Letrista. Com todas as letras

Se o assunto é música, uma das grandes grifes de São Paulo é Carlos Rennó, letrista cujo nome vem acoplado a uma série de compositores que vão de Arrigo Barnabé a João Bosco, ou seja, da vanguarda à eterna guarda. O grande público o conhece como coautor de Escrito nas Estrelas, ao lado de Arnaldo Black, a grande vencedora do Festival dos Festivais da Globo (1995), interpretada por Tetê Espíndola. O título saíra de um trecho da letra de Woman, de John Lennon (After all it was written in the stars), que, por sua vez, deve ter se inspirado em It Was Written in the Stars, canção de Cole Porter, de 1939. Sabe-se lá. O compositor apostava em outra canção que fez para o festival: Visão da Terra, uma parceria com Tetê.

Entre os sucessos recentes de Carlos Rennó, figura tanto a universalista Todas Elas Juntas num Só Ser, com música de Lenine que a interpreta triunfalmente no CD ao vivo Incité, quanto a proselitista Sou Fiel. Esta última é uma parceria com Rita Lee e cantada por Negra Li no filme Fiel, de André Pasquini – todos corintianos. No final do ano passado, Rennó lançou, em parceria com o violoncelista e arranjador Jacques Morelenbaum, o CD Nego (Biscoito Fino), trazendo versões de músicas compostas por Rodgers & Hart, Irving Berlin, Jerome Kern, Oscar Hammerstein, Harold Arlen e os irmãos Gershwin (George e Ira), interpretadas por grandes vozes de nossa música. Não foi sua primeira incursão na área.
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Em 2001, Rennó produziu, com o contrabaixista Rodolfo Stroeter, Cole Porter e George Gershwin – Canções, Versões (Geléia Geral), tendo suas letras cantadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Elza Soares, Rita Lee e Tom Zé, entre outros. Uma diferença entre os dois discos reside no fato de o mais recente incluir apenas compositores de origem judaica, uma adaptação feita ao projeto original Rennó-Morelenbaum para atender a um pedido do Centro da Cultura Judaica. A outra, diz respeito a uma recente decisão das editoras originais que deixaram de pagar versionistas de qualquer origem. Tradicionalmente, a remuneração ficava entre 10% e 16% dos direitos autorais. Já pensaram o Paul Anka sem os direitos de My Way, originalmente uma canção francesa? Teria dito como Rennó diz hoje: “Se soubesse, não teria feito”. E o Frank Sinatra ficaria sem o seu cartão de visitas.

Nascido em São José dos Campos, Carlinhos Rennó teve como rito de passagem para o mundo adulto uma viagem à Europa, aos 15 anos, daquelas bem caretas, tipo família. Nela, conheceu Otávio Frias Filho, que viria a herdar o jornal Folha de S. Paulo, e a inquieta Ana Helena, sobrinha do diretor teatral José Celso Martinez Correia. “Aos 14 anos, ela era marxista, fumava maconha e já tinha transado. The best“, nas palavras do futuro letrista, que foi apresentado a Caetano, Gil, tropicalismo e Chico Buarque, enquanto visitava o Velho Continente. Rennó chegou em Campo Grande (MS), para onde sua família mudou, de cabeça feita, conhecendo os Espíndola. Artistas! Uma família em que seis irmãos sabiam cantar e o sétimo, pintor, havia exposto na Bienal de Veneza. Casou-se com Alzira, da família, e conheceu Tetê que, cabeludíssima, empunhando uma craviola, cantava divinamente as melodias que criava, vocalises sem letra. Essa era enfim uma vida a ser seguida: letrista.

O tempo passou e o disco Tetê e o Lírio Selvagem, lançado em São Paulo, para onde se mudaram, trazia várias letras suas, mas Rennó não estava à vontade. Os Espíndola, segundo ele, tinham uma visão do fazer artístico quase que espontaneísta. Só quando Tetê apresentou-lhe Arrigo Barnabé, um racionalista, conceitual, é que Rennó encontrou um par. Começaram a compor para Tubarões Voadores, o segundo disco de Arrigo, e logo o letrista passou a criar com o pessoal da vanguarda paulista: Passoca, Suzana Salles, Hermelino Neder e Eliete Negreiros, que gravou a única parceria de Rennó com José Miguel Wisnik. Rennó terminou o curso de Jornalismo, trabalhou na Folha de S. Paulo e, mais tarde, na revista Época. A vida na redação roubava-lhe o tempo e a concentração para compor. Por intermédio de Arrigo, conheceu os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, de quem virou fã do trabalho de tradução.

Foi a dupla que o apresentou à obra dos Gershwin e contemporâneos; e logo Rennó verteu My Heart Belongs to Daddy (Porter) para a voz de Vânia Bastos. Em 1991, chegou a lançar o livro Cole Porter: Canções, Versões (Editora Paulicéia), que trazia um artigo de Augusto de Campos.

A canção de 408 versos
Os Gershwin, ou melhor, o colega Ira Gershwin inspirou-lhe o livro Gilberto Gil: Todas as Letras (Companhia das Letras), lançado em 1996. Gil adorou a ideia e colaborou intensamente. Já Lyrics on Several Occasions, compilava a obra de Ira; e reunia letras seguidas de comentários sobre o processo de composição, produção, curiosidades.

Esse é mais ou menos o caminho percorrido até Nego, por sinal versão de Lover (Rodgers & Hart), cantada por Paula Morelenbaum no CD, que traz, entre outras pérolas, Meu Romance (My Romance – Rodgers e Hart), com Gal Costa; Sábio Rio (Ol’ Man River – Jerome Kern e Oscar Hammerstein), com João Bosco; Mais Além do Arco-íris (Over the Rainbow – Harold Arlen e E.Y. Harburg), com Zélia Duncan; e Verão (Summertime – dos Gershwin), em uma interpretação surpreendente de Erasmo Carlos.

No momento, Rennó está envolvido em vários projetos. Um deles é Gita Govinda, ao lado de Moreno Veloso, com 40% de coisas já gravadas. A obra continua a saga da tradução de Rogério Duarte para o livro hindu Bhagavad Gita. Outro projeto é um disco com canções já gravadas, regravadas, produzido por Iara Rennó – sua filha com Alzira – e que trará uma nova versão para Todas Elas Juntas num Só Ser. A primeira, lançada por Lenine, tem 124 versos; e esta chegará ao dobro, a original tem 408. Finalmente, há o CD Verde, coproduzido com Beto Villares, trazendo parcerias com Lenine, Pedro Luís, Gil, Arnaldo Antunes, Siba, Iara, todas elas voltadas para o tema do aquecimento global, das mudanças climáticas. Na linha de Tá?, feita com Pedro Luís e Roberta Sá, gravada por Mariana Aydar.

Em sua atual fase, o trabalho de Rennó pode ser resumido em duas frases: “Tou no clima” e “Versões só pagando”.

EXALTAÇÃO AOS INVENTORES
(trecho de uma parceria ainda inédita com Luiz Tatit)

Tiro minha cartola, reverente,
Pro galhardo bahiano assaz valente;
Babo pelos batutas, pelo dom
De dongaroto e do menino bom;
Gamo pela magnífica divina
E notável pequena linda flor;
Devoto de Gonzaga e do Divino,
Eu rendo graças ao Nosso Sinhô.

Bebo na fonte de cascata e cascatinha,
De ribeiro e riachão,
Num ban-kéti no matão;
Colho do fruto benedito de oliveiras,
De pereira, de moreiras,
De carvalho e jamelão;
Devoro jararaca e ratinho,
Bebo araca e mordo a carmen
De peixoto e de martins;
Degluto batatinha e gordurinha,
Como muita clementina
E chupo muito amorim.

Tomo cachaça e fumo charutinho,
Baixa em mim um caboclinho,
Danço ao jack-som do pandeiro,
Além do bandolim, do cavaquinho,
De viola e vassourinha
E por fim de um seresteiro.
Então qual um joão-de-barro, um ás
De um bando de tangarás,
Ou que nem um rouxinol,
Canto que nem sabiá:
Lalá, lalá, lalá, lalá, lalá!

A aurora humbertei-cheira a noel-rosa;
Orl-ando por um la-marçal barroso,
Por vales e por lagos encantados,
Por mários nunca dantas navegados.
Num vale d’ouro – dourival – caí-mmi,
Lau-rindo ao wil-som e ao luar tão cândido
De lobos e de lupes a ulular
Seu cântico mansueto pelo ar.

In-ciro-me de orestes em diante
Na linhagem de beleza,
De poder e realeza,
De generais, sargentos, almirantes,
De custódios, comandantes,
De reis, rainhas, príncipes, princesas.


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