Louco por Glauber

Argemiro Antunes é vigia portuário e artista gráfico. Tem 66 anos, mora em um sobrado no bairro Campo Grande, em Santos (SP), com a mulher, Albertina, e um cachorro. Na parte superior da casa fica seu estúdio: um quarto e uma saleta onde conserva mais de 5 mil filmes gravados em fitas VHS e em DVDs. Livros, pilhas de jornais e de revistas, fichários, cadernos, pastas, desenhos, charges, ilustrações e discos também integram a paisagem. Pelas paredes, pôsteres e cartazes, em parte produzidos pelo próprio Argemiro, em homenagem a Glauber Rocha, o diretor que, em sua avaliação, dividiu o cinema brasileiro em antes e depois.

A morte do cineasta baiano em agosto de 1981 o abalou. E desde então, Argemiro dedica-se a preservar sua memória. No momento, está revendo a obra de Glauber Rocha – esmiúça e remonta arquivos, planeja novos desenhos e cartazes -, preparando a exposição comemorativa dos 40 anos de Terra em Transe, que será realizada em novembro no Museu da Imagem e do Som de Santos (MISS). “Essa data é importantíssima para o cinema brasileiro. Mas parece que esqueceram”, diz.

Cadernos de cinema
Argemiro não esquece nada. Por volta dos 20 anos, começou a registrar em um caderno os filmes a que assistia. A primeira anotação é de 14 de abril de 1961: Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment, 1960), direção de Billy Wilder. Nunca mais parou. Já está no 19º caderno, mas nunca se deu ao trabalho de contar quantos filmes já assistiu. Hoje, as sessões são em casa, sempre depois da meia-noite, quando o bairro está em silêncio: “Vejo dois filmes por dia, às vezes três”.
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Argemiro ingressou na Petrobras, em Cubatão (SP), aos 22 anos, e casou-se com Albertina no ano seguinte. Tiveram duas filhas, Roberta e Georgia. Em 1981, ainda petroleiro, foi trabalhar no Porto de Santos como vigia. Aposentou-se em 1987, mas voltou a trabalhar no porto dez anos depois, novamente como vigia. O desenho ingressou cedo em sua vida – antes dos 8 anos, sob influência da irmã Judith, que criava modelos de vestidos. No início dos anos 1950, havia dezenas de salas de cinema pelos bairros de Santos. Argemiro via de tudo e não perdia os seriados do Flash Gordon, os filmes de cowboy e O Gordo e o Magro. Em casa, recriava em papel de pão, quase quadro a quadro, o que vira na tela. “Eu gosto muito de quadrinhos. Foi uma das primeiras linguagens que aprendi. Então, desenhava os filmes como se fossem quadrinhos”, conta.

Ele se integrou ao Clube de Cinema de Santos em 1967. Logo, passou a produzir folhetos, cartazes, letreiros e capas de programas para as sessões do clube. Mais tarde, fez o mesmo para a Cinemateca de Santos, até a morte do grande amigo Maurice Legeard, que dirigiu as duas entidades, em maio de 1997.

Como artista gráfico, o cinema é o assunto permanente de sua obra. Glauber Rocha, um dos cineastas que mais o intrigam e fascinam. A primeira mostra em homenagem ao diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967) foi em 1983 – Dois Anos sem Glauber -, realizada com o apoio da Cinemateca de Santos. Argemiro expôs 30 trabalhos. No ano seguinte, realizou A Grandeza do Dragão, com 40 cartazes. Em 1987, nova mostra, agora em comemoração aos 20 anos de Terra em Transe. E outra em 1988, em que exibiu 15 trabalhos no saguão do Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, num espetáculo inspirado em Glauber, montado pelo bailarino e coreógrafo Sylvio Dufrayer.

Em 2004, os 40 cartazes de A Grandeza do Dragão entraram em exposição permanente no Tempo Glauber, o acervo do cineasta, no Rio. João Rocha, sobrinho de Glauber e diretor de Relações Institucionais da entidade, valoriza o material que, além de artístico, tem um grande potencial para a pesquisa. “É uma das exposições permanentes da casa e foi a principal por mais de quatro anos”, diz.

Direto e simples
Nem se suspeita que Argemiro é um estudioso de Glauber. Ao falar do diretor, seu discurso não lembra em nada o de um intelectual. Não usa expressões como historicidade, processo de investigação ou análise estrutural, próprias do conteúdo acadêmico. É direto e simples, quase rude: “Como artista, o Glauber deu o testemunho de seu tempo. O Cinema Novo tentou compreender o País com a abordagem da literatura, da política e da sociologia”, analisa.

Recentemente, Argemiro foi convidado para falar de Glauber Rocha e de Terra em Transe na Biblioteca Municipal de Cubatão e fez a exposição Miro, o Olhar Além da Tela, encerrada em agosto no MISS, com cartazes, tiras, charges – inclusive as produzidas para O Pasquim, com o qual colaborou – e uma história em quadrinhos inédita, Ganância, de 1969. “A idéia foi mostrar um Miro além do seu trabalho focado na Cinemateca e no Clube de Cinema”, diz o coordenador de Cinema da Secretaria de Cultura de Santos e diretor do MISS, Nívio Mota. Mas ele aproveitou a mostra para celebrar Glauber e lembrar os dez anos de morte do amigo Maurice Legeard.

O vigia Argemiro nunca se encontrou com Glauber, mas empolga-se ao falar de sua obra cinematográfica, que considera “sem concessões”. É enfático: “O próprio Glauber dizia que não tinha culpa se o público não o entendia”. E vai se empertigando, pronto a discutir: “Ele fez o tipo de cinema que quis fazer. No Brasil, foi um dos artistas mais incompreendidos de seu tempo. Era um cara com uma cabeça incrível, privilegiada, adiante de seu tempo. Em 1964, aos 25 anos, ele internacionalizou o cinema brasileiro com uma verdadeira obra-prima, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Não é pouco!”, diz, exibindo o cartaz de Othon Bastos no filme como Corisco, criado por ele para uma das exposições sobre Glauber.

No estúdio, preserva um roteiro de Terra em Transe, que transcreveu a partir do filme, e que considera pura poesia. Relembra o choque que o filme causou na época e do manifesto internacional a seu favor, já que foi proibido – e depois liberado – pelo governo militar: “É uma obra visionária, carregada de verdade, que vai atualizando o Brasil. Está tudo ali: a corrupção e a fraqueza dos políticos, as multinacionais, o povo vilipendiado”.

Ele comenta: “O Glauber escreveu as falas do Jardel Filho, que fez o papel de Paulo Martins, o poeta, em função de sua entonação de voz”. E Argemiro então declama uma das falas de Terra em Transe, como se fosse Paulo Martins:

“Quando voltei para o Eldorado, não sei se antes ou depois, quando revi a paisagem imutável, a natureza, a mesma gente perdida, em sua impossível grandeza, eu trazia uma forte amargura dos encontros perdidos e outra vez me perdia no fundo dos meus sentidos. Eu não acreditava em sonhos e em mais nada. Apenas a carne me ardia e nela eu me encontrava”.


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