Liedi Bariani Bernucci, 50 anos, é a doçura em pessoa. Delicada nos modos, leve no andar e suave na fala. Nada que indique a árdua profissão que escolheu há 32 anos quando entrou no curso de engenharia civil na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Na época, era uma das 29 alunas entre 620 estudantes. De lá para cá, sua vida foi dedicada a estudar solos, terra e novas técnicas de pavimentação asfáltica, área na qual se especializou em vários cursos aqui e no exterior. Na Suíça, onde ganhou uma bolsa para estudar solos tropicais na Escola Politécnica de Zurique, escola-mãe da Poli-USP e considerada uma das dez melhores instituições do mundo, Liedi acabou convencida por um de seus professores a dedicar-se à área de pavimentação quando voltasse ao Brasil. O argumento: o País era carente de boas estradas e de pessoas entendidas no assunto. “Havia, de fato, uma demanda enorme e pouca oferta”, lembra Liedi. A dica foi preciosa. Liedi é hoje uma das especialistas mais conceituadas na área.
Chefe do Departamento de Engenharia de Transporte e coordenadora do Laboratório de Tecnologia de Pavimentação da Poli, ela é também uma das sete professoras titulares da Poli, entre os 80 profissionais que alcançaram o posto maior dentro da carreira acadêmica. Entre suas atribuições diárias estão dar aulas de graduação, pós-graduação, mestrado e doutorado, e consultoria para órgãos do governo e empresas privadas, como construtoras e concessionárias de rodovias, além de desenvolver projetos e pesquisas. “Trabalho muito, mas adoro o que faço”, garante Liedi.
No laboratório, as pesquisas estão avançadas em algumas áreas, como pavimentação de baixo custo – com aplicação em rodovias pequenas, vicinais -, pavimentação antirruído ambiental – para minimizar barulho dos carros em vias próximas a hospitais, por exemplo -, novos materiais para melhorar a aderência dos pneus em dias de chuva e o pavimento ecológico – utilizando entulho de obras. Este último já foi colocado em prática. Cerca de dois quilômetros de vias do campus da USP Zona Leste, em São Paulo, foram construídos com esse material reciclado. “Já ganhamos três prêmios com esse trabalho”, diz. O próximo passo é desenvolver um “piso” que absorva o impacto da chuva e evite enchentes. Ele é feito com pequenos buracos internos por onde a água da chuva infiltra, funcionando como um amortecedor antes que ela escoe para os rios. A idéia é que ele seja utilizado em grandes estacionamentos de shoppings e supermercados, por exemplo.
Não bastasse tanto trabalho, Liedi ainda arruma tempo para escrever. Em parceira com mais três colegas de trabalho, ela produziu o livro Pavimentação Asfáltica – Formação Básica para Engenheiros. “Sentíamos falta de um material completo e didático sobre o assunto”, diz a professora que usou os finais de semana para concluir a obra. E pensar que Liedi nunca foi muito fã de livros. “Sempre dei trabalho na escola, não gostava de estudar. Mas não gosto de dizer isso para não desestimular meus filhos”, diverte-se. “Só passei a gostar quando entrei na Poli”, diz. Gostando ou não, essa ex-aluna de escola pública na cidade paulista de Jundiaí, onde morava, acabou tornando-se uma profissional de primeira linha em uma área que exige, no mínimo, muito estudo.
Preconceito
Apesar de trabalhar em um ambiente “masculino”, onde frequentemente precisa vistoriar obras, Liedi garante que preconceito não faz parte de sua rotina. “Nunca fui discriminada na universidade, nos locais onde dou consultoria, nem mesmo nas obras. Meu trabalho é muito técnico, então quando me chamam, as pessoas sabem exatamente quem sou eu e o que esperar de mim. Por incrível que pareça, o único lugar onde sofri preconceito foi na Suíça. Lá, ouvi de um professor que eu deveria desistir logo, pois estava tirando a vaga de alguém. Ele disse que sabia que eu estava lá para arrumar marido”, lembra. “E não é que eu me casei com um suíço?”, diverte-se. Ela conheceu seu marido, que é físico, durante o curso e logo depois de casados voltaram ao Brasil. Mas ao contrário do que disse seu professor, ela é uma profissional de destaque. Do casamento, resultaram dois filhos. O mais velho, hoje com 22 anos, está no país de origem paterna cursando faculdade de administração, enquanto o mais novo, com 18, está fazendo cursinho pré-vestibular para prestar economia. “O fato é que não conseguimos influenciá-los”, diz.
Buracos
Com tanta experiência e exemplos de sucesso em seu trabalho, não daria para fazer um asfalto à prova de buracos? “Nossas pesquisas não param. Mas existem vários fatores que explicam tantos buracos. Não é só uma questão política e de falta de dinheiro. Há uma questão cultural. O Brasil não está acostumado a cuidar de seu patrimônio. Se não preservamos nossa cultura, por que vamos preservar engenharia? Estrada também é patrimônio”, diz. No que diz respeito à sociedade, ela acredita que falta uma maior cobrança de direitos. “Somos muito passivos”. Quanto aos órgãos públicos, um comprometimento em realizar obras de boa qualidade e fazer a manutenção correta das ruas. Tecnologia e profissionais competentes para desenvolver vias que não criem crateras logo depois de uma chuva, o Brasil tem. “O problema é que as vias são áreas públicas e aí vale a lei da melhor oferta. E existem empresas com tecnologia de ponta e outras não”, explica. Liedi diz que fazer uma pavimentação é como fazer um bolo. Há uma receita básica e é a mudança, ou a quantidade, de alguns ingredientes que fazem a diferença entre um revestimento asfáltico e outro. “Temos vários insumos, depende de como juntamos esses ingredientes. E devemos contar também com fatores externos de solo e temperatura. Por isso não podemos pegar uma receita pronta da Europa e usar aqui. Não funciona”, explica. Mas no que depender dessa mestre-cuca dos asfaltos, quem sabe em breve não teremos as ruas de nossos sonhos.
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