Lembranças de um verão moscovita

Como nas outras manhãs ensolaradas daquele verão moscovita, o início de mais uma aula do curso da Sociedade Europeia de Neurociências de 2004 não parecia anunciar nenhuma surpresa inusitada. Apesar de toda Moscou viver apavorada pelos últimos ataques dos guerrilheiros chechenos, razão pela qual todas as cestas de lixo da cidade haviam sido removidas pelo governo, levando as pilhas usuais de garrafas de vodka a atingir o meio do céu azul pálido da capital russa, e das condições precárias do instituto do cérebro da cidade, criado pessoalmente por Joseph Stalin, onde Pyotr Kuzmich Anokhin (1898-1974), um dos discípulos de Pavlov, se transformou em um dos maiores neurocientistas russos do século XX, tudo parecia rotina. A despeito dessas condições precárias de trabalho e do fato de que nem professores, nem alunos recebiam seus salários e bolsas há meses, o entusiasmo demonstrado por todos esses colegas russos era contagiante. O prazer de descobrir e argumentar, apaixonada e perpetuamente, ambas características impressas no genoma russo manifestavam-se a cada instante e pareciam alimentar cada um daqueles cientistas proletários.

Enquanto eu ainda conversava com meu filho Pedro, um dos estudantes pediu um minuto para fazer um anúncio para toda a classe. Levantando-se com um envelope nas mãos, ele começou a falar em russo. Surpreendido, uma vez que o inglês era o nosso único elo linguístico, eu fiquei sem saber o que fazer. Ao término do seu pequeno anúncio, saudado por risos e aplausos efusivos de toda a plateia nativa, o mesmo aluno começou a traduzir o anúncio e a me entregar o tal envelope. Para meu completo choque, ao abri-lo eu encontrei três ingressos vermelhos cintilantes. Como o alfabeto cirílico nunca foi o meu forte, tive de esperar alguns segundos a mais para descobrir que, como gratidão pelas minhas aulas, os estudantes e professores russos estavam me presenteando com três ingressos para a partida de futebol daquela tarde entre o CSKA de Moscou, o ex-time do exército vermelho da União Soviética, e o Rotor Futebol Clube de Volvogrado, a cidade imortalizada, como Estalingrado, durante as batalhas mais sangrentas de toda a Segunda Guerra Mundial. Um dos times mais famosos da União Soviética, o Rotor era carinhosamente conhecido por alguns dos seus fãs como o “segundo exército de Zhukov”, em honra ao grande marechal soviético, Georgy Zhukov, que derrotou os nazistas em todas as partes da Rússia.

Emocionado pela singeleza e ternura do gesto dos agora meus camaradas moscovitas, eu quase perdi a consciência ao descobrir que o técnico do CSKA contaria com a sua mais nova contratação: o jovem centroavante brasileiro Vagner Love, recém-adquirido, acreditem se quiser, do alviverde imponente da rua Turiassu; o mesmo Palmeiras que habita meu sistema límbico, há exato meio século. Para ser honesto, eu nem me recordo como consegui terminar essa última palestra.

A única coisa de que eu me lembro foi retornar às pressas ao nosso hotel, às margens da Praça Vermelha e do Kremlin, para que Pedro e eu pudéssemos extrair da minha mala o “kit emergência de exilado”. Formado pelas camisas do Palmeiras e da Seleção Brasileira, esse kit que me acompanha pelo mundo afora há mais de 20 anos, só pode ser aberto em casos extremos de demanda da brasilidade insensata e irracional. Já devidamente paramentados com as cores nacionais e palestrinas, que na realidade se confundem por história e amor, lá fomos nós, na companhia do meu amigo e colaborador Misha Lebedev, para o estádio do Dínamo, onde o prélio seria disputado.

Logo na entrada do estádio, já foi possível reparar que esse não seria um jogo qualquer. Flagrados por uma câmera indiscreta, a nossa presença, em explícitos verde, amarelo e branco, foi anunciada aos brados no telão do estádio, provavelmente pela nossa total (e potencialmente fatal) falta de sincronia com a moda vigente na arena, uma vez que dentro do estádio se acomodavam cerca de 40 mil torcedores russos, todos, sem exceção, vestidos da ponta do cabelo ao dedão do pé no mais profundo vermelho que as minhas retinas já puseram os olhos. Caminhando com aquela camisa verde imaculada, e a sensação de morte iminente que emanava de todos os cantos daquela multidão avermelhada, eu vi Misha (com sua camisa do CSKA, claro) trocar vários apertos de mão com torcedores pouco amistosos que apontavam insistentemente para Pedro e eu.

Momentos depois, já nos nossos lugares na fila do gargarejo, bem na altura da saída do túnel, Misha me disse às gargalhadas que os torcedores ao redor estavam muito impressionados com o fato de que dois brasileiros tivessem atravessado meio mundo para despencar na Rússia só para assistir ao Vagner Love jogar um clássico moscovita! Foi nesse momento que Pedro e eu tivemos de começar a recusar generosas doses de vodka e aceitar apertos de mãos, abraços e beijos (na bochecha) solidários! A simples revelação da origem da nossa certidão de nascimento foi suficiente para chancelar a nossa assimilação ao exército vermelho, mesmo usando a grife inapropriada.

GLÓRIA O dia que Vagner Love derrotou sozinho o exército do marechal Zhukov

Aliviado pela mudança de atitude dos partisans do CSKA, de repente eu senti o estádio todo explodir – tal qual uma supernova que esqueceu de tomar o seu ansiolítico – numa chuva de fogos de artifício que anunciava a entrada do glorioso “scratch” do CSKA, logo ali, na frente da fila do gargarejo onde estávamos sentados. No meio da densa névoa vermelha que tomou conta de toda a arena, eu mal consegui vislumbrar quando uma série de torres loiras e branquicelas, todas vestidas de impecável vermelho, saíram do túnel em direção ao gramado. No final da fila, meio perdido, meio sem jeito, sem saber muito bem para que lado correr (ou fugir), eis que adentrava ao gramado o nosso herói Macunaíma: Vagner Love, com trancinhas e tudo mais. Nesse instante, dois palmeirenses emocionados chegaram perto do alambrado para saudá-lo com as palavras de ordem, os cantos de fidelidade e paixão, que só aqueles que já frequentaram as marquises do velho Parque Antártica sabem de cor. Qual não terá sido o espanto daquele pobre operário do futebol, agora alinhado entre seus novos camaradas eslavos, ao se deparar com dois espécimes da mais pura cepa de carcamanos do Bexiga, em pleno centro de Moscou? Até hoje eu me pergunto se Vagner Love se sentiu feliz ou aterrorizado com a visão daqueles dois torcedores uniformizados, gritando seu nome e o do seu primeiro lar futebolístico. Fato é que tal manifestação de júbilo (da nossa parte, não da dele) mereceu a nossa segunda aparição no telão, para delírio da torcida do CSKA que já nos havia adotado e garantido nosso suprimento de vodka por cinco gerações futuras.

Bola em andamento, como previsto, o nosso compatriota arrasou com o jogo. Levando à loucura, minto, à beira do suicídio profissional, cada um dos pobres incautos defensores do Rotor, cada vez que ele tocava na bola. Vagner Love marcou dois golaços. Em um desses, talvez tomado de lembranças de tempos passados no meio da incomparável massa palestrina, ele se perdeu por completo. Atravessando todo o campo em disparada doidivana, para delírio da massa vermelha, ele veio celebrar o seu feito com os únicos dois presentes naquela multidão que podiam entender, verdadeiramente, o que é ser um brasileiro de alma, brazuca de coração, perdido, sozinho, sonhando em fazer bonito, do outro lado do mundo, para quem sabe um dia poder voltar para casa e jogar no campinho de terra da esquina, onde toda a aventura começou.
Embora tenha sido Vagner Love que ganhou o jogo para o CSKA, Pedro e eu fomos praticamente promovidos à condição de mascotes do time. Depois de um sem número de apertos de mão, abraços e demonstrações de irmandade futebolística, Misha conseguiu nos levar para jantar em um típico restaurante da República da Geórgia, perto do estádio. Por volta da meia-noite, sem que ninguém nos avisasse de nada, os garçons começaram a distribuir copos de vodka e porções de caviar para todos os presentes. À meia-noite em ponto, a banda que tocava no salão central interrompeu a música e, do nada, começou a entoar a Internacional Socialista, hino oficial da defunta União Soviética. Imediatamente, todos os presentes se levantaram e começaram a cantar o hino a todo pulmão. Ao término, em meio a assobios e aplausos, todos começaram a entornar suas vodkas e a comer o caviar, estrategicamente depositado na cavidade de pele que se forma entre o indicador e o dedão da mão.

Sorrindo marotamente, Pedro olhou-me e, do alto dos seus maravilhosos 16 anos, implorou sem palavra, só com um sorriso, o alvará para se juntar à celebração da massa soviética: “Só dessa vez!”. Foi ali então que, em um momento mágico de brasilidade, esses dois palestrinos, sem lenço e sem documento, brindaram abraçados, cantando num russoguês recém-aprendido, o dia que Vagner Love, sozinho, derrotou o exército do grande marechal Zhukov, numa tarde de verão em Moscou.


*Miguel Nicolelis, paulistano e palmeirense de nascença, é professor titular de Neurobiologia e codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra em Natal (RN). Faz parte do Conselho Editorial da Brasileiros.

Brava Gente Brasileira – EDIÇÃO 42

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