Álcool mata. Mas quem se importa?

Quando saiu a Lei Seca, em junho de 2008, pipocaram reportagens abordando esquemas alternativos criados por donos de bares (mandar o cliente para casa de táxi ou de van) e pelos frequentadores (fazer rodízio para ter um motorista sóbrio), ao lado de protestos de inconstitucionalidade e outros. Mas o que levou as autoridades a determinar a prisão de quem dirigisse depois de consumir apenas dois chopes? Afinal, as pessoas abusam tanto assim da bebida?

O álcool é a droga mais consumida no mundo, e dirigir alcoolizado é um dos nossos principais problemas de saúde pública. O I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira, realizado em 2007, acusou: dois terços dos indivíduos que dirigiram alcoolizados fizeram isso depois de consumir três doses de álcool duas a três vezes no último ano – ou seja, a maioria bebeu mais do que o limite legal do Brasil antes da Lei Seca. E 61% da bebida consumida era justamente cerveja ou chope. Os números são claros: segundo dados do Ministério da Saúde de março de 2009, os atendimentos de urgência caíram em média 11,5% em 17 das 26 capitais pesquisadas, e houve uma redução de 20,5% no número de vítimas fatais em acidentes de trânsito. E o balanço anual divulgado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) também em março revelou que as mortes em acidentes no trânsito paulistano diminuíram 6% em 2008 – com apenas seis meses da lei mais rigorosa.
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Realizado pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) em parceria com a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o I Levantamento Nacional foi coordenado pelo médico psiquiatra Ronaldo Laranjeira e revelou uma realidade infinitamente mais dramática: temos aproximadamente 12% de alcoólatras – cerca de 15 milhões de pessoas! Da população pesquisada, com idade de 14 a 65 anos, 52% bebe: metade ocasionalmente, e metade, com frequência. Dos que bebem com frequência, metade é dependente e os outros 12% são bebedores abusivos. Beber abusivamente, ou de maneira nociva, significa consumir cinco ou mais doses uma ou mais vezes por semana (no caso das mulheres, quatro doses ou mais). Esse levantamento e outros estudos recentes indicam também que os jovens estão começando a beber por volta dos 12 anos. Na região Sul, o quadro é pior. Reportagem publicada em 2008 no jornal Zero Hora, sob o título “Infância assolada pelo álcool”, alertava que os hábitos culturais da serra gaúcha fazem crianças de apenas cinco anos começarem a beber vinho por influência dos familiares.

Pesquisas sobre violência doméstica jogam mais combustível nesse copo: uma delas, realizada em 2007 pelo DataSenado, registrou o uso de álcool em 45,5% dos casos de violência doméstica. Esse dado confirma pesquisa de 2005 do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), que relatava agressores alcoolizados em 52% dos casos.

O álcool, usado pelas pessoas para ficarem “alegres”, pode se tornar uma arma, especialmente nas mãos de quem se torna seu escravo. As coisas melhoraram muito nas duas últimas décadas, pois os mitos que cercavam a dependência química começaram a cair graças à atenção da mídia. “Hoje existem políticas públicas continuadas”, diz o dr. Luiz Alberto Chaves de Oliveira, mais conhecido como dr. Laco, que é presidente do Conselho Municipal de Políticas Públicas sobre Drogas e Álcool (Comuda) e também Coordenador de Atenção às Drogas na cidade de São Paulo. “As universidades se preocuparam em formar profissionais especialistas na área, o que não existia nos anos 1980, e surgiram outros modelos de tratamento além da internação. Mas os grupos de ajuda mútua, espalhados por todo o País, ainda sofrem muito preconceito e são desconsiderados”, afirma o médico, que garante que existe uma relação direta e bastante documentada entre abuso de álcool e diversos tipos de câncer, como de faringe, esôfago, fígado e pâncreas, e ainda com infarto, hipertensão, AVC. “A doença alcoolismo tem um caráter multifacetado”, completa.

Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Uniad, muita gente ainda não compreende a doença. Ele explica: “Ninguém nasce dependente do álcool: o alcoolismo é um processo em que a pessoa se torna dependente ao longo dos anos, à medida que bebe cada vez mais – inclusive para aliviar a ressaca. O problema é que é difícil identificar o alcoolista* antes que o quadro se torne severo”, diz Laranjeira. Ele entregou em abril de 2008 um abaixo-assinado com 800 mil assinaturas ao presidente da Câmara, em Brasília, solicitando a proibição de anúncios de cerveja na TV e no rádio das 6 às 21 horas. Esse abaixo-assinado foi fruto do movimento Propaganda sem Bebida, encabeçado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e pela Uniad/Unifesp. “No mês seguinte o governo mandou uma MP ao Congresso com urgência constitucional”, conta o médico. “Mas o lobby das indústrias de bebidas é fortíssimo: o caráter de urgência foi retirado e a MP ainda não foi votada.”

Histórias em comum
Para ajudar mais pessoas a entender a complexidade dessa doença traiçoeira, fantasiada de “costume social”, o jornalista e escritor Ruy Castro decidiu contar pela primeira vez os problemas que o álcool – que abandonou há 21 anos – trouxe à sua vida no passado.

Ruy já bebia bastante aos 19 anos, quando conseguiu um bom emprego em uma revista e deixou a família para morar sozinho no lendário Solar da Fossa, no Rio, habitado por artistas, jornalistas e boêmios. Foi quando começou a beber “profissionalmente”, de forma constante e crescente. “Eu bebia feito gente grande e não tinha ressaca”, conta Ruy. “Comprava litros de scotch e também bebia bastante na casa dos outros, pois havia uma cultura do uísque naquela época – havia quem o comprasse em galões, daqueles com torneirinha, não garrafas.”

De 1967 a 1976, Ruy calcula que tenha bebido um litro de uísque por dia – no mínimo. Depois de uma fase encharcada por aquavit (uma aguardente escandinava), ao se mudar para São Paulo, em 1979, voltou ao uísque. Mas logo se converteu à vodca com gelo: “Se continuasse bebendo uísque escocês naquela quantidade, iria à falência. E o uísque nacional era ruim, não dava para tomar. Mas a vodca era boa. Além disso, pelo fato de não ter gosto, era menos enjoativa para quem bebia em grandes quantidades. O problema é que ela também deixa cheiro, ao contrário do que muito bebum pensa…”.

Ruy bebia horrores, mas dificilmente ficava bêbado. “Foram tão poucas vezes que até me lembro delas. A pior foi quando fui totalmente de porre ver um show do cantor americano Bobby Short no Maksoud Plaza”, rememora ele. “Até caí na garagem, na saída! Mas meus porres eram bem esporádicos. Uma vez, fui entrevistar a turma da jovem guarda (que tentava um dos seus vários revivals) e já cheguei mal ao teatro. Não dava nem para começar. Felizmente, tive a consciência de voltar para casa e telefonar para o jornal, inventando uma desculpa. Só fiz a entrevista no dia seguinte.”

Foi nessa fase – metade de 1984, quando começamos a namorar – que o álcool começou a interferir negativamente no seu comportamento social e profissional. Um ano depois fomos morar juntos, e uma amiga nos deu, como presente de casamento, uma dúzia de garrafas de vodca – que ele enxugou em menos de 15 dias. E ainda tentou disfarçar, colocando parte da culpa na empregada – uma atitude comum em alcoólatras não assumidos. A partir daí, passei a prestar mais atenção e a perceber a rapidez com que as garrafas eram esvaziadas. Ainda não achava que ele era alcoólatra, mas começava a desconfiar que aquele jeito de beber não podia ser normal.

Em 1987, com o massacre sobre o organismo, Ruy finalmente começou a ficar alterado com certa frequência. Comecei a buscar informações sobre o alcoolismo e me convenci de que ele precisava mesmo de ajuda. Em agosto, numa festa, encontrei um amigo médico que tinha parado de beber um mês antes. Conversamos muito naquela noite e também depois, na casa do dr. Laco (personagem importante nessa história, como será visto adiante). Mais bem informada, comecei a “fazer campanha” para Ruy se internar. Estava assustada, pois ele já apresentava sintomas da fase mais avançada do alcoolismo: não tomava café da manhã, não se alimentava, estava anêmico e não se cuidava. E eu estava solitária nessa batalha – ninguém acreditava que fosse necessário interná-lo. Como sempre, as pessoas achavam apenas que Ruy não tinha problemas, era apenas “um bom copo”. E era mesmo: no alcoolismo, as pessoas não precisam de problemas para beber. Mas, no que bebiam, os problemas iam surgindo uns atrás dos outros.

Por sorte, ele aceitou meus argumentos. Numa segunda-feira de manhã, 25 de janeiro de 1988, fomos para o Recanto Maria Tereza, clínica especializada em dependência química, em Cotia, a 30 quilômetros de São Paulo. Antes de sairmos, Ruy bebeu três doses de vodca, para “calibrar” a tremedeira das mãos. Porém, quando estávamos a três quilômetros da clínica, deve ter se assustado com a perspectiva de ficar longe da garrafa, porque pediu que voltássemos e deixássemos aquilo para outro dia. Acelerei e segui em frente, argumentando que já estávamos bem perto, não valia a pena voltar. E, afinal, ele havia prometido. Na recepção, fez brincadeiras com a enfermeira que me envergonharam. Mas eu sabia que nada era mais importante do que conseguir que ele se internasse. Acreditava que ele deixaria de beber assim que entendesse o estrago que estava fazendo na sua vida. Naquele dia, Ruy se internou por três semanas.

Dias depois, cheguei à clínica para visitá-lo pela primeira vez e encontrei-o de mala pronta. Ia embora da clínica! Atordoada, corri aos médicos e perguntei se ele podia abandonar o tratamento. Eles responderam que, devido aos medicamentos e também à fase da desintoxicação em que se encontrava, se saísse e bebesse Ruy poderia até morrer. Mas duvidavam de que ele tivesse forças para fugir. E, de fato, ele não conseguiu. Naquele primeiro fim de semana, ainda parecia um pouco confuso – sentava-se e se levantava com dificuldade e não conseguia manter uma linha reta ao andar. Mas os médicos garantiram que em poucos dias ele ficaria bem.

Foram três semanas difíceis. Nos fins de semana, eu própria ouvia palestras e participava de terapias de grupo na clínica, que me ajudaram bastante. Mas nem tudo se acomodou na memória dele exatamente como na minha. Descobri isso apenas quando o entrevistei longamente em fevereiro passado, pois Ruy me garantiu que tentou trabalhar na clínica e não conseguiu. Primeiro, porque passou dois a três dias “tremendo mais que uma coqueteleira”, e, depois, porque lá não era lugar para trabalhar.

“A partir da metade do tratamento, quando recuperei a consciência, me apaixonei pelas palestras”, ele conta. “Era um vendaval de informações que me explicavam por que, a cada dia, eu precisava beber mais e mais cedo, por que não conseguia passar meia hora longe do copo e sobre os efeitos do álcool no organismo. Entendi as desculpas que eu próprio me dava para beber. E o que mais me surpreendeu foi descobrir que minha vida, que eu achava tão original, não passava de um grande clichê – porque todos os bebuns se comportam da mesma forma. Entendi que precisava passar a viver pela minha razão, não pela razão do álcool.”

Na verdade, a clínica acabou disponibilizando uma sala, onde ele colocou sua máquina de escrever e trabalhou todas as noites (exceto as primeiras), e também após o almoço – hora em que os internos viam tevê. Eu mesma me espantei quando ele trouxe para casa quase 50 laudas datilografadas com o esboço de um livro que se chamaria Saudades do Século 20. Qualquer médico ou interno daquela época pode corroborar que Ruy trabalhou durante sua internação. Mas ele não se lembra disso e acredita que jogou fora esse original. Deve ter jogado mesmo, pois um livro com o mesmo título acabou sendo lançado em 1994, mas não tinha quase nada a ver com o que ele escreveu na clínica.

Os especialistas explicam que o alcoólatra não esquece tudo o que fazia quando bebia, mas confunde bastante os acontecimentos – especialmente os da última fase. Ruy não foi exceção à regra. A primeira coisa que fez ao chegar em casa foi sentar à máquina e recomeçar a tradução de O Livro dos Insultos (de H. L. Mencken) do ponto em que tinha parado – o livro saiu meses depois, em junho de 1988. Voltou também a escrever para a Folha Ilustrada, Playboy e muitos outros veículos. Com a cabeça limpa e enorme disposição física, trabalhava cerca de 15 horas por dia, de segunda a segunda. Logo foi convidado a colaborar com o Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo, ganhando bem mais. Ele mesmo conta: “Um dia fui ao Rio entrevistar o Tom Jobim para a Playboy e trouxe tanto material que tive a idéia de fazer o Chega de Saudade, a história da bossa nova, que saiu em novembro de 1990. Eu nem sonhava fazer livros, antes”. Esse é outro exemplo da distorção de memória produzida pelo álcool: antes da internação, Ruy não apenas sonhava fazer livros como tinha idéias maravilhosas – que apenas não conseguia pôr em prática.

Ele ainda lançou, em dezembro de 1989, uma seleção de frases que ganhou o título de O Melhor do Mau Humor. Ou seja: ao parar de beber, Ruy produziu três livros em dois anos e meio, além de incontáveis artigos para jornais e revistas. “Deixei de beber”, diz ele, “mas, com tanta atividade, nunca senti que tinham me tirado alguma coisa. Muitos alcoólatras ficam mal ao parar de beber, porque sentem que lhes roubaram algo muito importante. Nem todos têm paciência para esperar sua vida se reorganizar. E aí voltam a beber e pioram rapidamente se não forem internados de novo. Outros têm vergonha de que as pessoas saibam que eles foram internados e não imaginam que as pessoas ficam felizes quando sabem que um amigo resolveu se tratar”.

No trabalho, tudo ia cada vez melhor, mas em casa, não. Comecei a achar que estava casada com um perfeito desconhecido. Na verdade, eu também estava doente – como a maioria das esposas de alcoólatras – e precisava de ajuda. Mas não sabia. As famílias dos alcoólatras frequentemente “adoecem” junto com eles e muitas vezes se desintegram. Em vez de fazer uma terapia tradicional, como fiz, devia ter procurado um especialista em dependência química. Só assim aprenderia que todo alcoólatra muda de personalidade por um bom tempo depois que deixa de beber; que uma boa parte deles vira workaholic e não consegue dar atenção à família nos primeiros tempos; e que o familiar do alcoólatra precisa de ajuda para sair da codependência; e também para entender as mudanças do alcoólatra abstinente. É bastante comum os alcoólatras, quando não perdem a mulher antes de se tratar, perderem depois. Foi o que aconteceu conosco: o alcoolismo dele não foi o único culpado pela nossa separação, mas foi o principal.

Nesses 21 anos, Ruy tornou-se um escritor respeitado, autor de dezenas de livros. Eu me sinto bastante recompensada por isso – apostava na inteligência dele e apostei certo, porque ele nunca mais bebeu. Depois de alguns anos da separação, nos tornamos amigos. “Fui privilegiado porque Alice acreditou em mim”, diz Ruy, hoje. “Mas o fato é que os outros internos tinham a mesma história que eu. Havia lá um fazendeiro muito inteligente, um diretor teatral, um executivo de multinacional e outros mais simples. Mas todos tinham sido derrotados pelo mesmo inimigo. E ainda éramos prepotentes, pois achávamos que podíamos parar de beber na hora que quiséssemos! A internação foi uma oportunidade para eu ver que estava destruindo minha vida, e para reconstruí-la.”

Outros internos daquela época também pararam por algum tempo, mas alguns voltaram a beber e morreram. Porém, o que impressionou a equipe do Recanto Maria Tereza foi a rapidez com que consegui interná-lo. Levei apenas seis meses, quando a média, segundo os médicos, era de oito anos. Um deles me perguntou como eu havia conseguido. Expliquei que tinha blefado, convencendo-o de que ele só ia fazer uma desintoxicação, mas que fizera isso porque, no fundo, tinha medo de que Ruy morresse em dois ou três anos. O médico garantiu: “Do jeito que ele chegou aqui, só teria mais um ano de vida”.

Nunca esqueci essa frase, nem o rosto do médico – ele mesmo um alcoólatra em abstinência, como todos os que trabalhavam no Recanto.

Essa frase voltou a martelar minha cabeça agora, quando vivi outro drama com um parente muito próximo, que já consegui internar, há quatro anos, mas recaiu há oito meses e preocupou toda a família. Quando me vi novamente no palco desse drama – e com pouca plateia -, pedi a Ruy que finalmente contássemos nossa história.

Nos últimos meses, tenho me lembrado do pesadelo que foram as duas internações; do ceticismo dos amigos e familiares, que não entendiam que era a única forma de salvar a vida deles naquele momento; das histórias que ouvi na clínica; dos rostos angustiados dos familiares; e, principalmente, tenho recordado que todas as histórias são sempre muito parecidas. Mas o final só é feliz quando o familiar do alcoólatra consegue convencê-lo a se tratar.

ALCOOLISMO E SAÚDE PÚBLICA
O mais grave problema de saúde pública no Brasil atualmente é o consumo de álcool. Ele determina mais de 10% das mortes ocorridas no País. Embora sejam necessários estudos mais abrangentes e específicos, as evidências disponíveis colocam como prioritárias as políticas públicas que intervenham no controle social da bebida.
Países como Grã-Bretanha e Estados Unidos já estão colocando em prática algumas dessas políticas e alguns estudos ao redor do mundo indicam os caminhos mais promissores para o combate do consumo de bebidas alcoólicas.
Por causa da violência, a Grã-Bretanha criou, em 2000, políticas públicas que levaram mais de 200 mil pessoas a tratamento somente em 2007/2008 – e o tratamento funcionou para mais de 75% dos dependentes.
Nos EUA, a elevação da idade mínima dos 18 anos para 21 anos para a compra de bebida alcoólica reduziu em 11% a 16% a ocorrência de acidentes automobilísticos noturnos envolvendo jovens, independentemente da gravidade.
Estudos comparando 17 países com proibição total, proibição parcial ou sem qualquer proibição da propaganda de bebidas alcoólicas mostraram que países que proíbem a publicidade de destilados, cervejas e vinhos têm níveis de consumo 11% mais baixos e 23% menos acidentes automobilísticos fatais do que os países que proíbem apenas a propaganda de destilados.
Restringir dias e horários de venda inibe as oportunidades para compra e pode reduzir o consumo. Estudos conduzidos em diversos países (desenvolvidos e em desenvolvimento) indicam que tais restrições reduzem os problemas relacionados ao álcool.
Fonte: Revista Brasileira de Psiquiatria, volume 26, suplemento 1, maio de 2004

Os familiares de Ernani (nome fictício) sabem disso: foram os irmãos dele e seu filho mais velho que o convenceram a se tratar. Ele parou de beber há quase nove anos e não titubeou para contar sua história – apenas pediu para ficar no anonimato, como consagra o grupo de ajuda mútua Alcoólicos Anônimos (AA) que ele frequenta. Coordenador de pós-graduação de uma universidade federal no Rio de Janeiro, Ernani começou a beber aos 15 anos, e a partir dos 36 perdeu o controle sobre a bebida. Aos 45, logo depois de nascer o terceiro filho, separou-se da esposa – a quem amava. Continuou negando que tinha problemas com a bebida até os 56 anos. Caía na sarjeta, literalmente, e era proibido de beber em diversos bares próximos de casa. Sua irmã começou a frequentar o grupo Al-Anon, destinado aos familiares dos alcoólatras, para poder entender e conviver com o irmão (hoje ela coordena um grupo).

No final, Ernani sentia-se profundamente triste, solitário e insatisfeito profissionalmente, e chegou a pensar em suicídio. “No dia 2 de junho de 2000”, relembra, “senti que estava no fundo do poço. Era um dia chuvoso e liguei para o meu filho mais velho, pedindo que me internassem antes que eu mudasse de idéia”. Ernani passou 30 dias na clínica Vila Serena, graças ao seguro-saúde do irmão. Só lá ele conseguiu entender quanto sofrimento causara à família e o quanto a doença afetara seu trabalho. Hoje, aos 65 anos, descobre-se workaholic, sente-se remoçado e reconstruiu sua vida afetiva, tendo casado há um ano. Recentemente, um colega o agrediu gratuitamente por seu passado alcoólico: o resultado foi que os outros professores fizeram um abaixo-assinado e conseguiram a demissão do agressor. Ernani foi pela última vez a uma reunião do AA em dezembro. “Quando saí da clínica, ia duas vezes por dia às reuniões; um ano depois, minha frequência caiu para três vezes por semana; em 2008, fui quatro vezes. Só vou quando preciso, quando me sinto fragilizado. A cura dessa doença é uma pílula imaginária chamada ‘não’: um remédio abstrato porém real, pois o que funciona mesmo é não tomar o primeiro gole.”

Outro adepto desse remédio foi o dr. Laco, 65 anos, que também nunca havia tornado pública sua história. Laco tomou o primeiro porre aos 12 anos, bebendo quentão numa festa junina, e aos 15 já se revelava um bom copo. Formado pediatra pela Universidade de São Paulo (USP), casou, teve um filho e separou. Aos 36 casou com Mary, uma psicóloga. O casal tinha vários conflitos porque ela tentava fazê-lo beber menos. “Eu já sabia que era alcoólatra”, conta Laco. “Falava que ia morrer de cirrose ou de acidente. Mas não admitia que ninguém falasse isso para mim, virava uma fera. Isso é típico da negação do problema,” afirma.

Aos 41 anos, Laco entrou em depressão. “Eu mal conseguia conversar com as pessoas. Procurei ajuda com um professor universitário, psiquiatra, com tese em alcoolismo – ele disse que ia tratar só da depressão. Eu tomava dois a três uísques e ia para a terapia. Se exagerasse nas doses, telefonava avisando que não ia. Depois de um tempo, eu me dei alta.” Segundo Laco, essa atitude também é clássica. Ele melhorou da depressão e bebeu mais dois anos, passando por períodos em que bebia mais, ou menos, ou até interrompia.

Mary começou a frequentar um grupo de Al-Anon e aprendeu como lidar com o marido. “Em vez de discutir minhas bebedeiras, ela me levava livros para ler. Inventou que tinha feito um curso e começou a juntar no quintal as garrafas de uísque, vodca e vinho consumidas, dizendo que ia fazer lustres, copos e outros objetos com elas. Aquele monte de garrafas começou a mexer comigo.” Em julho de 1987, Mary viajou com a filha e Laco perdeu um dos dois empregos que tinha além do consultório. Com tempo livre, bebeu ainda mais. Quando ela voltou, ele resolveu se tratar: Mary marcou consulta com Jorge Figueiredo, na época diretor do Recanto Maria Tereza, e Laco internou-se nessa clínica logo depois do Dia dos Pais. Em janeiro de 1988, já fazia parte do seu corpo clínico.

Laco continuou se dividindo entre o trabalho na clínica e no seu consultório, onde atendia alternadamente bebês saudáveis e adultos alcoólatras, até 1990, quando se tornou diretor do Recanto e largou a pediatria de vez. Permaneceu no Recanto até 2005; de 2006 a 2009 trabalhou na clínica Vitória, publicou os livros Drogas no Ambiente de Trabalho e Drogas? Onde obter ajuda e orientação, e lutou dez anos para criar a Coordenadoria de Atenção às Drogas da Prefeitura, que comanda desde 2008. Fez de sua própria história uma bandeira na luta para ampliar políticas públicas. “Há 22 anos não havia praticamente nada e hoje existe a Política Nacional sobre Drogas (PNAD). A sociedade começa a encarar o alcoolismo como doença. Mas, como existem cerca de 15 milhões de alcoólatras e cada um tem família, podemos dizer que pelo menos 45 milhões de brasileiros são diretamente afetados pelo alcoolismo. Pessoas que recebem um impacto social, emocional e econômico direto, e necessitam de atenção.”

O consume de álcool no mundo
Por motivos culturais, alguns países não consomem bebidas alcoólicas É o caso do Irã e do Iraque, onde 73,4% e 89% da população, respectivamente, não bebem. Mas não é só no mundo islâmico que a bebida é usada com moderação:
na Índia apenas 20,9% da população bebe. Mas o consumo é bastante grande em outros países. Saiba onde mais se bebe no mundo.Fonte: The Global Status Report on Alcohol 2004, Organização Mundial de Saúde
Países Consomem álcool (pop. adulta) Bebem abusivamente São dependentes Custos sociais Gastos com álcoool
Alemanha 94,9% 22,5% 7,5% 13% das mortes em acidentes de trânsito 26,5 bilhões de dólares
França 93,3% 24,4% 17,4% De 13% a 20% das internações hospitalares, 30% dos casos de violência doméstica e 1/3 das mortes em acidentes nas estradas 31 bilhões de dólares
Grã-bretanha 88% 22,6% 9,6% Mais de 150 mil internações hospitalares, 1/3 de todos os atendimentos de emergência e uma em cada sete mortes no trânsito 25,4 bilhões de dólares
Itália 75% 11,8% 2,5% De 30% a 50% das mortes em acidentes nas estradas, 20% das hospitalizações de emergência 9 bilhões de dólares
Dinamarca 97% 23,5% De 3% a 4,3% 4,6% do total de mortes, 26,6% das mortes em acidentes de trânsito e 41% das mortes em acidentes nas estradas. Dados não relatados
Holanda 84,2% 20,1% 10,9% 9,8% das mortes em acidentes de trânsito 3,3 bilhões de dólares
Finlândia 92,6% 9,2% 8% 14,6% das mortes ou ferimentos em acidentes nas estradas e 35% dos que cometeram suicídio Dados não relatados
Estados Unidos 66,1% 11,4% 15,9% 28,7% das internações, 41% das mortes nas estradas, 12,5% dos agressores sexuais 184,6 bilhões de dólares
Japão 86,5% 27,6% 9,1% Quase 50% das mortes em acidentes de trânsito, 12,1% das mortes violentas no país 5,7 bilhões de dólares
Brasil 77,2% 4,6% 22,8%* 20% das hospitalizações por problemas mentais são relacionadas ao uso de álcool e outras drogas, 18,8% dos adolescentes que tentam o suicídio estão alcoolizados. Dados não relatados
*Dado pesquisado somente nas grandes capitais

É importante esclarecer que um alcoólatra não precisa obrigatoriamente ser internado para se tratar: cada caso é um caso e hoje existem outros modelos de tratamento. Mas é preciso alertar que o álcool embriaga a família. “A doença gera ansiedade e desagregação na família, que dificilmente sai do problema sozinha”, explica Fátima Rato Padin, psicóloga com especialização e mestrado na Unifesp. Os grupos de ajuda mútua, como Amor Exigente e Al-Anon, segundo Fátima, têm filosofias próprias e não servem para todos. Mas a família não deve desistir porque procurou ajuda e não deu certo. “Ela deve procurar profissionais especializados em dependência química, que vão acolher sua angústia, fortalecê-la e orientá-la, para que ela possa levar o alcoólatra a se tratar”, diz Fátima, que salienta que os tratamentos não podem ser iguais porque as pessoas têm graus de dependência diferentes. Fátima coordena o Alamedas, Núcleo de Reabilitação Psicossocial da Uniad, em São Paulo – um serviço ambulatorial de atenção diária iniciado em 2008, que coloca uma equipe composta por psicólogos, médicos, terapeutas ocupacionais, acompanhantes terapêuticos, psicopedagoga e neuropsicóloga trabalhando pela reintegração social do dependente químico. Esse atendimento é realizado conforme a disponibilidade financeira e de horários do paciente.

Para o dr. Laco, do Comuda, a família adoece junto e muitas vezes deixa o alcoólatra chegar ao estágio mais avançado da doença. Os sintomas que indicam que a situação está grave são: tremores nas mãos pela manhã; problemas de memória, concentração e raciocínio; queda de produtividade, dores diversas (como abdominal e muscular); e manchas pelo corpo, que podem evidenciar problemas hepáticos. “É comum o homem falhar sexualmente, ou mesmo ficar impotente temporariamente nessa fase”, afirma o dr. Laco. “E quando eles saem da clínica continuam em recuperação e podem ter dificuldades de memória, de concentração e de restabelecimento do convívio social por um bom tempo. Internação é para 10% a 20% dos casos. O que a família precisa entender é que não adianta negar ou minimizar o abuso do álcool que está causando problemas e muito menos acreditar que tudo mudará magicamente, ou que ninguém mais percebe o que está acontecendo.”

Romolo Gresta, economista de 62 anos, é um caso raro, pois parou de beber há cinco anos sem qualquer tratamento. Ele consumia uísque, cerveja e cachaça em grandes quantidades desde os 14. Quando seu filho Remo, do segundo casamento, tinha oito anos, deu-lhe um bom motivo para parar e pensar: “Eu moro em Niterói, e o Remo, em Minas”, conta Romolo. Ele estava me visitando e eu quis levá-lo a uma lanchonete, mas ele disse que eu tinha bebido muito e ele não queria pagar mico. Respondi que ele nunca mais me veria beber – e cumpri isso a partir do dia seguinte”. Romolo sentiu muita falta do uísque nos primeiros meses, mas percebeu também que nunca saía com uma mulher sem beber e jamais viajava sem conhecer todos os bares do lugar. Hoje ele só toma água mineral com gás, gelo e três fatias de limão. “Eu curto muito mais, fico até tonto! Tudo ficou melhor sem álcool, desde o sexo até dormir e comer. Meu filho está orgulhoso e outro dia me liberou para uma cervejinha. Mas eu não sei beber. Tenho certeza que, se tomar uma dose, vou embora…”

*”Nos últimos anos, especialistas vêm adotando os termos alcoolista e alcoólico para substituir a palavra alcoólatra que, segundo eles, carrega em sua etimologia o sentido estigmatizante de “adorador” do álcool


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