Faz tempo que a educação pública está em crise no Brasil e, a curto prazo, a situação tende a se agravar. A Câmara dos Deputados aprovou a prorrogação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) até 2023 e ampliou de 20% para 30% o percentual do Orçamento que pode ser desviado das finalidades previstas na Constituição para ser usado “livremente” pelo governo. Com isso, a União poderá retirar boa parte dos recursos destinados à educação e à saúde (que representam 7% e 9% dos gastos obrigatórios, respectivamente) para pagar os juros da dívida interna. O Conselho Nacional da Educação calcula que a nova DRU vai retirar R$ 16 bilhões da educação por ano.
Em momento de crise aguda, qual deveria ser o foco das políticas públicas? Proteger os mais vulneráveis. Mas não é assim que funciona. Depois da Revolução de 1930, o Estado brasileiro começou a implementar políticas no sentido de universalizar o acesso à educação: a taxa de matrícula líquida no ensino fundamental alcançou 80% em 1980 e chegou a 96% em 2003. A partir de 1990 havia, pelo menos em tese, vagas suficientes na rede pública para atender a todas as crianças em idade escolar, mas persistiam problemas localizados: excesso de vagas nas áreas centrais e carência nas periferias.
A expansão física da rede desvendou outra questão: à medida que a exclusão social decorrente da falta de escolas diminuiu, começou a ficar clara a existência de mecanismos de exclusão social no interior das próprias escolas: a universalização do acesso à educação não reduziu as desigualdades. Como observam os sociólogos Paulo Sérgio Ribeiro da Silva Jr. e Adelia Maria Miglievich Ribeiro, a escola tinha responsabilidade “na persistência das desigualdades sociais e culturais”, pois tratava de forma igual populações profundamente desiguais. Com isso, o sistema favorecia os privilegiados e desfavorecia os demais. Emergiu, então, o entendimento de que “as escolas localizadas nas periferias deveriam ser muito melhores que as outras”, como sustenta o economista Haroldo Torres, do Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap).
Só que as escolas periféricas são piores, como apontou estudo conduzido por Maurício Érnica e Antônio A. G. Batista, do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Embora os equipamentos sejam basicamente os mesmos nas regiões centrais e afastadas, existe uma diferença essencial entre as unidades: o isolamento das escolas nas regiões carentes. “Em áreas que apresentam níveis de vulnerabilidade social, as escolas tendem a ser o equipamento público de referência, recebendo uma gama vasta de demandas e urgências sociais do território e das famílias, sem que tenham, porém, condições de atendê-las”, indica o estudo.
O segundo problema está no corpo docente. As escolas da periferia sofrem o impacto “da concorrência entre as escolas”. Como a seleção é feita por concurso público, os mestres mais bem classificados optam por escolas mais centrais. Além disso, na periferia há uma frequência maior de professores substitutos e temporários, o que dificulta a implementação de um projeto pedagógico consistente.
O terceiro ponto está no quadro discente. “Como a oferta de educação infantil tende a ser reduzida nas regiões mais vulneráveis, as escolas ali situadas recebem alunos que entram na série inicial do ensino fundamental sem ter contato preliminar com o universo escolar”, o que aprofunda o distanciamento que as crianças de famílias vulneráveis “têm em relação ao universo escolar”. Em geral, as escolas na periferia “tendem a concentrar alunos com baixos recursos culturais” e são muito homogêneas, mas se pautam por ideais que não foram pensados para atender os mais pobres, e sim para uma clientela de classe média.
Na tentativa de reverter o quadro de exclusão, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) propôs, na década de 1980, a oferta do ensino integral aos mais carentes, o que se materializou no programa dos Centros Integrados de Educação Pública, os Cieps, introduzidos no primeiro governo de Leonel Brizola como governador do Rio de Janeiro (1983-1986). As aulas se estendiam das 8h às 17h e incluíam atividades culturais e educação física. Os Cieps ofereciam também refeições completas aos alunos, além de atendimento médico e odontológico. No segundo governo Brizola (1991-1994), alguns Cieps passaram a ter piscina. A execução do projeto, contudo, revelou-se cheia de problemas, sobretudo nas escolas de 5ª a 8ª séries, devido a limitações orçamentárias. O projeto foi em boa parte desmantelado nos governos posteriores e só começou a ser retomado na gestão do atual prefeito Eduardo Paes (PMDB).
“A ESCOLA NÃO MUDOU A SUA LÓGICA DE FORMAR A ELITE. ELA AINDA É PENSADA PARA AS CRIANÇAS DE CLASSE MÉDIA”
ANNA HELENA ALTENFELDER, presidente do Cenpec
São Paulo
A segunda tentativa de oferecer mais a quem tem menos foi implementada na segunda gestão do PT na Prefeitura de São Paulo com os Centros Educacionais Unificados (CEUs). A primeira unidade foi inaugurada por Marta Suplicy em agosto de 2003, e outras 20 foram instaladas até o final de seu governo, sempre em áreas de periferia com baixo Índice de Desenvolvimento Humano. Cada CEU abriga um bloco cultural (teatro, cinema, biblioteca, salas multiuso e com computadores), um bloco esportivo (quadras, pista de skate e piscinas) e um bloco didático (composto de um centro de educação infantil, uma escola municipal de educação infantil e uma escola municipal de ensino fundamental, que também oferece ensino para jovens e adultos). A instalação dessas unidades obteve grande apoio junto ao eleitorado, o que contribuiu para que o programa fosse mantido pelas administrações posteriores de José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM).
Apesar disso, o projeto não sobreviveu incólume. Como explica a educadora Lilian Cristina Pereira Cangussú, “durante a transição entre os governos da ex-prefeita Marta Suplicy e do prefeito eleito José Serra, continuado pelo vice-prefeito Gilberto Kassab, ocorreram situações que desqualificaram a sustentabilidade e continuidade do projeto”. A capacidade de atendimento à população foi superestimada e algumas unidades praticamente sofreram uma espécie de “colapso organizacional e operacional”. Ao se comparar os índices de desempenho dos alunos dos CEUs em relação aos das escolas tradicionais, é possível notar que alguns CEUs funcionam bem e outros não, como afirma a educadora Maria Alice Setubal, da Fundação Tide Setubal.
A despeito dessas diferenças no desempenho escolar, todos os educadores ressaltam a importância do programa. Como explica a superintendente do Cenpec, Anna Helena Altenfelder, “uma iniciativa como os CEUs, que possuem bons espaços e atividades poliesportivas e culturais, é importante”. A educadora assinala, porém, que “o aspecto político-pedagógico da escola precisa ser repensado”.
Segundo ela, desde os anos 1970 o Estado conseguiu universalizar o ensino público, mas a expansão quantitativa não foi acompanhada por mudança qualitativa: “A escola não mudou a sua lógica de formar a elite. Ela ainda é pensada para a classe média, para as crianças que nasceram em famílias que têm certo nível de letramento. É óbvio que as oportunidades oferecidas pelos CEUs são importantes e necessárias. Mas, se não pensarmos em um projeto pedagógico que considere as realidades específicas, acaba não havendo um impacto positivo no desempenho escolar. O CEU também precisa de uma nova política pedagógica”.
De acordo com Altenfelder, essa política precisa levar em conta a realidade sociocultural dos alunos. “É comum os professores dizerem que eles não têm livros em casa, que os pais não incentivam a leitura, sem olhar para as condições reais dessas famílias e sem reconhecer que elas fazem um esforço grande em prol da educação dos filhos. Como têm um perfil diferente das famílias de classe média, não são reconhecidas. É preciso pensar um projeto político pedagógico, a postura do professor na sala de aula, para definir atividades e estratégias que ele pode lançar mão para que os alunos aprendam sem pressupor que já trazem noções de letramento. Muitas vezes, a escola deixa de olhar para as potencialidades dos alunos e esquece que é seu papel desenvolver aquilo que ela acha que falta nos alunos.”
Essa questão é enfatizada pela educadora Maria das Mercês Ferreira Sampaio. Autora do livro Um Gosto Amargo de Escola: Relação entre Currículo, Ensino e Fracasso Escolar (2004), ela observa que “é preciso construir com os professores uma proposta que reconheça os alunos e os traga para dentro da escola”. Segundo Sampaio, “em geral os mais carentes não se sentem reconhecidos na escola, é como se estivessem em uma cultura estrangeira, porque têm um vocabulário, um modo de ser e costumes diferentes”.
“É PRECISO QUE SE TENHA UMA ESCOLA QUE ENTENDA A REGIÃO, SEUS MEDOS, SEUS VALORES, SEUS ANSEIOS. AS CRIANÇAS QUEREM SAIR DO MENOS”MARIA DAS MERCÊS FERREIRA SAMPAIO, autora de Um Gosto Amargo de Escola
A educadora recorda que a escola pública se ampliou principalmente a partir da ditadura militar sem um critério de qualidade, ou seja, sem uma mudança qualitativa no interior da escola. Por isso os estudantes carentes se sentem alijados do processo educacional. “Os que estão mais próximos da escola, que vêm de casas de famílias que leem mais, que têm mais acesso a bens culturais logo são reconhecidos como bons alunos e obtêm bons resultados. E aqueles que estão mais distanciados dessa cultura escolar, antes mesmo de dar a eles a possibilidade de entender aquele mundo, já são considerados fracos e vão continuar com baixa aprendizagem.”
Os educadores têm trabalhado para que “as escolas tenham uma proposta inclusiva, abrangente e acolhedora”. Essa é a proposta do CEU, que oferece aos alunos da periferia acesso a bens culturais antes inacessíveis: “Trata-se de abrir a escola para a cidade”, diz Sampaio. Nem sempre os resultados aparecem a curto prazo. “Pode ser que existam CEUs que não conversem com o entorno. Mas os que eu conheço, a população está lá dentro e os resultados escolares são melhores.”
Ela conta que, muitas vezes, o professor pensa em rebaixar o nível das aulas ao se deparar com uma classe que ninguém entende o que ele fala. “Não é por esse caminho. O professor tem de criar uma situação de entusiasmo para que a aprendizagem aconteça, precisa promover atividades de leitura cultural. É possível ter professores menos formados nas periferias, mas eles não são menos capazes. É preciso que se tenha uma escola que se identifique com a região, que entenda a região, seus medos, seus valores, seus anseios. Se ela é uma escola postiça naquele ambiente, nada vai dar certo. Mas tive a oportunidade de me emocionar com crianças da Penha, que fizeram uma cobertura jornalística de um seminário. Elas sabiam ouvir, sabiam fazer perguntas. As crianças querem sair do menos”, diz Sampaio.
A solução seria investir nesses projetos de escolas com mais salas de leitura, mais relação com a cidade, com mais atividades artísticas. Mas tudo depende de políticas de Estado, que estão ameaçadas pelos cortes no Orçamento. Boas oportunidades para aprimorar o ensino público estão sendo desperdiçadas. “Num momento em que as escolas estaduais de São Paulo enfrentam uma queda na matrícula, seria possível trabalhar com um aumento do nível de excelência no ensino.” Como exemplo, Sampaio cita o aumento no número de escolas que oferecem ensino integral, já que o Estado tem à mão tanto os professores como os equipamentos. Mas, em vez disso, o governo Geraldo Alckmin (PSDB) optou por fechar escolas: “Nós nos opomos ao que está sendo feito no Estado. Aumentar o número de alunos por sala barateia a educação. O interesse deles não é a boa escola, é a economia, o enxugamento de recursos. Um equívoco imperdoável”.
Enquanto o governo estadual decide fechar escolas, a Prefeitura de São Paulo pelo menos mantém seu foco na periferia: neste ano, 110 escolas da rede municipal passaram a oferecer ensino integral. A gestão de Fernando Haddad inaugurou outro CEU e está construindo mais oito. Talvez seja um avanço pequeno. Mas, diante da crise atual, pelo menos é um passo no caminho certo.
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