Leitura na Pipa

Ler não era exatamente um prazer para a menina Cíntia Junqueira. Principalmente quando se via obrigada a decifrar Victor Hugo ou Jean Paul Sartre e depois ser sabatinada pelo pai, com pouco mais de dez anos de idade. Nascida em Osório, cidadezinha do litoral norte gaúcho, filha de novos pobres, como ela mesma define sua família, Cíntia, querendo ou não, cresceu em meio à biblioteca do pai – um homem extremamente culto. “Meu pai pegava os gibis e rasgava. Eu queria ler Mickey Mouse, mas tinha de ler Euclides da Cunha. Já imaginou? Eu tinha 12 anos!”, lembra. A severa rotina literária durou até o dia em que resolveu ganhar o mundo. Com a mochila nas costas, ela saiu de Porto Alegre com 16 anos de idade e passou por Garopaba (SC), Rio de Janeiro, Ouro Preto (MG), até cruzar fronteiras e chegar à Argentina, Chile, Venezuela, Peru e Equador – onde teve sua filha. Ao morar na Colômbia, começou a se envolver com drogas. “Depois disso eu fui pra Suíça, Espanha, Holanda, Alemanha, Itália… mas eu estava muito mal. Eu era traficante e sem nada na cabeça”, diz. Ela costumava fazer a ponte-aérea entre Bolívia, onde comprava droga, e Itália, onde vendia. “Era barra pesada”, sintetiza.

Foram 12 anos longe do Brasil, época em que Cíntia, hoje com 44 anos, viveu o terror do mundo das drogas – ganhou muito dinheiro, mas tornou-se refém do seu vício. Em 1994, estava em um bar na Espanha, assistindo à final da Copa do Mundo totalmente sob o efeito de drogas, quando foi abordada por um espanhol. “Ele perguntou de onde eu era e quando disse que era brasileira ele me disse: ‘Você é uma idiota. Veio do País mais lindo do mundo, com praias maravilhosas, para se matar aqui. Sua Seleção acabou de ganhar o Mundial e você nem piscou. Por que você não vai embora salvar sua vida?’, insistiu ele”, lembra. E ele ainda deu a dica. “Vá morar em Pipa, tem um amigo meu que mora lá.” Seguiu à risca os conselhos do desconhecido, mas, antes, deu uma passada em Amsterdã, de onde saiu carregada de droga. “Cheguei em Pipa e virei a rainha do ácido. Vendia para todo mundo.” Até o dia em que foi flagrada com 500 drágeas de LSD.

Memórias do cárcere
Presa na Penitenciária João Chaves, em Natal, sofreu os horrores da abstinência de heroína, e descobriu outras realidades. “Lá, eu era a única que sabia ler. As outras meninas sempre vinham pedir para que eu escrevesse um bilhete, uma carta para os namorados.” Com o tempo, ela tornou-se uma espécie de assistente social das outras presas. “O diretor me chamou e pediu que começasse a organizar os papéis das meninas… distribuir camisinha, fazer uma porção de coisa.” Esse trabalho acabou fazendo um enorme bem a ela. “Eu já não tinha mais problema com droga. Eu praticava exercício, corria no campo. Comecei a mudar.” Ao sair da prisão, após quase três anos, Cíntia fez uma viagem libertadora para Pipa, onde, perto da praia e longe das drogas, redescobriu sua paixão pela literatura e deu a volta por cima. Decidiu colocar em prática o que mais sabia fazer na vida: ler. Com o incentivo de amigos e moradores locais, em 1998 ela abriu um sebo. “Com o primeiro salário que eu recebi trabalhando como garçonete em um bar, aluguei uma casa, peguei os dez livros que eu trouxe da prisão, entre eles Grande e Estranho é o Mundo, do peruano Ciro Alegría, e O Andarilho das Estrelas, de Jack London, e coloquei numa prateleirazinha em frente à garagem.” Nascia ali, em meio à exuberância da Praia da Pipa, o Book Shop, um espaço dedicado à cultura e, sobretudo, à literatura. Graças às doações de moradores e turistas, o local hoje possui um acervo com mais de 2.000 livros e passou a ser um importante ponto de convergência cultural, onde as pessoas podem alugar livros, jogar xadrez ou apenas se encontrar para discutir os problemas da comunidade.
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BOOK SHOP PEGA FOGO

Fahrenheit 451. Em graus Fahrenheit essa é a exata temperatura na qual o papel do livro pega fogo. No livro homônimo, o escritor Ray Bradbury revisita o preconceito da Idade Média e pinta um futuro sombrio para a história, quando todos os livros seriam proibidos e queimados. Virar cinzas. Esse ia sendo também o destino dos livros do Book Shop, no dia 19 de outubro passado, quando um curto-circuito fez derreter o computador, a geladeira e o ventilador da pequena casa de cultura. “Eu estava na casa de uma amiga, às cinco da manhã, vendo a Fórmula 1. O telefone tocou, era um pescador avisando que tinha fumaça saindo do Book, eu saí correndo…

Foto: Rita Gava
Cheguei lá, estavam alguns pescadores com mangueira (um perigo, já que foi curto-circuito), e tudo, mas tudo mesmo, estava preto. Os quadros, as paredes, os livros, os tapetes, meu colchão e até a Mafalda.”
Alucinante. Cíntia sintetiza o episódio dessa forma. “Eu fiquei em estado de choque. Senti uma tristeza infinita, olhando, andando de um lado para o outro.” Sem a ajuda dos amigos, ela revela que não teria sido possível salvar o Book Shop. “Começaram a chegar meus amigos, uns 20. Tiraram tudo, limparam os livros, trouxeram lava-jato. Foram maravilhosos. Me deram toda fiação elétrica, mão-de-obra, tintas, lavagem de roupas, geladeira, ventilador e, sobretudo, amizade, que é o mais importante. A solidariedade humana é incrível”, comemora. Depois do susto, o Book Shop recebeu pintura nova, trocou a fiação problemática, mas, para a dona, “a grande felicidade foi ver a quantidade de pessoas que sabem da importância de uma biblioteca nesta cidade, porque todos ficaram muito preocupados e solidários”. A maior dor ela revela ter sido o ato de colocar os livros de volta às prateleiras. “Estavam todos chamuscados, pretinhos e bem passados, mas as pessoas estão dizendo que isto os valoriza, pois este incêndio foi um acontecimento e é um privilégio ter um livro sobrevivente.” Bem-humorada como sempre, Cíntia brinca que só falta agora passar por uma enchente. E mesmo que isso aconteça, ela já tem a receita: “O negócio é superar e dar a volta por cima, pois quando se tem amigos tudo fica mais leve”.

Em 2004, o Book Shop passou a funcionar nas dependências da pousada de um amigo de Cíntia, no coração da Praia da Pipa, numa viela arborizada cujo nome é Beija-Flor. Numa das paredes do sebo estão expostos quadros com imagens dos autores prediletos de Cíntia: Oscar Wilde, Thomas Mann, José Saramago, Albert Camus, Dante Alighieri, Jorge Luis Borges, García Márquez, Franz Kafka, Julio Cortázar, Fiódor Dostoiévski, Reinaldo Arenas e Guimarães Rosa. O lugar também aglutina livros de toda natureza e em vários idiomas, frutos do escambo com os estrangeiros. Obras raras e antigas como Guerra e Paz, de Tolstói, original em russo, e uma coleção do francês Visconde de Chateaubriand, publicada em 1806, podem ser encontradas por lá. Já para as obras consideradas pouco “culturais”, a dona do local reserva a forca: no teto do Book Shop estão vários livros pendurados pelo “pescoço”, fato que causa estranhamento e curiosidade por parte dos visitantes. O castigo medieval não deixa de fora nomes como Paulo Coelho, Sidney Sheldon e Dan Brown. O método adotado pela proprietária para emprestar um livro é o seguinte: “Eu alugo um livro por R$ 5, pelo período de uma semana. Mas se o turista ficar por um tempo na Pipa e tiver um livro que queira doar, ele pode ler aqui gratuitamente”. Cíntia abre o Book Shop às quatro da tarde e o deixa aberto até o “ultimo freguês”.

Leitura na Praça
Com o sucesso do Book Shop, Cíntia resolveu expandir seu trabalho cultural. Passou a estimular e divulgar a leitura entre as crianças e jovens da Praia da Pipa e dos outros 11 distritos vizinhos por meio do projeto Leitura na Praça. Consciente da falta de acesso à leitura por parte da maioria dos moradores da região, Cíntia reuniu alguns amigos para ensinar, durante os finais de semana, o be-a-bá da literatura para a garotada das comunidades por onde passa. Contando somente com o apoio de alguns comerciantes locais, que arcam com o custo de lanches para as crianças, o projeto engloba também apresentações teatrais e outras atividades lúdicas, como desenho e pintura. Nas comunidades por onde o Leitura na Praça se instala, o grupo sente o total acolhimento dos moradores, até dos pais das crianças. “Eles sempre ficam por perto, alguns se sentam e tentam ler os livros com os filhos. A gente percebe que eles querem que seus filhos aprendam a ler e a escrever para que tenham um futuro melhor que o deles. Eles nos chamam de ‘As mulheres dos livros’”, ressalta. Os tapetes espalhados pelas praças transformam-se em verdadeiras ilhas literárias. Os livros ficam em estantes feitas de tijolos e tábuas. Em cada tapete, um ou dois monitores coordenam as atividades. “Esse projeto é fundamental. A educação e a literatura podem transformar a vida das pessoas. Aconteceu comigo, pode acontecer com essas crianças também.”


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