Locomotiva do incorfomismo

foto: Luiza Sigulem

“Não existe problema que não tenha solução. A única certeza é que o movimento social e as reivindicações não são coisa de polícia, mas, sim, de mesa de negociação.” A frase é do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. A sentença chegou via portais de notícia e redes sociais, no fim da segunda-feira de insurreições que percorreram importantes capitais do Brasil, como São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Brasília. A afirmação de Lula foi postada em sua página no Facebook. Talvez ganhe repercussão.

Poucas são as lideranças que, no Brasil, procuram dialogar com seus cidadãos quando estes parecem querer lhe fugir das rédeas. E essa percepção foi explicitada nos últimos dias, com a forte repressão policial aos protestos recentes no País. Essa falta de sensibilidade para lidar com o clamor das ruas tornou-se algo explosivo. Por isso, a segunda-feira se tornará um dia histórico.

O que testemunhei ontem, depois de engolir uns 8 km de asfalto entoando o coro dos descontentes, foi algo bonito. Bonito, mas complexo. De entortar a cabeça de desavisados. Às 17h30, quando cheguei com parte da equipe de redação da Brasileiros ao Largo da Batata, em Pinheiros, São Paulo (ponto de encontro para o início do marcha), jamais poderia imaginar a dimensão que o protesto tomaria.

Em questão de meia hora, estavam lá cerca de cinco mil manifestantes. Promoviam um protesto pacífico e festivo. Bem perto de nosso grupo, uma trupe de palhaços entoava cantos e promovia um batuque, com pandeirolas, ganzás, apitos, flautas, e tambores de maracatu.  Palavras de ordem foram entoadas antes da partida da marcha: “Não é Turquia, não é a Grécia, é o Brasil que sai da inércia!”; “Vem aqui pra ver, não é verdade o que falam na TV”…

Instantes depois, o esqueleto de um prédio que está sendo construído em frente ao largo se tornou um grande telão com a projeção de frases, vindas de um edifício vizinho, do outro lado da praça, que enfatizavam: o protesto não era só pela redução dos R$ 0,20 da tarifa, mas, também, por transformações na saúde e na educação pública e por mais respeito aos princípios democráticos – uma referência clara às arbitrariedades dos últimos dias, quando até o vinagre foi “criminalizado”.

Ainda no prédio em construção, uma imagem vertical e assombrada de Arnaldo Jabor surgiu, em meio aos blocos de concreto, ao lado da frase: “Cala boca!” Na sequência, uma nova imagem divulgou a sintonia de uma rádio pirata que opera na frequência de 102,9 Mhz e é parceira do Movimento Passe Livre. Do epicentro da multidão, ouviu-se um coro intenso e pausado de reprovação às bandeiras de legendas nanicas de esquerda: “S-e-m  p-a-r-t-i-d-o!”.

Meia hora depois, a marcha, enfim, seguiu pela Avenida Faria Lima, avançou quarteirões, cruzou, pacificamente, a Avenida Rebouças e foi agrupando cada vez mais jovens, adultos e crianças – sim, havia crianças. Até então, o único vestígio da PM foram as duas dezenas de policiais que ficaram inertes no muro da enorme praça (vazia de aparelhos públicos, diga-se), em frente ao Largo da Batata. Nada de viaturas ou motocicletas da PM ou da Tropa de Choque seguindo a marcha. Tudo em paz, conforme prometido pela Secretária de Segurança Pública.

Por volta das 19h, uma multidão cinco ou seis vezes maior do que a que estava no início da concentração – impossível precisar quantas pessoas – avançava pela Faria Lima. Ao cruzarmos o Shopping Vitrine Iguatemi, uma senhora vestida de branco, acenou com uma toalha branca da janela de seu apartamento, no 6° andar. A multidão reconheceu o gesto de empatia e ovacionou à mulher, em um coro festivo: “Vem pra rua, vem! Vem contra o aumento, vem!”.

Passamos em frente ao Iguatemi, que estava com as portas cerrada até o chão, dez ou 15 pessoas espreitavam com apreensão a multidão avançar na avenida. Na calçada central, um grupo de anarco-punks mantinha erguida uma placa que dizia: “Ser punk é defender o bem de todos”. Em instantes, um novo coro ganhou força: “Da Copa eu abro mão, quero é mais saúde e educação!” Estacionado, completamente vazio, um ônibus teve o para-brisa tomado por cartazes que alegavam “R$ 3,20 é roubo!”. Ao passarmos por um daqueles bizarros prédios envidraçados da Faria Lima, o mar de gente refletido em toda extensão espelhada levou a multidão à loucura.

A marcha avançou e seguiu em direção à avenida Juscelino Kubistcheck. Parte menor da multidão rumou à Avenida Paulista. Seguimos até o final da JK, sob um novo e conclusivo grito de guerra: “Que coincidência, não tem polícia, não tem violência!”. No final da JK, afunilamos à esquerda e caminhamos até a Rua Funchal, na Vila Olímpia.

Cem metros de caminhada e, ao cruzar a lanchonete Princesinha da Funchal, o proprietário não deixou dúvidas de que era mesmo capaz de gestos da mais elegante nobreza. Ele autorizou funcionários a recolher, pela janela da sobreloja da lanchonete, garrafas vazias de água e deu em troca aos manifestantes garrafas cheias do líquido vital – àquela altura, digamos, tanto valioso. A multidão aplaudiu a bela e inusitada demonstração de solidariedade.

Ao cruzarmos a ponte Ary Torres, sob a Avenida Bandeirantes, um repórter tentou, inutilmente, fazer uma transmissão ao vivo. A multidão produziu, de imediato, um “slogan” que certamente não agradaria a emissora carioca: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo!”. A 50 metros dali, uma menina sacou uma lata de spray de sua mochila. Mal começou a pichar a primeira letra e foi duramente repreendida pela multidão, que pediu: “Vandalismo não!”.

Ouvimos rumores que parte do grupo, mais a frente, seguiu para o Palácio dos Bandeirantes, sede do Governo do Estado de São Paulo. A multidão que nos cerca hesita em subir ou descer. Decidimos descer. Seguimos rumo a Marginal Pinheiros e quando dobramos a esquina que nos permitiu  ver as cinco pistas da via expressa, nos demos conta de que uma multidão de outros milhares de manifestantes também tomou a marginal. Decidimos segui-los, rumo a Pinheiros – a marcha havia nos levado à Vila Olímpia, depois de enfrentar cerca de cinco quilômetros de caminhada.

De volta a Faria Lima, um grupo de jovens, municiados de seus smartphones, comenta que o País arde em insurreições – “tem 20 mil pessoas em Belo Horizonte”; “cem mil, no Rio”; “cinco mil estão em Brasília” – e me dá pistas de que é melhor voltar para casa. Ligo a TV em busca de informações, e dou de cara com Boris Casoy enaltecendo os protestos em São Paulo e condenando um “grupelho” de 20 e poucos baderneiros que haviam acabado de tentar invadir o Palácio dos Bandeirantes.

Convenhamos, ai de quem não mudar de opinião depois de ontem. Nem mesmo as acusações frequentes de que essa é uma geração de rebeldes sem causa definida, esvaziada politicamente, poderá ser mais relevante do que a verdade imposta por esses quase 70 mil jovens que tomaram hoje as ruas de São Paulo e fizeram da cidade locomotiva das insurreições que tomaram conta do País. Hoje, eles prometem mais. Às 17h, na Praça da Sé, centro de São Paulo.


Comentários

3 respostas para “Locomotiva do incorfomismo”

  1. Avatar de Coaracy Jr
    Coaracy Jr

    Estamos assistindo a história acontecendo.

  2. Avatar de Rita Cardeal
    Rita Cardeal

    ” … aí de quem não mudar de opinião depois de ontem.”

  3. Avatar de Eliane Mantega
    Eliane Mantega

    Uma emoção!!!
    Belíssimo
    Eliane

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