Liberdade cristalina

“Então, puta meu, tipo, nossa cara, tipo assim, cola na balada, mó legal.” A autora desse verso inspirador é Lulina, pernambucana de Olinda que, em 2003, desembarcou em São Paulo trazendo dois discos caseiros, um portfólio de textos e uma infinidade de bugigangas indígenas. Havia saído de casa para uma viagem pela Amazônia e, depois, passaria duas semanas na capital paulista. Só duas semanas.

Como deu para perceber pelas gírias paulistanas do verso, não foi bem assim. Cantora e compositora, Lulina radicou-se em São Paulo, onde acaba de lançar Cristalina (YB), seu décimo disco.

De certa maneira, o CD pode ser visto como o primeiro de verdade, pois se trata da versão aprimorada de músicas da maioria dos álbuns anteriores. A única inédita é “Meu Príncipe”, que, involuntariamente, se tornou um hino feminista cantado aos berros pelas fãs (“Não vem em cavalo branco, mas eu o amo mesmo assim/Prepara minha comida, enquanto eu tô no botequim”). O disco, enfim, é uma coleção de canções confessionais, adornadas pelo que Lulina chama de “coisas estranhas ou lúdicas”.

O verso transcrito no primeiro parágrafo desta resenha dá a medida desse desprendimento. Foi criado de madrugada, em um bar paulistano, em dupla com Ju Calderón. Exemplar nesse sentido também é “Criar minhocas é um negócio lucrativo”, lúdica já no título. Não à toa, tornou-se a música que abre o CD.

O leitor pode se perguntar: “Por que aquele tal portfólio de textos trazido na viagem a São Paulo?”. Ele se refere ao fato de Lulina ter um lado Clark Kent. No horário comercial, ela é Luciana Lins, publicitária de 31 anos, formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que, em 2003, foi contratada como estagiária pela W/Brasil e hoje trabalha como redatora de criação da MoMa, agência envolvida em campanhas de gente grande, como a Lycra, Sherwin-Williams e automóveis Kia.

Adolescente na época da explosão do mangue beat, a pernambucana Lulina não se envolveu muito com o lado regionalista do novo rock. Preferia bater a cabeça ao ritmo do Nirvana e Sepultura e se sentir uma jovem inglesinha.

Francês macarrônico
Depois de se apossar do violão da mãe e aprender as cifras com o auxílio de revistinhas do gênero, fundou um conjunto, o Lulina e os Pininhos, já com Érico Édipo, hoje seu guitarrista. A banda era especializada em covers de Velvet Underground, Cat Power, Breeders, Neil Young e Belle and Sebastian, mas vez por outra Lulina enfiava uma música sua, com a maior vergonha do mundo. Até que, em 2001, brincando com o computador do então seu namorado, gravou treze canções sozinha, reuniu-as em um CD e fez uma capinha, batizando o trabalho de Acoustic de France. No disco artesanal, apresentava-se como uma cantora brasileira idolatrada na terra de Charlotte Gainsbourg. O namorado fazia as vezes de entrevistador em um “francês macarrônico”.

Foi o início de um projeto que se assemelha à filmografia de Woody Allen, que faz um longa-metragem por ano. A cada mês de novembro, Lulina reunia 13 composições, escolhia um tema, fazia uma embalagem e lançava um disco, em CDR mesmo. O segundo foi gravado ainda no Recife, Cochilândia (2002), e o restante em São Paulo. Cada disco reflete um estágio de vida. Abduzida (2003) surgiu por razões óbvias, o deslumbre pela terra de Tarsila do Amaral e Washington Olivetto. Bolhas na Pleura e Nublada em Surto, ambos de 2004, refletem o segundo momento em São Paulo, a perda da avó, o chute que levou do namorado e as crises respiratórias fortíssimas que a acometiam frequentemente. Lulina comeu o pão que o diabo amassou e sorveu da bombinha contra asma que a indústria farmacêutica criou – tem até uma tatuagem no braço com uma. Tempos difíceis. A música “Jerry Lewis”, por exemplo, um desfile de doenças de corar os Titãs, é desse disco. Já Sangue de ET (2005) foi inspirado em um porre dessa bebida, uma espécie de menta vagabunda, oferecida pelos amigos penalizados com sua situação. Deu resultado. Em Translúcida (2006), a menina revê algumas de suas músicas, promove arranjos novos. No ano seguinte, Lulina lançou um álbum duplo, com um nome para cada CD: Aceitação dos 14/Aos 28 Anos Dei Reset na Minha Vida. Enquanto o segundo título se refere ao chamado “retorno de Saturno” pregado pela astrologia, Aceitação dos 14 encerra sua cisma com o número 13. Tudo tinha de ser 13, para Lulina. Se chegasse aos 14, é porque não tinha dado certo. “Ora”, diz a cantora, “eu não sou Zagalo nem nada”.

Desde que chegou a São Paulo, Lulina retomou o contato com Léo Monstro, um colega de faculdade. Juntos, começaram a burilar as canções e a compor. Depois de formar seu primeiro grupo, Lulina fez o circuito under-overground paulistano, na região da Avenida Paulista – e isso inclui as casas noturnas Astronete, Studio SP e Milo Garage. Mas o trabalho realmente andou com a chegada de seus colegas do Recife, o referido Érico Édipo e o contrabaixista Missionário José que logo tomou conta da situação. A eles juntou-se o único paulista, Pedro Falcão, na bateria. Graciosa e engraçada, Lulina agora fica à vontade no palco, cantando com seu jeito de recifense e empunhando uma guitarra Danelectro que, por sinal, tem uma história curiosa.

Há anos, ela conheceu pelo My Space um americano chamado Matt, que enlouqueceu com suas músicas. Ao ficar sabendo do lançamento de um modelo da guitarra em tiragem reduzida e baratinha, Lulina pediu ao rapaz que a comprasse. No trato, ela logo lhe enviaria o dinheiro.

Matt simplesmente mandou a guitarra de presente, pedindo em troca uma foto da cantora com o instrumento. Dias depois, a fábrica Danelectro entrou em contato com Lulina, pedindo um testemunhal. A cantora ficou de mandar e esqueceu. Qual não foi sua surpresa ao ver sua foto estampada no site principal da Danelectro, ao lado de um retrato de Jimmy Page. Obra do Matt.
Hoje, devidamente abduzida, ela comenta: “Então, quando vi aquilo, disse ‘puta meu, tipo, nossa cara!’”. Que os pernambucanos não a ouçam. Naquele Estado nordestino, “então” é “pronto” e “nossa” é “ôxe”.


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