Em um conjunto esportivo na Barra Funda, zona oeste de São Paulo, o meio-campista Peto Kettlun, 32, capitão da Seleção Palestina de Futebol, domina a bola com a direita. Em sua camisa vermelha número 17, ele balança quando corta para o meio e costura uma barreira de volantes brasileiros. Faz tabela com Husam Younis, técnico da Seleção Feminina de Futebol, que num passe em diagonal deixa Ibrahim Al-Zeben, embaixador do Estado da Palestina no Brasil, na cara do gol. Ele ainda faria outros dois, tornando-se artilheiro na vitória por 6 a 4 da comitiva palestina frente ao catadão brasileiro, formado por membros do Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino e da União Nacional dos Estudantes, além de três jornalistas. A pelada deu início à agenda da delegação palestina que veio ao Brasil denunciar o governo de Israel perante o comitê da FIFA, por violações e crimes cometidos contra jogadores e centros esportivos.
No dia seguinte, no Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, no centro da cidade, Peto nem parecia o mesmo: cabelo penteado para trás, camisa azul engomada, calça bem passada. O embaixador goleador também substituiu o uniforme por um terno cinza impecável. Eles estavam acompanhados do general Jibril Rajoub, presidente da Confederação Palestina de Futebol, e de Susan Shalabi, representante da Confederação Asiática de Futebol. Esse time teve a missão de reiterar o que foi dito e acordado em maio de 2013, no último congresso da FIFA, quando 207 das 208 federações apoiaram seus apelos, exigindo que Joseph Blatter, presidente da entidade, intermediasse o diálogo entre os órgãos desportivos palestino e israelense, criando um mecanismo de cooperação. As denúncias dos palestinos são graves.
O general Jibril fala de violações recentes, como a prisão e o espancamento de Basel Mahmud, ex-treinador da Seleção Feminina, em 2013 – segundo ele, militares israelense alegaram que Basel estava em Israel com permissão vencida. Meses antes, o jogador Johar Nasser Aldeen Halabiyeh, do time Abu Dis, que leva o nome da cidade que faz fronteira com Jerusalém, foi atingido nos joelhos por balas. Com 20 anos, ele teria sido ainda espancado e, não deve jogar futebol novamente. No entanto, ele teve mais sorte do que outros. Saji Darweesh, jovem promessa do futebol palestino, foi morto em março último. E tem ainda o caso de Mahmoud Kamel, preso em 2009, no dia em que se transferiria para o clube Markz Balata. Três anos mais tarde e depois de uma greve de fome, houve intervenção de Blatter e o jogador foi libertado.
As palavras de Jibril são duras, secas e objetivas, como as bombas que despencaram do céu, em novembro de 2012, e destruíram as sedes dos times Ittihad Al-Shuja’iyah, Ahli Al-Nuseirat e Khadamat Deir Al-Balah, todos de Gaza. Brutais como a esquadra israelense que, no mesmo ano, fechou as portas do clube muçulmano Islamic Silwan, proibindo-o de disputar qualquer competição e ameaçando seus membros de prisão. Estratégias como a intervenção no estádio Sa’ad Sayel, na cidade cisjordaniana de Nablus, que, mesmo com o projeto aprovado pela FIFA em 2009, teve o maquinário confiscado e a construção proibida, tão logo suas primeiras sebes foram erguidas. “Nós só queremos o direito de competir em pé de igualdade”, diz o general. “Ainda que nunca tenha sido assim.”
Quando Jibril fala dos jogadores de Gaza proibidos de viajar para se juntarem à Seleção de 2004, Peto leva os olhos ao teto. Aquele foi um ano ruim. Peto era o capitão daquela equipe e se lembra de tudo. “Não dá para esquecer.” Aquela Seleção escalou cinco jogadores sul-americanos e, pela primeira vez, a Palestina se via com reais condições de alcançar uma vaga na Copa do Mundo. E os jogadores estavam famintos. “Nosso time era muito bom e tivemos ótimos resultados nas partidas classificatórias. Vencemos com facilidade Taiwan e Iraque. A Palestina conseguiu repercussão internacional por conta desses resultados. Mas começaram as perseguições. Jogadores de Gaza foram impedidos de embarcar para o Egito e Qatar, onde treinávamos. Teve uma partida que só pudemos levar 15 jogadores, sendo que oito chegaram um dia antes do jogo. Nem conseguimos treinar e isso influenciou diretamente o nosso mau rendimento no restante da competição”, diz Peto.
Uma semana antes da última partida da fase de grupos, em um hospital de Paris, morreu Yasser Arafat, líder da Autoridade Palestina e presidente da Organização para a Libertação da Palestina. “Foi o momento mais difícil, desesperador.” A equipe, que estava no Egito, compareceu ao velório na capital, Cairo. “Esse período marca para mim o começo dos grandes abusos e a intenção clara de não permissão do desenvolvimento do futebol na Palestina.”
Lutar contra isso é tarefa que Peto tomou para si: “Ser capitão da Seleção do seu país deve ser uma honra, um orgulho, um dever. Deve ser uma alegria também. Mas com esse entorno, não era. Era uma tristeza, dava uma sensação de impotência ao ver os companheiros detidos, e não poder fazer nada”.
Quando Susan Shalabi tomou a palavra, Peto devolveu aos olhos um norte e a atenção à fala. Manteve a serenidade de capitão. Ele sabe que ainda há muito pela frente, muito ainda a enfrentar, pois as violações, de acordo com os palestinos que estiveram no Brasil, prosseguem. Em maio último, a Seleção voltava do Qatar, onde se preparava para o Challenge Cup – torneio asiático para Seleções emergentes –, quando um dos zagueiros foi detido na fronteira com a Jordânia e interrogado por seis horas. Até o fechamento desta edição, ele continuava detido e não havia informações sobre quando seria liberado. Para Peto, já não é possível virar as costas para o povo que ele aprendeu a pertencer.
Herança
Por parte de mãe, Peto é italiano. Por parte de pai, é palestino. Mas ele nasceu no Chile, onde seus avós paternos desembarcaram há quase 90 anos, seguindo os passos de milhares de compatriotas. No fim da Segunda Guerra, os Kettlun viviam em Belém, na Cisjordânia. Primeiro, resolveram tentar a sorte na Síria e lá fincaram raízes rasas. Foram apenas dois anos, depois seguiram o exemplo de milhares de conterrâneos que trocaram o deserto pelo mar e navegaram até um país distante no sudoeste da América do Sul. Talvez essa tenha sido uma das mais extraordinárias migrações: estima-se que cerca de 500 mil palestinos, entre imigrantes e descendentes, vivam hoje no Chile, país com a maior comunidade fora do Oriente Médio.
O afluxo foi tamanho que, em 1920, os imigrantes criaram o Club Desportivo Palestino, time tradicional que já levantou dois canecos nacionais. A família de Peto chegou ao Chile em 1924 e ela só retornou à terra natal duas gerações depois, pelas chuteiras do meia direita do Palestino.
Peto começou a jogar bola pouco tempo depois de seus pais se separarem, quando tinha 4 anos. “Até os 18, eu passava toda sexta-feira e sábado na casa de meu pai, onde convivi um pouco com as tradições e costumes palestinos. Por outro lado, minha mãe, filha de italianos, tentava me puxar para as raízes dela. Por isso me matriculou numa escola italiana, o que foi muito bom porque pude estudar a história da Itália e aprender o idioma.”
Depois, ele defendeu a Universidad Catolica, um dos mais conhecidos times chilenos, das equipes juvenis até o seu primeiro ano como profissional. Transferido para o Palestino, teve um 2002 excelente, ajudando a equipe a chegar às quartas de final no torneio Apertura, que teve como campeão seu antigo clube.
Essa experiência rendeu a Peto o convite para compor a Seleção Palestina. “Fiquei em dúvida, mas meu pai me aconselhou bem.”
Como a FIFA reconhece o Estado da Palestina, ombreando em direitos sua federação à de Israel, a decisão de pisar em campo com o escudo da Associação Palestina de Futebol torna-se automaticamente um ato político. “Joguei a Copa Afro-Árabe e foi maravilhoso. Pela primeira vez me aproximei do povo ao qual meu sangue pertence.”
Ao mesmo tempo que defendia a Seleção Pelestina, Peto foi emprestado ao Skoda Xanthi, da Grécia, e participou das classificatórias da Copa UEFA. Logo estava de volta ao Palestino, para então ter o passe vendido, no começo de 2006, ao chileno Unión Española, seu time de coração. O mesmo coração que ganharia ainda mais razão para bater: Natalia, estudante de Psicologia. “Foi amor à primeira vista. Vivemos uma linda história durante seis meses e tivemos de nos separar por dois anos, pois fui jogar na Itália.”
Peto foi para o Brindisi, time que defendeu por duas temporadas, até receber o convite do rival Santedigiese. Ao aceitar a proposta, teve sua estada italiana prolongada. Assim, Natalia se mudou para a Itália com a condição de o casal retornar ao Chile depois do fim do contrato de dois anos. “E realmente voltamos ao Chile. Ela queria abrir um consultório, e eu ser treinador de camadas de base. Mas por essas coisas do destino, fui chamado para jogar pela Seleção na Palestina novamente, e esse convite não tinha como negar.” Por conta da ocupação militar israelense, a Seleção Palestina costuma realizar seus jogos no Qatar ou em Amã. Mas, em 2012, durante a Copa Nakba, que reúne times da Ásia e da África, disputou pela primeira vez em casa, nas cidades de Nablus, Al-Ram, Al-Bireh e Hebron. Foi um momento histórico. “Vencemos a final contra a Tunísia e ganhamos nosso primeiro troféu internacional”, lembra-se Peto.
Sua atuação foi tão imprescindível que fez crescer os olhos dos dirigentes do Hilal Al-Quds, originalmente time de Jerusalém Oriental, mas desde que Israel começou a construir um muro em torno dos territórios palestinos ocupados, em 2005, o centro de treinamento do time passou a ser em Ramallah, a capital administrativa da Palestina, na Cisjordânia. Foi oferecido a Peto um contrato de dois anos com o clube. Natalia aceitou os acréscimos na carreira do marido e já pai de seus três filhos, a família mudou-se para a Palestina.
Peto renovou seu contrato por mais duas temporadas no Hilal Al-Quds, e Natalia agora pensa em fincar raízes no Oriente Médio. Mas ele não se esquece de seu sonho: “Ainda quero treinar jovens. Mais do que isso, quero deixar as condições para que a Federação Palestina possa fazer isso. Esse é o primeiro passo para alcançarmos um desenvolvimento verdadeiro no nosso futebol. É preciso lutar para que nos permitam usufruir dos mesmos direitos da FIFA. Uma vez que isso esteja estabelecido, teremos a possibilidade de formar jovens e usar o futebol como uma importante ferramenta social.”
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