Ela já provocou duas grandes surpresas em disputas eleitorais. A primeira aconteceu há quase 24 anos, quando derrotou Paulo Maluf em pleito de um turno e tornou-se a primeira prefeita do PT na cidade de São Paulo. Ficou conhecida nacionalmente, mas o impacto da façanha foi regional. Da segunda vez que surpreendeu, Luiza Erundina despertou em todo o País o debate sobre o pragmatismo político, como são chamadas as alianças feitas entre opostos em troca de sucesso eleitoral. Aos 77 anos, deputada federal pelo PSB no quarto mandato consecutivo, Erundina renunciou à vaga de vice na chapa encabeçada pelo ex-ministro Fernando Haddad (PT) por causa de uma imagem. No sobrado despojado que abriga seu escritório político na capital paulista, ela contou à Brasileiros como tomou a decisão: “Eu estava aqui, exatamente nesta mesa, acompanhando as notícias, quando veio aquela bomba. O Lula na casa do Maluf, selando um acordo. Isso causou em mim um choque”.
Erundina não conversou com ninguém. Ainda sob o impacto da fotografia tirada nos jardins da mansão de Maluf, decidiu abandonar a candidatura. Quatro dias antes, ao anunciar a sua participação na chapa, ela sabia da possibilidade de o PP de Maluf entrar para a aliança, já que o partido integra a base de apoio do governo Dilma Rousseff. Apostava, no entanto, que seu mais feroz antagonista se alinharia com o candidato do PSDB, José Serra, com quem também negociava. “O Maluf só não ficou no colo do Serra porque o Alckmin negou um elemento de barganha política, que era uma Secretaria de Habitação, já.”
A notícia da renúncia fez disparar o nome de Erundina nas mídias sociais, associado ao tema “ética na política”. Entre as centenas de mensagens que recebeu, uma era manuscrita, do conceituado crítico literário Antonio Candido, um dos fundadores do PT: “Aceite os meus cumprimentos pela coragem cívica e a coerência socialista com que agiu, de maneira a confirmar o seu passado exemplar.” Ao mesmo tempo, Erundina passou a ser criticada pela intolerância e por fornecer munição aos seus próprios adversários, assim como aos oponentes do PT e de Lula. Como se sabe, o ex-presidente foi o principal articulador da aliança do PT com o PP, para ampliar em um minuto e 35 segundos o tempo de Haddad na televisão.
Imaginar Erundina afastada da campanha do PT em São Paulo é, porém, um equívoco. Convicta de que Haddad é o melhor candidato, ela conta que vai fazer campanha na rua, sem se “misturar” com Maluf. No Congresso, pretende continuar atuando em várias frentes, entre elas a da reforma política, que defende há 12 anos. “O sistema político está exaurido. São quase 30 partidos e nenhum deles tem identidade. As siglas não vão além de letras traduzindo o nome dos partidos.” A seguir, os principais trechos da entrevista.
Brasileiros – Para uns, foi coerência política. Para outros, intransigência. O que representou para a senhora renunciar à candidatura de vice?
Luiza Erundina – Tenho pautado a minha vida política por princípios. Entre outros, o princípio da coerência. Não é só por uma satisfação pessoal. É uma exigência de quem delega sucessivos mandatos para mim. Há um sentimento na sociedade que apela no sentido da coerência, da dignidade, de não fazer concessões, de romper com o fisiologismo, com o pragmatismo excessivo da política brasileira. Tanto que recebi manifestações do País inteiro. E todas sinalizam nessa direção.
Brasileiros – Ao mesmo tempo, sua atitude também está sendo usada para criticar Lula e o PT. Como se sente diante disso?
Erundina – É do jogo. Não há como ter controle sobre a repercussão. Quem avaliou positivamente minha decisão vai compreender por que eles estão fazendo isso. Não estou preocupada. Estou em paz. Faço política acreditando que é possível mudar. E a política brasileira piora cada vez mais, por causa das concessões éticas e morais que os mais diferentes sujeitos fazem na ação política.
Brasileiros – A senhora esperava tamanha repercussão?
Erundina – Eu não imaginava. Não fiz nenhum cálculo em relação a isso, mas a reação mostra que a sociedade não está indiferente ao que acontece na política. Minha preocupação era com a direção nacional do PSB, que fez a aliança com o PT. O projeto da direção estadual era apoiar o Serra. O presidente do diretório estadual, Márcio França, já tinha até ido para o governo Geraldo Alckmin.
Brasileiros – Quando ocorreu a mudança?
Erundina – O presidente nacional do PSB (Eduardo Campos, governador de Pernambuco) me chamou no dia 1o de junho para discutir essa questão. Eu disse que estava à disposição do partido se fosse para reconstruir um governo democrático e popular, a exemplo do que fizemos eu e a Marta Suplicy. Sabia que poderia ampliar os apoios, trazer segmentos em relação aos quais Haddad teria mais dificuldade, por nunca ter disputado eleição. E esses segmentos não votam simplesmente. Eles fazem a campanha.
Brasileiros – Que segmentos são esses?
Erundina – A periferia, a classe média. Meu eleitorado hoje não é apenas aquele que me elegeu vereadora, deputada estadual e depois prefeita. Tenho uma atuação mais ampla, nacional.
Brasileiros – Por outro lado, a emoção no momento do anúncio de sua candidatura remetia à origem do PT. Tanto que Haddad e muitos da plateia choraram. A senhora também ficou emocionada.
Erundina – Eu não me divorciei dessa origem. Embora esteja em outro partido, mantenho as razões pelas quais ajudei a fundar e a construir o PT. No PSB, tenho tido uma militância muito alinhada aos projetos do PT. Quando fui para o PSB, minha experiência no PT estava esgotada. Durante o meu governo, tive uma dificuldade enorme com a direção municipal do partido. Eles faziam mais oposição do que a oposição real. Quando saí, não mudei para o centro nem para a direita. Mudei para uma casa no campo popular democrático de esquerda, socialista. Eu não sou daqueles que acha que o socialismo morreu. Minha opção pela ética, pela luta por transformações estruturais, continua.
Brasileiros – Que tipo de transformação?
Erundina – Não ficar satisfeita em fazer apenas reformas pontuais. É preciso ir fundo nas causas dos problemas, como no caso do sistema político. Minha insatisfação é sobre como as práticas políticas se dão. O sistema está exaurido. O sistema partidário não existe. São quase 30 partidos e nenhum deles tem identidade. As siglas não vão além de letras traduzindo o nome das agremiações. Não há diferença de um partido em relação ao outro.
Brasileiros – A senhora sabia que o PT estava negociando com o PP de Paulo Maluf?
Erundina – Não. Até o dia em que anunciamos minha candidatura a vice, não havia nenhuma notícia concreta de que essa conversa com o PP estava acontecendo. Seria razoável, pois está na base do governo. Mas até ali a conversa do Maluf era com o PSDB, exigindo uma secretaria.
Brasileiros – E não teria sido melhor deixar o Maluf no colo do Serra?
Erundina – Claro que para mim seria melhor. O Maluf só não ficou no colo do Serra porque o Alckmin negou um elemento de barganha política, que era uma Secretaria de Habitação, já. A preferência dele era o Serra, até porque o PT não é governo nem no Estado nem na capital. Não teria, portanto, uma contrapartida imediata. Aí, o governo federal concedeu a ele a Secretaria Nacional de Saneamento, em um ministério que, na verdade, é do PP. Aliás, um dos ministérios com um dos maiores recursos orçamentários e financeiros.
Brasileiros – No momento do anúncio de sua candidatura, no Hotel Pestana, a senhora ainda não sabia da negociação?
Erundina – Já no hotel, quando eu estava indo para a sala onde foi feito o anúncio, um companheiro da assessoria do Eduardo Campos me mostrou uma mensagem no celular dele. Era a notícia de que, provavelmente, o Maluf iria discutir com o PT o apoio a Haddad. Perguntei ao Haddad, ele disse que isso seria algo sem importância, que ainda não tinha sido conversado. Ele minimizou.
Brasileiros – Perguntou para o Haddad antes do anúncio?
Erundina – Sim. Na transição, no momento em que íamos para a sala. Por isso, ele alegou depois que eu já sabia. Enfim, no dia seguinte comecei a fazer campanha. Estava muito motivada. Fiz contato com os movimentos, com os setores progressistas da igreja. Em seguida, tive uma reunião com mais de 200 pessoas, a maioria do PT. Grande parte delas esteve no meu governo. Entre as coisas que incomodavam essas pessoas era a hipótese de Maluf vir a apoiar Haddad. Fiquei de falar desse desagrado ao Haddad.
Brasileiros – Então, teve o jantar na casa do Haddad.
Erundina – Dei o recado, mas ele disse que não estava nada certo. Disse também que estava esperando um telefonema da coordenação da campanha para tratar dessa questão. Acredito que ele não estava seguro sobre como as coisas iriam se dar. Acredito que ele não sabia mesmo. Se me dissesse “o PP vai apoiar, é interessante por causa do tempo de televisão”, seria desconfortável, mas não incompatível. O PP já está no governo federal. Na segunda, aconteceu aquilo lá.
Brasileiros – Como foi?
Erundina – Eu estava aqui, exatamente nesta mesa, acompanhando as notícias pela internet quando veio aquela bomba. O Lula na casa do Maluf, selando um acordo. Isso foi realmente um impacto, um fato inaceitável. Isso causou em mim um choque. Como vou fazer agora?
Brasileiros – O que a senhora sentiu?
Erundina – Decepção, de certa forma desrespeitada. Eles sabem de minha incompatibilidade com Maluf. Eu enfrentei Maluf não só em eleições. Enfrentei Maluf na vala clandestina de Perus.
Brasileiros – Como foi mesmo?
Erundina – Em 1990, quando eu era prefeita, descobrimos uma vala clandestina em um cemitério construído por Maluf na região de Perus em 1970, quando ele era prefeito biônico. Em depoimento, funcionários relataram que corpos sangrando de militantes mortos pela repressão eram levados em camburões para serem jogados naquela vala. Nela encontramos 1.049 corpos em sacos plásticos, sem nenhuma identificação. Eram restos mortais de presos políticos, indigentes e vítimas de esquadrões da morte. Um funcionário que trabalhava havia décadas no cemitério testemunhou o transporte de corpos mutilados. Contou que Sônia Angel, companheira do filho da Zuzu Angel (estilista que morreu confrontando o regime militar, em busca do corpo de Stuart Edgar Angel, morto sob tortura), teve os seios decepados. Criei, então, condições políticas para chegar à verdade sobre aquelas ossadas. Eu me desloquei para o cemitério, lacrei as ossadas em uma sala e pedi a presença do Ministério Público e da polícia, porque os Shibatas da vida (referência a Harry Shibata, médico legista acusado de assinar laudos que encobriam torturas e mortes cometidas nos porões da ditadura) ainda estavam no Instituto Médico Legal.
Brasileiros – Havia cumplicidade do então prefeito Maluf?
Erundina – É evidente. Ele construiu o cemitério para ter onde desovar os corpos dos opositores do regime que eram mortos no DOPS e na OBAN, na época do Fleury (o delegado Sérgio Paranhos Fleury, símbolo da truculência repressiva do período).
Brasileiros – Isso passou por sua cabeça quando viu a foto?
Erundina – Claro. É Maluf, gente. Eu disputei com ele a prefeitura. Eu o derrotei. Depois, ele tentou de todas as formas encontrar coisas contra mim. Levantou calúnias. Nós somos isso. A personalização política em São Paulo tem em um polo a minha pessoa, em outro o Maluf. Como vou conviver com o Maluf em um mesmo espaço, em uma mesma chapa, em um mesmo projeto político? Não dá!
Brasileiros – O que foi pior?
Erundina – O significado daquele gesto. Você não vai à casa de ninguém se não tem afinidade, respeito ou pelo menos consideração. Ninguém faz isso. E o Maluf explorou isso. Ele arquitetou aquele momento. Aquela cena. Aquele afago ao candidato. Ele passa a mão na cabeça do candidato, cumprimenta o Lula. A maior alegria. Ele estava resgatando um espaço que havia perdido. Ele estava junto com a liderança mais popular, mais respeitada e mais representativa do País. Junto com ele, celebrando um acordo, um compromisso de um projeto político. E não é em qualquer cidade, é em São Paulo. Foi algo de uma tremenda violência. Acho que o Lula foi, no mínimo, descuidado. Dizem que a ida do Lula foi uma exigência do Maluf. Mas ele cedeu. Isso eu não aceito.
Brasileiros – Foi nesse momento que a senhora decidiu sair?
Erundina – Ah, sim. Em política, você não pode demorar a tomar decisões. Tem de tomar no timing certo. Não adianta tomar depois.
Brasileiros – Antes, conversou com alguém?
Erundina – Não. Eu estava acompanhando o noticiário, foi on line, digamos assim. Foi no momento em que o fato estava se dando. Começaram a telefonar, a repercutir a notícia comigo. Quem primeiro me abordou foi uma rádio. Ainda sob o impacto, disse que iria repensar, que não sou de me omitir, de recuar.
Brasileiros – A senhora está repetindo um movimento com as mãos para o corpo. Deu um mal estar físico?
Erundina – Também. A gente é uma coisa só. Mente, coração, corpo. Então, naquela hora, não deu para conversar. Essas coisas não dão para esperar. Não dá para submeter à opinião do outro, mesmo que ele seja o meu presidente nacional, o avalista da candidatura.
Brasileiros – A senhora continua na campanha?
Erundina – Sim. Vou ajudar na campanha. Haddad é o melhor candidato. É a única candidatura capaz de construir um governo nos moldes daquele que a gente viveu na cidade. Não é reeditar o governo. São Paulo depois de 20 anos é outra cidade. Mas precisa de uma gestão democrática, participativa e transparente.
Brasileiros – Não é incoerente? Não pode ser vice, mas faz a campanha?
Erundina – É diferente. Eu não sou obrigada a ir para a televisão nem a subir em palanque. Vou fazer a campanha na rua, com as pessoas que se identificam comigo. Não quero ser omissa. Eu não daria o meu apoio a nenhum dos outros candidatos. A nenhum mesmo. E vou ficar só assistindo? Ou só vou votar? Não pode ser assim. Na política a gente tem responsabilidade. Farei a campanha, junto com as pessoas que estão comigo, mas não misturados com Maluf.
Brasileiros – Em sua trajetória política, a senhora se lembra de ter tomado alguma decisão que tenha provocado tanta reação?
Erundina – Não nesse nível. Mas sempre há uma identidade entre aquilo que eu assumo como liderança política e quem me apoia. Minhas decisões refletem como essas pessoas avaliam a conjuntura política.
Brasileiros – E elas começaram a procurá-la.
Erundina – Imediatamente. Me mandaram mensagens de compreensão, de apoio. Todo o tipo de gente, do País inteiro. Mensagens de pessoas que tenho muito respeito, como o Fábio Konder Comparato (jurista), Antonio Candido (crítico literário, um dos fundadores do PT).
Brasileiros – A senadora Marta Suplicy escreveu um artigo, o Realpolitik, afirmando que arranjos políticos que ferem o bom senso são um modelo esgotado.
Erundina – Só que a Marta teve o apoio do Maluf em 2004, no segundo turno. Maluf saiu com Kombi, com outdoor, Marta e Maluf. Percebe? Por que em 2004 Maluf poderia aparecer na campanha e apoiá-la publicamente?
Brasileiros – A impressão que tive é de que ela estava apoiando a senhora.
Erundina – Ela estava analisando objetivamente os fatos. E a barganha, a troca do cargo, a relação com o PSDB, a exigência de que o Lula fosse para aquela foto. Ela analisava os fatos. Em nenhum momento ela saiu falando disso. Falou de forma cifrada naquele artigo.
Brasileiros – E as senhoras se falaram?
Erundina – Depois disso não. Nós tínhamos nos falado antes, até pelo trabalho que a gente tem no Congresso. Há projetos meus tramitando no Senado. Eu tenho amizade pela Marta, tenho muito respeito por ela. É uma pessoa muito autêntica, fala aquilo que sente.
Brasileiros – Em todo o País estão sendo feitas coligações entre adversários históricos.
Erundina – O quadro partidário se exauriu. Por isso, eu luto há mais de 12 anos por uma reforma política. Presido uma frente parlamentar pela reforma política. Tem mais de 200 parlamentares e mais de 50 entidades que acompanham essa discussão.
Brasileiros – Mas não há meio dessa reforma sair.
Erundina – Porque as direções partidárias não criam condições políticas para que a reforma chegue ao plenário. Nem são as bancadas que tiram posições. É um processo individual. A análise é essa: que aspecto do sistema político poderia mudar que me interessa ou me prejudica na próxima eleição? É um cálculo eleitoral, para não dizer eleitoreiro, de cada parlamentar. Isso não é privilégio de nenhum partido em relação ao outro. E não é só no momento eleitoral. Não vê os desvios éticos no Congresso? Essa reação tão generalizada, tão contundente, à minha renúncia é porque existe um anseio na sociedade por mudanças profundas.
Brasileiros – A senhora não corre o risco de ficar isolada no Congresso?
Erundina – Não, porque eu já sou isolada no Congresso. Eu não sou isolada é na sociedade. Olha os prêmios do Congresso em Foco (aponta diplomas dependurados nas paredes). Sou a deputada cujo desempenho é reconhecido desde que o prêmio foi criado. Não estou me louvando. Estou falando sobre minha atuação. Tem outra frente parlamentar que presido, a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e Direito à Comunicação. Eu viajo o País inteiro participando do debate sobre a democratização das comunicações.
Brasileiros – Quando assumiu a candidatura, deu para perceber que a senhora sentia um certo pesar de ter de abrir mão da atividade parlamentar.
Erundina – Exatamente. Criamos a Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça. Já promovemos audiências públicas e oitivas com dois ex-agentes do Exército na guerrilha do Araguaia, além de uma vítima. Ouvimos também testemunhas do massacre de dois mil índios Waimiri Atroari. Nós queremos justiça. Não queremos só revelar a verdade, ficar na memória e arquivar no Diário Oficial.
Brasileiros – Isso significa ir aos tribunais?
Erundina – Claro. Aliás, acompanhados pelo Ministério Público ouvimos formalmente, pela primeira vez, os ex-agentes da ditadura Cláudio Guerra e Marival Chaves. Foram 16 horas de depoimento. As investigações devem se transformar depois em processos para que os responsáveis pelas violações dos direitos humanos sejam punidos. Como tem sido feito na Argentina.
Brasileiros – E a lei da anistia?
Erundina – Tenho um projeto tramitando na Câmara que altera o artigo primeiro da lei. Ele retira dos benefícios da lei os agentes do Estado que praticaram crimes de lesa-humanidade. É preciso uma pressão da sociedade para que ele seja aprovado. Mas ele vai ser. Os relatos sobre as torturas estão vindo à tona. Isso vai criar uma consciência coletiva contra esses crimes.
Brasileiros – Há pouco, a senhora participava de uma gravação. Era um documentário?
Erundina – Estão fazendo registros com aqueles que foram os primeiros vereadores do PT em São Paulo. Fui a líder da primeira bancada do PT na Câmara Municipal. Éramos cinco. Três mulheres e dois homens. Quando a gente chegou lá, os machistas da Câmara queriam saber se tínhamos pernas bonitas. Estavam preocupados em como iríamos ao banheiro. Na época, não tinha banheiro para mulheres na Câmara. Um besteirol.
Brasileiros – Naquela época, a senhora enfrentou muitos preconceitos por ser mulher, migrante, solteira.
Erundina – Nordestina, de esquerda, de origem humilde. Só faltava ser negra para completar. Mas não me sinto vítima do preconceito. Vítima é quem é preconceituoso. Se eu fosse negra, teria mais um motivo para fazer luta ideológica. A luta contra o preconceito é uma luta ideológica.
Brasileiros – Os tempos mudaram. No Uruguai, pensando em redução de danos, o governo pretende controlar o plantio e a venda de maconha. O que acha da ideia?
Erundina – Tenho uma visão diferente. A droga é muito danosa, não a maconha em si, mas o que ela traz como exigência atenta contra a saúde pública.
Brasileiros – Outro aspecto da luta contra o preconceito. O presidente Barack Obama se manifestou a favor dos homossexuais. A revista Newsweek inclusive colocou-o na capa, como o primeiro presidente gay.
Erundina – Isso é tão legal. É uma evolução da humanidade, das sociedades civilizadas. A liberdade é o bem maior do ser humano. Mesmo para aqueles que têm fé, e eu tenho, existe a questão do aborto. Ninguém tem o direito, muito menos o Estado, de impor a alguém uma convicção que é de outros. Não se pode impor uma convicção religiosa a toda uma sociedade. Isso vale para o abordo. Vale para tudo. Se Deus é Deus mesmo, e está acima do bem e do mal, ele não iria criar o ser humano inteligente, consciente, sem associar isso à liberdade. Somos livres inclusive para errar.
Brasileiros – Deputada, essa tela retratando Uiraúna, no sertão da Paraíba, ocupa lugar de destaque em sua sala. Quais as lembranças que tem da cidade natal?
Erundina – São lembranças muito tristes. Eu vivi desde criança a tragédia da seca. Chegava 19 de março, dia de São José, data limite para se esperar a chuva no Nordeste, e já se começava a arrumar a trouxa para arribar, como se dizia, nas piores condições, naquele solarão da seca. Ir para outro Estado, sem saber o que iria encontrar lá.
Brasileiros – Depois voltava?
Erundina – Ficava só esperando que chegasse a chuva. A gente não se vinculava a outro lugar. Mas, como a família era grande, a minha eram dez filhos, a cada seca alguns ficavam em alguma cidade. Ou porque tinha encontrado um emprego ou porque tinha casado. Só as mulheres é que costumavam voltar todas com os pais, para retomar àquela vida sacrificada, difícil. De fato, minhas raízes são essas.
Brasileiros – Olhando em retrospectiva, de onde vem essa característica de tomar decisões sem se importar com a opinião dos outros?
Erundina – Eu rompi com um padrão que se reproduzia de geração em geração. Nós, mulheres, com 14, 15 anos já casávamos e tínhamos uma filharada. Eu rompi com isso desde cedo. Rompi porque tinha um apelo muito forte para estudar.
Brasileiros – O estudo, aliado à atuação na Pastoral da Terra e à perseguição política na Paraíba, a trouxeram para São Paulo já em 1971. Como foi a aproximação com Lula?
Erundina – Saí de João Pessoa muito magoada, chorando, achando que tinha deixado a luta para trás. Em São Paulo, como assistente social da prefeitura, fui trabalhar nas favelas, nos cortiços. Me defrontei de novo com a causa fundiária, só que com a terra urbana. Mais tarde, ajudei a reativar uma associação de assistentes sociais que havia sido fechada pela ditadura. Nessa época, Lula e companhia lutavam pelo direito da liberdade sindical.
Brasileiros – Como foi, então, o encontro com Lula?
Erundina – Em 1979, os órgãos da minha categoria convocaram um congresso oficialesco, de promoção das políticas do governo. Antes, me reuni com um grupo de assistentes sociais que já estavam se organizando. No segundo dia, fizemos uma plenária e tomamos a direção do congresso. Eu presidi esse movimento. Viramos a mesa. Destituímos a comissão de honra, que tinha o general-presidente João Figueiredo e o então governador Maluf.
Brasileiros – Eles estavam presentes no Congresso?
Erundina – Não. Era uma homenagem. Nossa primeira deliberação foi substituir a comissão de honra, colocando, entre outros, o Lula, que tinha sido cassado. Eles e os outros homenageados vieram para o encerramento do congresso. No dia seguinte, Lula mandou me convidar para estar junto no partido que ele estava construindo.
Brasileiros – A senhora se imaginava virando outras mesas depois?
Erundina – Não. Vivia a luta, a utopia de transformação. Já não acredito que vou ver as mudanças pelas quais estou dando minha vida. Mas a história não anda para trás. É isso que me move, que me mantém ativa, virando algumas mesas que precisam ser viradas.
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