Quem vê?o homem alto e bem trajado, abrindo e fechando gavetas em seu confortável escritório no bairro paulistano da Vila Olímpia, não pode imaginar o seu passado de brigador das ruas – ao pé da letra. Essa faceta torna-se ainda mais improvável quando se sabe que, aos 55 anos, ele comanda “com a ajuda de Deus e 13 horas de trabalho por dia”, uma empresa com 350 funcionários, filiais em grandes capitais do País e uma receita anual em torno de 30 milhões de reais. Surpreenda-se: em julho de 1969, aos 14 anos, Raul Corrêa da Silva foi um dos vinte fundadores da Gaviões da Fiel. Dois anos mais tarde, estava à frente da dissidência da turbulenta torcida organizada do Corinthians, a não menos combativa Camisa Doze.
Quando provocado, Raul bateu, apanhou, revidou. Chegou a ser preso (e logo solto), no Centro de São Paulo, em plena ditadura, por distribuir panfletos que pregavam uma revolução – uma revolução dentro do Corinthians, bem entendido. “A Gaviões surgiu para interferir na política do clube, muito mal administrado pelo presidente Wadih Helu”, lembra. “Demos esse nome porque é uma ave que sobrevoa com serenidade e astúcia, mas parte para o ataque com ímpeto. Tínhamos de nos defender, porque o Wadih montou uma torcida organizada oficialesca para nos desafiar.”
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Para que não reste qualquer dúvida, Raul tira de uma das gavetas do móvel de design as preciosas carteirinhas. Primeiro, a de sócio do Corinthians, com a foto de um guri mal saído dos cueiros (o pai, Jaime, também era alvinegro). Depois, mostra, com orgulho, a de sócio número 11 da Gaviões; em seguida, a de número 16 da Camisa Doze.
Filho de um contador, “de classe média”, do bairro Jardim São Paulo, na Zona Norte de São Paulo, Raul ficou incumbido, aos 14 anos, do livro-caixa da pioneira torcida organizada do Timão. Ele o retira da mesma gaveta e o folheia com vagar; e os olhos de um adolescente. É um tesouro – e também o início informal de suas atividades contábeis, que o tornariam um auditor tão bem-sucedido. O ex-guarda-livros da Gaviões tornou-se o presidente da empresa de auditoria Crowe Horwath RCS, com uma carteira de 750 clientes, incluindo a Valisere, Intermédica, Giroflex, Universidade Metodista de São Paulo e a Tip Top – para citar companhias de ramos muito diferentes. Presta serviços de auditoria a 55% delas. Às demais, oferece consultoria. Por motivos éticos e legais, as duas atividades são excludentes.
Irrequieto, Raul continua tirando histórias da gaveta. Agora, põe sobre a mesa, com algum constrangimento, a faixa de campeão paulista de 1974 do Corinthians. Desta feita, uma relíquia inglória, uma desastrada comemoração de véspera, com as letras em um dourado esmaecido. Naquele ano, quando se completavam duas décadas sem títulos, o Timão perdeu a final para o Palmeiras. Junto com a infausta faixa, Raul mostra uma página do extinto Diário da Noite. Dias após o jogo, o jornal publicou, com estardalhaço, a carta aberta escrita pelo então indignado integrante da Camisa Doze endereçada a Roberto Rivelino, o craque alvinegro, o “reizinho do Parque”, acusado de omissão na partida decisiva. Um trecho: “Sabe, Rivelino você transformou em cinzas as únicas coisas que ainda restavam ao nosso time, a garra e o amor à camisa”. Foi o estopim da saída do jogador. Pouco depois, ele seria vendido ao Fluminense, quase enxotado. Ainda hoje, Raul arrepende-se do gesto: “Eu o transformei em um bode expiatório. Logo o Rivelino, o meu único ídolo do clube”.
Em outra gaveta do escritório está o plano para administrar os recursos destinados ao estádio para 48 mil pessoas, que o Corinthians planeja erguer em Itaquera, um anseio de gerações de torcedores e, segundo os adversários, apenas uma quimera. Raul é o diretor financeiro do clube, escolhido pelo presidente do Timão, Andrés Sanchez.
“Como vamos erguer o estádio? O pessoal desdenha muito, mas não há segredo nenhum”, resume, dando um recado aos “times da Barra Funda e da Vila Sônia”, como costuma se referir ao Palmeiras e ao São Paulo. Em seu projeto financeiro, o Corinthians constituirá uma empresa, que levantará um empréstimo no Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) para contratar a Construtora Odebrecht. Simples. A dívida será paga, entre outras receitas, com a venda do nome do estádio a algum poderoso grupo privado (como fez o Bayern de Munique com a Seguradora Allianz) e o aluguel anual das cadeiras. Raul ressalta: “Não entrará um níquel de dinheiro do governo”.
Ele também faz questão de informar que o Corinthians, como a maioria dos grandes clubes do País, padece de um passivo alto (R$ 120 milhões) – a maior parte, herdada. “Está tudo no site oficial, na internet, tornado público, como deve ser”, reforça. Mas Raul é otimista. Acredita que os clubes maiores têm tudo para ser lucrativos, se aprenderem a jogar bonito com o orçamento, a transparência e, sobretudo, a exploração da marca. Em especial, porque têm em mãos um produto único, imune às mudanças de gosto do cliente. Raul compara a um consumidor de refrigerantes, sempre passível de abandonar o seu preferido, se experimentar e gostar de algum outro, recém-lançado. Já o torcedor de futebol não troca de marca – leia-se de time.
“Temos 34 milhões de consumidores fidelíssimos”, celebra, na semana em que o Corinthians licenciava a marca para um frigorífico de peso. “Só não será vendida carne de porco”, ressalva, em óbvia alusão ao mascote do arquirrival. A propósito, um estudo da própria Crowe Horwath RCS, publicado em dezembro, revelou que o Corinthians é a marca mais valorizada entre os grandes clubes: R$ 749,9 milhões, acima do São Paulo (R$ 659,8 milhões). O Flamengo? Estava na ponta até 2009. Agora, está no terceiro lugar no pódio (R$ 625,3 milhões). Seguem-se o Palmeiras (R$ 441,1 milhões) e o Internacional (R$ 268,7 milhões).
Em 1963, um menino quis comprar a pipa que Raul havia feito. “Ele me perguntou quanto custava o quadrado”, lembra. “Eu não pensava em vender e respondi que passaria adiante por 400 cruzeiros, um bom dinheiro.” O tal garoto desistiu. Mais tarde, Raul encontrou-se, por acaso, com a mãe do menino. Ela lhe disse que, por até 100 cruzeiros, o filho teria fechado o negócio. Bastou fazer os cálculos. Os 100 cruzeiros já seriam lucrativos. “Descobri o valor de mercado”, avalia Raul que não tardou em começar sua fabriqueta de pipas.
Único homem entre quatro irmãs, o garoto de 8 anos pediu ajuda a elas, ao notar o aumento da demanda. Uma afilava as varetas, outra criava a barbatana, uma terceira colava. “Sem nunca ter lido Taylor, Fayol ou Ford, montei uma linha de montagem e o controle de produção”, diverte-se. A microempresa durou sete anos e vendia, no mínimo, 25 pipas por semana – sendo o principal comprador o dono de um armarinho do bairro. Em paralelo, Raul foi coroinha, dos 10 aos 12 anos, com a autorização do padre para, depois das missas, vender canetas aos fiéis. Esse tino para descobrir oportunidades revelou-se até nas viagens que fazia para acompanhar o Timão. Ao longo delas, Raul e um amigo vendiam sabão para mecânicos lavarem as mãos. Se sobrasse mercadoria, repassavam na Zona Norte.
Embora de maneira indireta, o Corinthians foi o culpado pelo fechamento da fabriqueta de pipas. Raul estava no segundo ano do curso técnico de Contabilidade quando, novamente, envolveu-se em um arranca-rabo nas ruas em nome do clube do Parque São Jorge. Dessa vez, seu nome saiu em um jornal, como vítima do quiproquó. O pai leu e achou que o brigão fora além dos limites. Resultado do jogo: Raul passou a estudar à noite e teve a carteira de trabalho assinada como office-boy de uma empresa de revestimento de metais.
Tocou a vida. Se, aos 15 anos, subia e descia avenidas, aos 20 era o contador geral da firma e comandava 15 subordinados. Saiu para bater o ponto em uma companhia maior. Aos 23, abriu sua primeira empresa de auditoria, sem abdicar do projeto de estudar à noite. Cursou as faculdades de Contabilidade, de Direito, de Administração e fechou com uma pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas. Tudo isso sem renunciar ao, digamos, corintianismo participante. Foi assim até na escolha da data do primeiro casamento (está no segundo, com uma amiga de infância), realizado em um dia de São Jorge. Claro que entrou na igreja trajando um vistoso terno listado de preto e branco, ora essa.
Em 2001, Raul vendeu sua parte nos negócios ao sócio. Foi quando comprou uma indústria de cosméticos (a Esthetic, da marca fantasia Belladona) e um restaurante de primeira linha no Itaim Bibi, (o Cantaloup), que as publicações de gastronomia chamariam de trendy. Ambos vão bem. Mas, passados dois anos, Raul voltou à posição em que, de fato, joga um bolão: abriu uma empresa de auditoria com as suas iniciais, a RCS, mais tarde afiliada à americana Crowe Horwath, que atua em 102 países.
Tal como ocorre nos campeonatos de futebol da Europa, o mercado de auditoras é dominado por poucos gigantes. PwC, Deloitte, Ernst & Young e KPMG formam o G4. É assim em todos os países. Um clube fechadíssimo. No Brasil, o quinto lugar do ranking cabe à BDO. Posicionada em sexto, a Crowe Horwath RCS trabalha, sobretudo, com pequenas e médias empresas. Fazê-las crescer é uma das especialidades do alvinegro que, aos 8 anos, vendendo pipas, compreendeu, na prática, a lei da oferta e procura.
Mais de 30 anos de atuação na área financeira deram a Raul cancha para resumir os problemas recorrentes nas empresas menores. Ele se lembra de que, nas estatísticas, 75% dos pequenos empreendedores quebram em um prazo de cinco anos. “Ainda bem que isso está mudando e muito”, celebra. Os dois motivos principais da falência, a seu ver, são a falta de projeção do fluxo de caixa e, ainda, a ausência de plano de carreira nas empresas familiares. No primeiro caso, isso significa que, em vez de reinvestir o lucro no próprio negócio, o empresário gasta o dindim em bens pessoais e manda às favas o capital de giro. “Vejo que uma empresa está no bom caminho quando o dono reclama que, quanto mais ganha, menos dinheiro consegue por no bolso”, brinca. Quanto às empresas que contratam, sem critério, os próprios familiares, ele comenta, bem-humorado: “Esse negócio de dar emprego a parente porque confia nele é amadorismo. A pessoa em que mais confio no mundo é a minha mãe e nem por isso vou dar a ela um cargo de gerente financeiro”.
Raul vê mudanças alentadoras na mentalidade dos empresários. Por exemplo: no lugar do brusco enxugamento do número de funcionários, conhecido pelo eufemismo “reengenharia”, ele enxerga agora a adoção cada vez maior de softwares capazes de tornar a empresa mais integrada e competitiva. “A reengenharia supunha que, além de fazer o próprio trabalho, o sujeito teria a maior boa vontade e altruísmo para auxiliar o trabalho do outro”, analisa. “Isso é utópico.” Outra transformação, a seu ver, é um inevitável e irreversível caminho de transparência nos negócios. “Nos anos 1980 e 1990, havia planejamentos tributários baseados em brechas na lei, mas isso também está acabando”, afirma, lembrando que, em um mundo tão interligado, é cada dia mais difícil agir à sorrelfa. “Você foi filmado muitas e muitas vezes desde que saiu da sua casa até chegar ao meu escritório”, exemplifica. “Também nos negócios os dispositivos de controle são muito maiores. Você pode notar que o número dos paraísos fiscais está diminuindo.”
Sendo assim, como então as grandes empresas de auditoria não diagnosticaram em tempo hábil os desmandos econômicos causadores da crise de 2008? Raul mede bem as palavras: “Quando se lida com mercados futuros, há dificuldade de projeções”, explica. “Foi o que aconteceu. Um auditor examina balanços. Mas não pode prever o futuro.” Há quem diga que problemas dessa ordem seriam menores, caso as auditorias fossem contratadas pelas bolsas de valores e órgãos públicos; e não diretamente pelos próprios clientes. Raul não concorda. “Ora, os acionistas são os primeiros interessados em saber como anda a gestão da empresa e, por isso, contratam os auditores independentes em que confiam”, justifica. “Além disso, os órgãos públicos já têm os instrumentos necessários de controle.”
Uma carteira com centenas de clientes obriga Raul a não ter hora para sair do escritório. “Os homens de Recursos Humanos que não me ouçam, mas sempre achei que muita dedicação ao trabalho também pode ser, sim, um bom sinônimo para qualidade de vida”, diz. Sabe-se lá como, mas ele ainda encontra tempo não só para cuidar das finanças do Corinthians, mas também para se dedicar a outra velha paixão: a música. “Sou um perna de pau, não canto, não toco e nem danço”, vai avisando, mas lançou dois livros com seleção de trechos de letras de música popular, MPB, Versos para sua Prosa. Amigo de músicos como Guarabyra, Belchior, Carlinhos Vergueiro, Celso Viáfora e Tavito, costuma promover saraus que avançam madrugada adentro na casa da rua Campo Verde (“ainda vou mudar o nome da rua”), construída em 1954 (quando o Corinthians foi campeão) pelo arquiteto Rino Levi. Guarda em casa diversos instrumentos musicais, à exceção da bateria, e uma discoteca com seis mil álbuns. Tem, ainda, uma invejável coleção de quadros de pintores brasileiros construtivistas (Hércules Barsotti e Amilcar de Castro, por exemplo). Destoam, no acervo, obras de Jânio Quadros, um deslize explicável: Raul foi um aplicado militante da Juventude Janista, movimento iniciado em 1981 e que, quatro anos mais tarde, ajudaria a levar o ex-presidente de volta à prefeitura de São Paulo. “Cheguei a ser convidado para ser o secretário de Negócios Extraordinários, mas não pude aceitar porque minha empresa estava decolando”, conta. Talvez tenha feito mais um extraordinário negócio: 58 secretários passaram pelas 22 secretarias durante o volúvel governo Jânio.
Um de seus músicos preferidos é Walter Franco. Também um amigo. Em 1972, Raul foi ao Rio de Janeiro para torcer por Cabeça, a canção (ou anticanção?) ultraexperimental composta pelo cantor e forte concorrente do VII Festival Internacional da Canção Popular. Levou faixas, uma delas pouco musical: “O Corinthians está presente”. Deu Flamengo: a competição foi vencida por Jorge Ben, com Fio Maravilha, à revelia do júri, destituído por preferir Cabeça. Eram tempos tão conturbados que o discreto Walter acabou preso, numa leva que incluiria até a delicadíssima cantora Alaíde Costa.
Quase quatro décadas depois, o brigador das ruas deu lugar a um otimista, que prevê a Zona Leste paulistana se desenvolvendo no derredor do futuro estádio do Corinthians; e o Brasil, como um todo, crescendo como nunca se viu, em torno dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo. “Somos a bola da vez”, entusiasma-se. “Teremos dez anos de crescimento. Estaremos no centro das atenções do mundo por anos a fio e isso não tem preço, ainda mais nesse momento. Vêm aí grandes investimentos em infraestrutura, vindos de todas as partes. Entre os chamados BRICs, somos aquele com a inflação sob controle e os sistemas bancário, legislativo e judiciário estruturados e consolidados. O Brasil é um investimento plenamente confiável.”
As carteirinhas, recortes e a espinhosa faixa de campeão de 1974 (terá algum outro corintiano guardado uma delas?) voltam para as gavetas. Além de serem recordações de um valor que nenhum auditor saberia avaliar, farão parte do livro que Raul vem escrevendo: Corinthians – 1967-1970 – Foi Assim que Eu Vi e Vivi. Uma última pergunta: será que em alguma das gavetas está o plano de tornar-se algum dia o presidente do clube?
Raul mostra-se reticente. Lembra que seriam precisos dois mandatos de conselheiro do Timão para se candidatar – e ele ainda está no primeiro. Mais à vontade, confessa: “Se a oportunidade surgir, por que não?”.
Para, pensa e emenda: “Aposto que você vai terminar a reportagem com essa frase”.
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