Literatura africana: cada vez mais rica, diversificada e jovem

Americanah é um livro de fluidez narrativa, realismo simples e direto, que se lê com prazer e grande interesse. Também é um livro importante e essa é uma combinação rara. Pois poucas vezes um romance foi tão efetivo em tratar de um tema social sem com isso recorrer ao discurso duro e panfletário. Bem ao contrário: a nigeriana Adichie consegue desmascarar a hipocrisia racial sem gastar uma gota de sentimentalismo e nem perder o fio da narrativa. Quem viu suas apresentações no TED, que já somam mais de 9 milhões de cliques, sabe o quanto ela pode ser bem-humorada, irônica e sedutora.

Chimamanda Ngozi Adichie, autora de Americanah. Foto: Divulgação
Chimamanda Ngozi Adichie, autora de Americanah. Foto: Divulgação

Talvez não à toa, considera-se que a moderna literatura africana nasceu na Nigéria, país mais populoso da África e também a maior economia. O ponto inaugural teria sido O Mundo se Despedaça, romance de Chinua Achebe (1930-2013), lançado dois anos antes da libertação do jugo britânico, que se deu em 1960. Outro escritor local, Wole Soyinka, ganhou o Nobel de literatura em 1986.

Adichie é de 1977. Nasceu em Enugu, que divide com a capital Lagos a condição de sede de Nollywood, segundo maior centro de produção cinematográfica no mundo. A região, dominada pelos Igbos, tem um histórico sangrento. Entre 1967 e 1970 formou provisoriamente a República de Biafra, até ser massacrada e reintegrada à Nigéria.

Esse contexto é sentido em cada página de Americanah, cujos direitos foram comprados pela atriz Lupita Nnyong’o, vencedora do Oscar por Doze Anos de Escravidão, e que trata justamente do percurso de uma jovem, Ifemelu, da terra natal ao mundo ocidental e de seu retorno às raízes. Recebeu críticas entusiasmadas por toda parte e venceu o prestigioso National Book Critics Circle Award nos EUA.

O livro vai e volta no tempo e se alterna entre dois narradores: a própria Ifemelu, que, cansada das inúmeras greves nas universidades nigerianas, decide tentar a vida no país de Obama, e seu namorado Obinze, que vai a Londres e, na volta, torna-se um rico especulador imobiliário.

De família culta, ambos passam pela via crucis do imigrante ilegal, que é empurrado para o trabalho mal remunerado e humilhante. Com o tempo, Ifemelu, provável alterego da autora, ganha fama ao criar um blog em que conta suas experiências de negra não americana em contraste com a vida de negros americanos e brancos. A premissa, interessante e bem explorada, parte do fato de que ela sequer pensava em si mesma como negra antes de pousar num aeroporto norte-americano.

Seus posts trazem insights poderosos, que complementam e ilustram as situações do romance. Impossível sair incólume de Americanah, também uma bela história de amor (com toques de um feminismo moderno). O leitor provavelmente vai mudar sua visão sobre racismo, as mulheres, os costumes norte-americanos e a África.

Há muitos pontos em comum entre o livro de Adichie e o romance de Bulawayo, Precisamos de Novos Nomes, finalista do Man Booker Prize. Também há diferenças substanciais. Bulawayo é mais nova (nasceu em 1981) e vem de um país que vive uma situação bem mais difícil, o Zimbábue, situado na costa sudeste da África.

As duas, como também Teju Cole, o aclamado autor nigeriano de Cidade Aberta, para citar apenas mais um dos bons escritores africanos que têm surgido, tratam da complexa questão da identidade e do choque cultural de quem abandona seu país para viver na maior potência capitalista do mundo.

NoViolet Bulawayo, de "Precisamos de Novos Nomes". Foto: Divulgação
NoViolet Bulawayo, de “Precisamos de Novos Nomes”. Foto: Divulgação

O bom humor e a falta de sentimentalismo também coincidem nos romances, assim como vários dos temas: as peripécias para se conseguir um visto norte-americano, a relação delicada com os parentes que ficam, na miséria, esperando por ajuda, o bullying ou a bondade superficial com que são tratadas na América, a dificuldade de integração, os malabarismos com o sotaque, a incompreensão em relação à África, vista geralmente como um país só, indiferenciado, destruído pela mesma miséria, corrupção e falta de perspectivas.

E aí começam as diferenças. Se Americanah retrata a vida de jovens adultos intelectualizados e se passa em grande parte nos EUA, Precisamos de Novos Nomes baseia principalmente sua narrativa em crianças e adolescentes, e a maioria de suas páginas têm como cenário uma favela de barracos de zinco numa periferia do Zimbábue. Se o romance de Adichie coloca as questões políticas como pano de fundo, quase subliminar, na obra de Bulawayo elas estão bem no centro do texto e são a força motora dos fatos.

A ditadura de Mugabe lança suas sombras sobre muitos dos personagens, alguns dos quais opositores do grupo pela Mudança. Assim, a pequena Darling, narradora ao mesmo tempo esperta e ingênua, infantil e forçosamente madura, testemunha suicídios, sequestros, prisões arbitrárias e espancamentos, além do retorno do pai, destruído pela Aids. O pouco alívio que traz uma ONG de brancos é descrito com ironia. Mas não deixa de brincar com os amigos, apelando unicamente para a imaginação e os poucos elementos de que dispõem, como se vivessem na Terra do Nunca.

Quando é lançada no reino do fast food e da competição individualista, para viver com a tia e assim fugir da violência que se adensava, passa a ter sentimentos contraditórios, de euforia e nostalgia, de curiosidade e desespero. Mas é brava, e enfrenta cada situação com tenacidade, da hipocrisia palpável de um casamento misto ao trabalho insano de recolher garrafas e latas de refrigerante.

Bulawayo difere de Adichie também no estilo. Suas frases são mais poéticas, lúdicas. Gosta de criar boas imagens, como “percebemos pelo seu rosto que ele é capaz de beliscar uma pedra e a pedra fazer uma careta de dor”, ou “um esqueleto de prédio que parece querer arrotar na cara de Deus”. Aliás, vale também salientar a ótima tradução de Adriana Lisboa.


Comentários

Uma resposta para “Literatura africana: cada vez mais rica, diversificada e jovem”

  1. Avatar de Alexandre de Omena
    Alexandre de Omena

    Estas escritoras mostram a pujança de um continente que urge para ser REconhecido pelo mundo.

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