Jorge Luis Borges escreveu: ”Talvez a velhice e o medo me enganem, mas suspeito que a espécie humana – a única – está em vias de extinção e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta“. E lá está ela, no centro do Rio de Janeiro, para provar que Borges estava certo. A Biblioteca ou Biblioteca Nacional, como se usa chamar, guarda “infinitos” nove milhões de itens e, neste ano, completou 200 anos de portas abertas ao público.
As datas, no entanto, não dão a medida precisa de sua idade. A Biblioteca desembarcou no Brasil em 1808, já armada de preciosidades e um tanto secreta. Apesar de ter sido inaugurada em 1810, o direito de consultá-la era apenas concedido a membros da Família Real e foi só em 1811 que o então príncipe-regente Dom João VI decidiu abri-la para pesquisadores, previamente autorizados por ele.
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Não se sabe se o cuidado era por carinho ou pelo valor da Biblioteca – na época, seus 60 mil itens já eram considerados valiosos (e foram vendidos ao Brasil, não doados). Dom João VI, temendo os saques das tropas francesas de Napoleão, fez com que viessem em três lotes para o País -, é por isso que talvez ela não seja “perfeitamente imóvel”, como quis Borges.
Peregrinação
Ao desembarcar por aqui, a Biblioteca – hoje a oitava maior do gênero no mundo, segundo a UNESCO – ocupou uma sala no Hospital da Ordem Terceira do Carmo, também no centro. Depois, passou para seu porão que, em pouco tempo, mostrou-se pequeno. Foi levada, então, para a Rua do Passeio, onde hoje está o prédio da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Até que se decidiu pela construção de uma sede própria, na recém-aberta Avenida Central (atual Avenida Rio Branco).
Caixotes cruzaram o centro do Rio transportando os livros para a nova sede, com estrutura em aço e paredes robustas, de quase 1,30 m de espessura. Lá dentro, iluminadas pela luz natural que adentra pelas claraboias, as imensas estantes de aço deveriam, enfim, dar conta de toda a Biblioteca, com espaço para 400 mil volumes. Mas não.
Na década de 1990, o imenso prédio-sede de estilo eclético com linhas neoclássicas mostrou-se pequeno e foi preciso começar a criação de um anexo, na zona portuária do Rio, para abrigar a coleção de periódicos da casa – cerca de três milhões. Hoje, dos quatro andares desse espaço, apenas um está pronto e os outros três aguardam a liberação de R$ 32 milhões, do BNDES, que serão usados na reforma. O anexo vai liberar espaço para as coleções especiais, as de obras raras, no prédio principal, onde as preciosidades começam a se espremer nas prateleiras.
Aos 200 anos, a Biblioteca reconhece que é esse um de seus principais desafios: lidar com a produção de conteúdo que beira o infinito. Aos números: por mês, chegam ao prédio 3.500 novos livros e 6 mil fascículos de periódicos. Por ano, são 100 mil novos itens. Isso porque a Biblioteca se beneficia da Lei do Depósito Legal, segundo a qual uma cópia de toda obra publicada no Brasil deve ser enviada à instituição.
“É necessário que se diga: estamos com a capacidade absolutamente esgotada”, alerta Mônica Rizzo, diretora do Centro de Referência e Difusão da Biblioteca Nacional – aqui, um parêntese: Mônica está na Biblioteca desde 1982 e já tremeu de medo ao pisar nas divisórias de vidro e aço que sustentam as estantes de livros por onde, hoje, trafega com desenvoltura de quem se desloca dentro da própria casa. “Fizemos uma estimativa e esse prédio vai ainda aguentar o crescimento da coleção durante 20 anos. Mas, é claro, não podemos predizer o que vai acontecer com a indústria editorial nem com a indústria gráfica em termos de jornais e revistas.”
Mônica, uma apaixonada por livros e documentos, como os bibliotecários descritos por Borges no conto A Biblioteca de Babel, defende que os livros devem ter vida longa. “Imagine: com 100 mil livros por ano, daqui a pouco vamos colocar obras nos corredores”, diz ela, um tanto aflita com a possibilidade de os livros sofrerem maus tratos. Já revistas e jornais devem migrar mais e mais para as mídias digitais. E os que permanecerem no suporte de papel terão o anexo na zona portuária.
Assim, os “volumes preciosos”, como escreve Borges, serão abrigados adequadamente. “São coleções que crescem em velocidade bem menor, até pelas características dos documentos e por só crescerem por doações, mas, de todo jeito, crescem e precisam de conforto.” Mônica pode citar de memória os anos e a história de documentos raros da Biblioteca, como a Bíblia de Mogúncia. Impressa em pergaminho (pele de animal) pelos sócios de Gutenberg, em 1462, a Bíblia teve tiragem de 60 exemplares – dois deles estão na Biblioteca Nacional. É um dos itens mais raros da casa: só saiu do cofre onde fica guardada para ser exposta ao público pelas mãos de Mônica, acompanhada por dois seguranças, até o salão da Biblioteca para uma mostra realizada em abril.
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“A Bíblia está microfilmada e digitalizada. Um pesquisador que queira vê-la por seu conteúdo, muito provavelmente não terá acesso ao original, pois não tem necessidade. Ele vai até conseguir ler a Bíblia melhor na forma digitalizada”, explica Mônica. A digitalização do acervo começou em 1982 e não parou. Só neste ano foram três milhões de páginas digitalizadas. A meta é, em 2013, ter 12 milhões de páginas disponíveis para consultas na web.
É assim que não só pesquisadores, mas o público comum poderá ter acesso a raridades como o Livro das Horas, manuscrito do século 14, feito sob encomenda do rei de Portugal, Dom Fernando. O livro contém ilustrações em ouro, as chamadas iluminuras, e desenhos em azul. “Naquele tempo era muito difícil fazer pigmento azul e, assim, quanto mais azul um livro tem, mais precioso é.”
A instituição é dona ainda do primeiro impresso oficial do Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro, que data de 1808. Há também uma primeira edição de Os Lusíadas, de Luis de Camões, de 1572, ou os manuscritos da ópera O Guarani (1871), de Carlos Gomes. A seção de música, aliás, tem até piano para o caso de algum pesquisador precisar “experimentar” as partituras originais. Não há seção mais procurada, no entanto, que a de obras gerais. Dos 419 mil visitantes que a Biblioteca recebeu até outubro, 19.477 estavam atrás de um dos dois milhões de volumes publicados do século 18 até hoje. Em segundo lugar, a queridinha do público é a seção de periódicos – neste ano, 12.943 pessoas foram à Biblioteca para ler jornais e revistas.
Os números que a direção da Biblioteca prefere usar, porém, são outros: a casa contabiliza não só as visitas in loco, mas as que são feitas a seu site e, assim, calcula que, em 2011, quase 18 milhões de visitantes “passaram” pela casa. O número gigantesco já supera o de 2010, quando o ano foi fechado com 18,4 milhões de visitantes. Mais uma vez, Borges poderia sorrir: a Biblioteca parece mesmo perdurar.
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