Leia duas visões da ARTE!Brasileiros para o Método Abramovic

Divididos em grupos, nós, uns cem voluntários vindos de todas as áreas, somos a matriz de uma trama que não conhecemos - Foto: Divulgação
Divididos em grupos, nós, uns cem voluntários vindos de todas as áreas, somos a matriz de uma trama que não conhecemos – Foto: Divulgação

Método Abramovic em duas horas e meia de imersão
Dificuldade de concentração, um dos desafios para exercitar os limites do corpo e da mente proposto pela artista sérvia 
Por Leonor Amarante

Minha expectativa de “viver” o Método Abramovi era resultado da nostalgia de uma revolução que nunca existiu na arte. Sigo os passos de Marina desde quando ela atuava com Ulay e encenava performances desafiadoras. Logo que entro no espaço reservado à “experiência”, sinto o frio do galpão do SESC Pompeia como uma antessala de um teste dessas performances em que o artista não participa diretamente, mas apenas a dirige.

Divididos em grupos, nós, uns cem voluntários vindos de todas as áreas, somos a matriz de uma trama que não conhecemos. Sem sapatos, em silêncio absoluto, chegamos disciplinados a uma sala onde uma televisão emite as primeiras instruções, ininterruptamente, como inspirar e expirar, movimentar-se, etc. Naquele momento, queria ter dito que qualquer imagem exige tempo para que o olhar varra a sua superfície e transfira para o cérebro o que é exibido. Sem chance. Tudo é cronometrado e rápido.
Estava bem desconfortável dentro do ambiente “cenográfico”. Mesmo como jornalista e curadora, defensora da inovação, senti-me bizarra ao mergulhar no desconhecido como protagonista.
No espaço seguinte, com fones de ouvido para bloquear qualquer ruído, sinto-me melhor, pronta para começar a “dança” entre lugares cheios e vazios. De repente, lembrei-me da francesa Anne Cauquelin, redatora-chefe da Revue d´Esthétique, comentando que o espaço não preexiste ao uso que se faz dele. É, ao contrário, “o uso que define o lugar como lugar, que tira o espaço de sua neutralidade natural para artificiá-lo, ou seja, habitá-lo”.

Ouvi a Anne falar isso há algum tempo, mas só agora tive todo o tempo do mundo para digeri-lo. Divididos em grupos, mas unidos pela fascinação, coexistimos em uma arte expandida, uma espécie de retorno ao primitivo. Convidados a nos deslocar em espaços de tempo divididos matematicamente em frações de 30 minutos, não consigo encaixar o que vivia a nenhuma criação artística. A contemporaneidade tem mesmo mais a ver com a condição do que com a definição.

Conduzidos pelos “facilitadores”, artistas engajados no projeto, exercito os silêncios e faço especulações sobre a eficácia do Método, como fragmento de um projeto maior. Falo gestalticamente do que Marina propõe ao se hospedar em um lugar afastado, com um grupo pré-selecionado de artistas para exercitarem os limites de suas mentes e corpos, e nus serem desafiados a tomar banho em um rio gelado, às duas horas da madrugada, saindo picados por insetos.

Passei de uma etapa a outra sentindo o tempo como categoria primordial. Com qualquer julgamento posto entre parênteses, procurei mergulhar em mim mesma, mas foi difícil. Dias depois, descobri em um dos encontros promovidos por Marina que outras pessoas revelaram a mesma dificuldade. Como resposta, ela afirmou que hoje as pessoas estão coladas em seus computadores, celulares, e por isso têm dificuldade de “sobreviver” por duas horas sem esses aparatos. Concordo só em parte com ela.

Não sei como Marina pensou a aplicação do Método em outros lugares, uma vez que nenhuma obra é igual a si mesma, principalmente quando deslocada para outro local. No SESC, o fato de um grupo presenciar o que ocorre com o grupo seguinte, quebra o momento presente e esvazia o “mergulho vertical” proposto. Enquanto meu corpo e mente se deslocam para uma ação proposta como, por exemplo, andar menos de 10 m em meia hora, pude me aliviar do fardo desse passeio em câmara lenta, ao ver que na etapa seguinte o outro grupo já repousa em uma cama com cristais por meia hora. Essa dificuldade de concentração aparece em outras fases, quando mesmo com os fones de ouvido percebemos a euforia dos próximos participantes na fila de espera para entrar na próxima seção.

Ao cumprir todas as etapas propostas, pensei no que os gregos chamavam agón, “uma luta, um conflito”. No Método, não há agón, o tempo presente tem estatuto de obra e não de ação.

Método Abramovic e eu
“Se a performance é ação em tempo real, não é só o artista que deve viver essa experiência”
Por Fabio Cypriano

Em 2010, eu vi a exposição The Artist is Present, no MoMA de Nova York, mas não me sentei na cadeira à frente de Marina Abramovi. As filas não eram tão grandes, mas, como não se sabia quanto tempo era preciso esperar, resolvi voltar outras vezes para tentar novamente. Voltei, e não sentei por conta de filas. Até hoje me arrependo da falta de paciência.

Por isso, logo que foi anunciado uma sessão para jornalistas do Método Marina Abramovi, antes da abertura ao público de Terra Comunal, não hesitei em me inscrever. Segundo a assessora de imprensa, fui o primeiro da lista.

Durante uma hora, o Método foi reduzido para os jornalistas, envolvi-me sem preconceitos. Em um grupo com vários amigos, e outros conhecidos nem tanto, poderia até ser difícil. Não foi. O tampão contra ruídos nas orelhas dava uma espécie de isolamento físico, já que, por se tratar de uma experiência coletiva, outros sons poderiam dispersar.

De todas as etapas, a que mais me motivou foi caminhar muito lentamente por um curto espaço. Dei a sorte de essa ser minha primeira atividade e creio que ela deu o tom, foi como desacelerar de forma brutal, após o alívio de ficar sem celular, o que, acho, há anos não acontecia.

Ver o resto da mostra após esses exercícios fez toda diferença. Não porque eles possam ter desencadeado algum processo metafísico, como muitos desejariam, mas por ter um tipo de conexão vital com a arte como há muito não sentia. Acostumado a mostrar em aulas os vídeos de Lygia Clark colocando os objetos relacionais nos corpos de seus pacientes, pela primeira vez tive uma experiência real próxima ao que exibi a tantos alunos. O que pareceu melhor, já que, em comparação com Clark, foi ter esse tipo de experiência sem resquícios hippies, mas em uma atmosfera absolutamente contemporânea, em diálogo com a brilhante arquitetura de Lina Bo Bardi.

Contudo, o Método é apenas uma parte da mostra, e o que de fato me sensibiliza é testemunhar como Abramovi consegue que suas últimas exposições sejam cada vez mais complexas. Em Terra Comunal, o que me parece essencial é a valorização da presença do outro, seja durante a imersão no Método, seja no convite a artistas brasileiros para desenvolverem performances. Com isso, ela deixa de ser o foco central da exposição, para criar um espaço real de experiência compartilhada.

Há um componente ético nessa postura que admiro muito: se performance é ação em tempo real, não é só o artista que deve viver essa experiência. Para quem alcançou o status de celebridade como Marina Abramovi, em 2010, após sua retrospectiva no MoMA, essa nova etapa me parece bastante arrojada.


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