Lembranças caipiras

Projeto – Maria Alice decidiu reunir no antigo armazém de café da fazenda o material garimpado em suas andanças pela região

Uma vez no portão da Fazenda Capoava, em Itu, interior de São Paulo, ainda é preciso vencer 2 km de estrada de terra para chegar à sede do hotel fazenda de mesmo nome. Lá, entre as edificações erguidas desde o século 18, encontra-se o Espaço Memória Fazenda Capoava – um pequeno museu que constitui uma verdadeira joia para os interessados em conhecer um pouco da história da formação daquela região, localizada a apenas 100 km da capital, mas uma das principais portas de entrada para o desbravamento das terras do noroeste do Estado.

Um rico acervo de objetos de uso cotidiano dos moradores daquelas terras foi garimpado, ao longo de pouco mais de dez anos, pela socióloga Maria Alice Setubal, em visitas a antiquários e fazendas de Itu e da cidade vizinha de Porto Feliz. Nesse levantamento, a pesquisadora fez algumas descobertas importantes sobre hábitos e costumes locais, sobretudo das mulheres dos fazendeiros. Cabia a elas, até o início do século 20, a administração efetiva das propriedades rurais, enquanto os maridos passavam a maior parte do tempo em expedições para abrir novas áreas. “Só na década de 1920, quando essas famílias passaram a se instalar na capital, as mulheres tiveram o seu papel restrito à educação dos filhos”, conta Maria Alice.

Painéis interativos com reproduções de obras de arte, exibições de vídeos e animações em três dimensões tornam a visita mais dinâmica, embora a principal atração seja o local escolhido para abrigar o espaço. A construção localizada às margens do riacho que corta a propriedade, à direita da casa principal, até 1968 era uma tulha – espécie de celeiro para armazenar o café colhido na fazenda. Daí a presença de uma antiga máquina de beneficiamento de grão, importada da Itália no início do século 20, e uma grande roda, antes movimentada pela força do rio, ligada a engrenagens visíveis graças ao piso transparente que recobre parte do museu.

Em suas pesquisas sobre a história da propriedade, Maria Alice remontou até os tempos das capitanias hereditárias. Descobriu que o nome Fazenda Capoava surgiu apenas em meados do século 19 e seria substituído por Fazenda Japão, em 1928. Somente em 2000, quando as terras foram adquiridas por ela e pelo marido, Paulo de Almeida Prado, a propriedade voltou a ser conhecida pelo nome original. “Procuramos contar aqui pouco mais de 400 anos de história da formação de São Paulo e da região”, orgulha-se a curadora.

O visitante é conduzido a outras épocas, o tempo em que os bandeirantes cruzavam os municípios nas expedições conhecidas como monções, transportados por batelões – barcos movidos a remo – pela bacia do rio Tietê. Quem ouve a história pode visualizá-la graças a uma escultura, produzida pelo artista Mello Witkowski Pinto especialmente para o museu. “Contamos também as histórias das passagens das tropas de mulas do Rio Grande do Sul até o centro de negócios em Sorocaba. O chique era ser fazendeiro, mas quem movimentava mesmo a economia eram os tropeiros.”

[nggallery id=16096]

Ainda sobre o universo feminino, o espaço dedica uma grande área à culinária típica da região, com a descrição dos pratos consumidos em diferentes épocas e conforme a classe social. Os utensílios ilustram as diferenças entre a cozinha “de dentro”, onde as donas das fazendas faziam doces e quitutes, e a “de fora”, no terreiro, onde os empregados faziam o trabalho considerado sujo, como matar e preparar animais para o consumo.

A divisão social das cozinhas é a razão de os quitutes constituírem a maioria das receitas típicas da culinária caipira reunidas no museu. Reproduzidas a partir dos cadernos das mães e avós de Maria Alice, Paulo e amigos, as receitas são um dos principais destaques do Espaço Memória Fazenda Capoava, e também uma das mais promissoras frentes de expansão do acervo. Uma central informatizada será instalada para registrar as receitas que os visitantes quiserem deixar. Com toque contemporâneo, o espaço também mostra as releituras dos pratos tradicionais feitas pela chef Heloísa Bacellar, do restaurante paulistano Lá da Venda.

Única filha mulher entre os sete herdeiros do banqueiro Olavo Setubal, do Itaú, falecido em 2008, Maria Alice não se envolveu nos negócios da família. Neca, como é conhecida pelos parentes, funcionários e amigos – um apelido que derivou do costume do pai de chamá-la de Boneca –, optou por dedicar-se à causa não menos nobre da educação inclusiva, à frente da Fundação Tide Setubal e do Centro de Pesquisa para Educação e Cultura (Cenpec), cujos conselhos de administração continuam a ser presididos por ela.

A dedicação à Fazenda Capoava tornou seu tempo mais escasso, mas não a afastou das atividades na capital, onde procura estar ao menos três dias por semana. Além das instituições que preside, Maria Alice integra os conselhos de entidades como o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), Instituto Natura, Fundação Victor Civita e Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Participante ativa do chamado terceiro setor desde os anos 1990, ela conta ter acompanhado nas últimas décadas mudanças importantes no perfil das ONGs.

“As causas continuam a ser relevantes, mas o perfil é menos ideológico, e a entrada das empresas passou a dar mais poder de atuação, de arrecadar recursos e negociar com governos”, afirma. “Hoje, o terceiro setor é uma opção mais do que viável para os jovens profissionais, e percebo isso pelos currículos que recebo no Cenpec. Há 25 anos, praticamente só tínhamos educadores e pedagogos entre os candidatos. Agora, aparece gente da área de comunicação, das artes e muitos outros.”

Por outro lado, a socióloga nota um “debilitamento” das ONGs de menor porte, seja pela redução das fontes de recursos internacionais – resultado da crise mundial – ou de certo endurecimento de áreas do governo, por conta dos muitos problemas envolvendo entidades de fachada. “Existe uma movimentação junto à administração federal em favor de uma normatização para o setor, mas não será fácil”, diz.

Segundo Maria Alice, o terceiro setor pode assumir parte do mérito pelos avanços registrados pelo País na área da educação, mas ainda há muito a ser feito. “O buraco era tão fundo que a gente nem enxergava a profundidade”, avalia. “O Brasil conseguiu levar as crianças para a escola, mas as faculdades precisam formar professores capazes de lidar com a população de alta vulnerabilidade. É por isso que as escolas de cidades médias se saem melhor nas avaliações de ensino do que as grandes, onde há ilhas de excelência e de vulnerabilidade.”

Diagnosticado o problema, Maria Alice tem direcionado as pesquisas mais recentes do Cenpec para o desenvolvimento de programas que facilitem a inclusão das crianças com situação familiar mais precária no contexto educacional. E, em outra direção, na busca de meios de aumentar a interação das escolas com as comunidades.

Foi, aliás, no Cenpec que Maria Alice começou a desenvolver suas pesquisas sobre o Estado de São Paulo. Coordenou a equipe multidisciplinar responsável pelo projeto Terra Paulista, que produziu um conjunto de livros, documentários, exposições e outros materiais sobre a formação dos municípios interioranos.

“O olhar de pesquisadora e de educadora estava presente quando compramos a fazenda. Decidimos fazer o hotel em um local que tivesse uma sede histórica, que permitisse o contato com a natureza”, conta Maria Alice. O hotel é muito frequentado por estrangeiros, sobretudo europeus, mas abre o museu para visitas de escolas e empresas. “Nossa marca é um turismo com estilo brasileiro, mas também cultural e educativo.”


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.