Disse ao filho: “Piero, seu trabalho é uma merda!”.

O filho não se abateu, inspirou-se.

Coletou suas próprias fezes e, na fábrica de enlatados do pai, produziu 90 latas de merda. O rótulo era multilíngue: Merda d´Artista, Artist´s Shit, coisa e tal. Noventa exemplares. Numerados.

Em agosto de 1962, um certo Alberto Lucia, comprou Merda d´Artista a preço de ouro. Não vai aí expressão idiomática. Pelos 30 g da lata pagou 30 g de ouro.E o Baldini prosseguiu…

Seria o valor associado à Merda d´Artista uma referência ao poder do dinheiro do novo rico? Que subverte a nossa sólida herança cultural? Com este questionamento, Merda d´Artista passa a valer mais. Em 1991, a Sotheby´s vendeu um exemplar por US$ 67.000. Note que, nessa época, 30 g de ouro valiam US$ 400. Mas, para que servem 30 g de ouro?

Gostei da indagação do Baldini.

Mas, a coisa não para aí, ele prosseguiu. Em 1998, Bernard Bazile expôs Boite Ouverte de Piero Manzoni, uma Merda d´Artista entreaberta, no Centre Georges Pompidou. E, então, por fim, em 2000, o ápice. O clímax. A Tate Gallery comprou Merda d´Artista, lata 4 – US$ 61.000. Saiu barato, emendou o Baldini.

Me dei por informado, mas perguntei onde estava o Piero Manzoni. Ele disse que já havia morrido há muitos anos. Enfarte aos 30. Giulia, a irmã que visitaria, herdara 20 latas.

Aí a conversa mudou.

Ruminei aquilo tudo, considerei minhas reservas e, hesitante, perguntei ao Baldini se essa Giulia me venderia uma lata por US$ 10.000. Ele disse que achava difícil, mas poderia tentar. Ela retinha as latas para não derrubar o preço no mercado. Eu insisti, muito. Por fim, ele pediu meu telefone. Disse que me chamaria antes de partir. Essas coisas em aberto sempre me deixam muito ansioso.

Depois de uns dias, ele me liga. Tinha falado com a tal da Giulia. Ela topava, mas eu não poderia revendê-la por três anos. Fechei o negócio na hora. No dia seguinte, ele partiu com meu dinheiro. Não deu um mês, recebi em mãos a minha lata, a 83. Fiquei emocionado.

Já faz dois anos, e o Baldini nunca mais apareceu no Giba. Minha lata está lá em casa. Guardada no fundo do armário. Eu nem gosto de pensar no assunto, mas penso.

Hoje, considero o Manzoni brilhante. A Tate Gallery, então, foi perfeita. Enxergou o Manzoni e colheu o espírito de 1961. O Baldini, o que dizer dessa figura? Fui eu quem insistiu no negócio. A irmã dele, então, está certíssima. Para que guardar uma lata de merda? O problema é comigo mesmo.

Onde foi que erraram meus pais?


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.