No começo, ele era quase um estranho em família. O pai e os tios tocavam as duas usinas de açúcar e álcool como o patriarca – Attílio Balbo – vinha fazendo desde 1946 e como fazia a maioria dos vizinhos da região canavieira paulista. Mas o agrônomo recém-formado tinha ideias muito diferentes para implantar naquele início da década de 1980. Já queria acabar com as queimadas de cana na colheita muito antes de isso se transformar em um acordo com o governo. Queria também deixar de usar adubos químicos e eliminar herbicidas, fungicidas, pesticidas e outros “cidas”. Queria cuidar do solo primeiro…
A família foi cedendo. Relutante a princípio: só um pedaço do canavial da Usina São Francisco, em Sertãozinho, São Paulo. Um teste. O jovem empenhou tempo, muita leitura e muito trabalho na pequena oportunidade. Plantou ousadia, eliminou custos, ganhou produtividade. Suas apostas deram certo. A família e os funcionários, aos poucos, se converteram. E a experiência se transformou em uma empresa pioneira no ramo de açúcar orgânico – a Native. Aquela dos sachês verdes que povoam muitas mesas de cafés pelo Brasil afora e de uma linha crescente de alimentos orgânicos nas prateleiras dos supermercados.
[nggallery id=14856]
Hoje, Leontino Balbo não é só o diretor da Native. É o nome brasileiro mais conhecido entre compradores de açúcar orgânico de 64 países. Também é o maior produtor de álcool orgânico para uso cosmético, usado, por exemplo, em toda a linha de outra empresa-ícone do universo ambiental, a Natura. Ainda é o inventor de implementos agrícolas adaptados para plantio, trato e colheita da cana verde. E é, sobretudo, o idealizador de um novo sistema de produção, batizado agricultura revitalizadora.
Essa multiplicação de funções nasceu da necessidade, é o preço do pioneirismo. Ao decidir eliminar a queima da cana, por exemplo, Leontino e sua equipe precisaram adaptar máquinas capazes de plantar e colher a cana sem queimar (ou cana crua, como se diz). Foram atrás de fabricantes dispostos a investir em novas máquinas, mas não se limitaram a fazer a encomenda. Sempre à base de muita observação, sugeriram mecanismos, corrigiram desenhos, testaram protótipos, ajustaram a tecnologia aos novos sistemas de produção exigidos.
Após anos de idas e vindas, o diretor da Native mostra o conjunto de colheitadeira e caminhão em ação e comemora: a safra 2011 deve render 63 mil toneladas de açúcar orgânico, 54 mil das quais para exportação. Ele chama a atenção para os pneus de alta flutuação utilizados na máquina e no veículo, bem mais largos que os encontrados em qualquer outro canavial e com a pressão cuidadosamente regulada. “Isso é para evitar a compactação do solo”, reitera, enquanto afasta a palha da cana com o pé e pega um punhado de terra com a mão para mostrar como o solo se encontra bem estruturado (ou bioestruturado, como ele prefere dizer).
A fertilidade viva dos solos é outro resultado de anos de observação e experimentação. Quem trabalha diretamente com a cana orgânica, logo aprende a chamar minhocas, centopeias e cupins pelo nome científico, diferenciando as espécies benéficas daquelas que podem virar pragas. Monitoramento e controle são as regras, seja qual for o novo organismo identificado. Ali na São Francisco não se extermina nenhum inseto nem fungo: a palavra de ordem é manejo. As pragas são combatidas com seus inimigos naturais, nada de venenos. Com muita paciência e convicção nas acomodações da natureza, Leontino garante equilíbrio no microuniverso do canavial, incorporando todos esses seres como minúsculos auxiliares de produção.
Se dá certo? Eventualmente, ele sofre derrotas temporárias, mas o balanço geral é muito positivo. Basta comparar as médias de infestação por broca para ter uma medida. A broca é uma lagarta que fura o caule da cana, causando quebra na produção de açúcar. Quando se trabalhava com o sistema tradicional de produção de cana, a infestação na fazenda São Francisco era de 11% do canavial. Hoje, com a cana verde, é de apenas 1%! Para manter esse percentual, Leontino conta com um exército de vespinhas criadas em laboratório (lá na fazenda mesmo) e liberadas no momento certo, no meio do canavial. O número é impressionante: um milhão de vespinhas por dia!
A tal cana verde ainda resiste melhor às flutuações do clima e tem produtividade acima da média paulista. Enquanto no Estado se produz em torno de 85 toneladas por hectare, com quatro cortes, a cana sem aditivos químicos de Leontino produz de 100 a 115 toneladas por hectare, proporcionando mais de cinco cortes. Além disso, em uma pequena parcela das terras, ele testa um sistema no qual a renovação da cana só aconteceria entre 10 a 20 anos em lugar dos atuais 6 a 7 anos. E com as mesmas 100 toneladas por hectare.
Perguntar a Leontino Balbo como ele obtém tão bons resultados é um risco, quase tão grande como o de aparecerem visitantes interessados em conhecer o processo de conversão da cana tradicional em cana verde (orgânica). Nem adianta estabelecer um horário ou prever uma apresentação curta: quando começa a falar, ele se esquece do relógio e estoura qualquer programação, puxando mais e mais fotos, mais e mais informações, até explicar tudo sobre a revitalização da agricultura que pratica.
Caso o assunto caminhe para o lado da biodiversidade então, aí os visitantes não vão mais embora! O fato de ter eliminado os venenos químicos trouxe de volta para os canaviais uma imensa variedade de formigas, besouros e outros bichinhos, que vivem e se alimentam em meio à palha da cana deixada no chão. Esses bichinhos atraíram mamíferos, aves, répteis e anfíbios, restabelecendo uma cadeia alimentar, exatamente como acontece nas matas em processo de regeneração.
Em 2002, Leontino Balbo procurou biólogos e ecólogos para acompanhar o que estava acontecendo e confirmou suas suspeitas: a biodiversidade na Fazenda São Francisco é alta e os animais silvestres não estão apenas de passagem, eles se abrigam, se alimentam e se reproduzem ali. O conjunto de canaviais orgânicos, matas ciliares, reflorestamentos com plantas nativas, riachos e várzeas conservadas da fazenda abriga pelo menos 324 espécies de vertebrados, das quais 45 são espécies ameaçadas de extinção! Isso inclui alguns predadores de grande porte, como jacaré, jiboia, gavião caboclo e onça parda.
Algumas regras de segurança precisaram ser revistas na empresa, a partir de tal constatação. A par da velha preocupação com invasores responsáveis por roubo e incêndios na cana, o cuidado em identificar (e coibir) caçadores foi incluído na rotina, assim como a instrução dos funcionários quanto à maneira de agir em encontros com a fauna. De sua parte, Leontino passou a circular pela propriedade munido de uma boa câmera fotográfica. Já flagrou uma família inteira de cachorro-do-mato instalada entre as ruas de cana, uma sucuri de peso à beira d’água e anda atrás de uma boa foto da onça parda.
Para compatibilizar as práticas agrícolas com a presença dos animais silvestres, às vezes o cronograma de corte da cana é alterado para dar tempo de os filhotes crescerem e abandonarem o ninho antes da máquina passar. As matas reconstituídas também foram enriquecidas com espécies frutíferas para servir de alimento e as canas consumidas por animais – como capivaras e macacos-prego – são absorvidas como perdas.
A fauna também se beneficia do programa de conservação das estradas internas da fazenda. Para evitar erosão, 30% das ruas por onde circulam os caminhões e as máquinas agrícolas já foram gramadas. “Quando o trabalho estiver completo, serão 800 km de vias gramadas para servir de pastagem para veados e outros herbívoros”, explica Leontino. “Esses animais são a nossa roçadeira natural, mantendo a grama bem aparada.”
Toda essa experiência agroecológica, aprendida na prática, agora vem sendo transformada em um livro pelo empresário. A expectativa é conseguir transferir para outros produtores e tipos de lavoura os princípios da agricultura revitalizadora. Leontino pensa, inclusive, em assessorar outros produtores rurais, orientando a conversão dos sistemas tradicionais em um tipo de produção muito além da agricultura orgânica ou do simples cumprimento do polêmico Código Florestal, na direção de uma agricultura capaz de conciliar alta produtividade com conservação ambiental e biodiversidade. Há quem considere tal meta impossível. Mas, cá entre nós, é bem o tipo de semente que o Brasil deveria por para germinar…
Deixe um comentário