Machado de Assis – Quem é?

Nem pelo princípio e nem pelo fim, essa reportagem começa pelo meio. Em se tratando de Machado de Assis, o tempo não aceita linearidade. Para o imortal, o meio é a campa 1.359 do Cemitério São João Batista. Vazia. Dá para ver pela rachadura na tampa.

– Machado de Assis… Quem é Machado de Assis? – pergunta o funcionário administrativo da Santa Casa pouco antes de informar o número da sepultura.
[nggallery id=15792]

– Num cemitério de mortos célebres, procurar por um do começo do século passado não é tarefa razoável – acrescenta ele. No caderno dos mais visitados, constam Carmen Miranda, Tom Jobim, Santos Dumont, Cazuza, José de Alencar e…
– Ah, Machado de Assis! – aponta o funcionário.

Folhas de pinheiro secas pelo chão, sol que cega de tanto ofuscar, e um calor de 35 graus que confunde e impacienta. Não é improvável um morto perder-se entre as mais de 50 mil sepulturas espalhadas nos 3.874 metros quadrados do cemitério.

– Não tem ninguém aqui, olha só. Jorge, um dos coveiros do São João, mais conhecido como Pelanca, revira a tampa da sepultura quebrada em busca de nomes.
– Só pode ser essa daqui. Já deve ter sido exumado, 1908…

No alto do Corcovado, o Cristo Redentor de braços abertos ri. Aos seus pés, o bairro do Cosme Velho, onde Machado de Assis morou por 25 anos. Teria o escritor saído do túmulo para escrever suas memórias? Caminharia incógnito pelas ruas do Catete, Glória, Laranjeiras, Ouvidor? Se for à Rua Cosme Velho, não encontrará a casa que se abre no vazio, como a descreveu Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “A um Bruxo, com Amor”. No lugar foi construído um prédio de dez andares, cujo aspecto lembra o de um navio – o Edifício Marina, que começa na Rua Marechal Pires Ferreira e se estende até a Rua Cosme Velho, onde divide o espaço com uma locadora-livraria, um salão de beleza, uma pet shop, um mercadinho, uma loja de homeopatia e uma lanchonete.

Quem espremer os olhos para concentrar a visão ainda não conseguirá ver o que está escrito na placa de bronze pintada de azul, numa homenagem da prefeitura, em 1993, ao mais ilustre morador do bairro. Só se sabe que ali morou Machado de Assis por uma outra placa, não tão bonita e assinada pela Associação de Amigos e Moradores do Cosme Velho (AMA-Cosme Velho), em que se pode enxergar os dizeres: “Neste local viveu Machado de Assis de 1883 até a sua morte em 1908”.

O delírio
Natureza ou Pandora. Mãe e inimiga. Assim Machado apresentou a morte no capítulo “O Delírio” de Memórias Póstumas de Brás Cubas. E talvez assim ela tenha se apresentado a ele às 3h20 da madrugada do dia 29 de setembro de 1908, após cinco meses de visitas constantes, acompanhada de fortes dores causadas por uma úlcera na língua. Tinha 69 anos, dos quais pesaram-lhe muito os últimos quatro, marcados pela ausência de Carolina, sua eterna companheira.

– Ah, ele foi escritor, é? Então deve estar no mausoléu – Jorge aponta para a muralha de pedras que se ergue na colina do cemitério. O mausoléu da Academia Brasileira de Letras (ABL), criado por Hermes Lima, em 1962.

Degraus e mais degraus e lá estava Francisco, o zelador. Magro, de olhar desconfiado, falante; cigarro entre os dedos de uma mão, na outra uma brocha a salpicar cloro num túmulo de mármore que ficava em frente ao mausoléu. Francisco trabalha no mausoléu desde 1994, conhece uma pontinha da vida de cada um dos 67 escritores lá enterrados, por meio do anuário da ABL. Já tentou ler um livro de Machado, mas parou no meio.

– Prefiro o José de Alencar, cujo túmulo fica aqui na frente, fora do mausoléu. Da obra de Machado de Assis conheço pouco. De sua vida só sei o que todo mundo sabe, que foi escritor e presidente da ABL. Mas costumo dizer que foi Machado quem me convocou para trabalhar aqui.

Dentro do sepulcro coletivo, os restos de Machado repousavam num quadrado de mármore preto. Nada além do pó, farelo da borracha que apagou as últimas linhas.

– Aqui dentro não há nada, nem fantasma, nem lendas, nem assombração. Há muita solidão, poucas pessoas vêm vê-lo. Nem filho ele teve, né… O sujeito se esforça tanto para deixar de ser o pobre mulato que veio do morro, se destaca num mundo que acabara de abolir a escravidão e quando morre é esquecido… Talvez nos livros seja possível encontrá-lo. Não foram eles que o tornaram imortal? – questiona Francisco.

O espetáculo do esquecimento
Nos livros, Machado sorri, um riso descompassado e idiota diante da calamidade que é viver. Um século se passou após sua morte, um século veloz e turbulento. Sobre as gerações que vieram, Pandora derramou ora tristeza, ora esperança.

– … a coisa é divertida e vale a pena… Vamos lá Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me – grita Machado na voz de seu personagem Brás Cubas, num desafio à morte, que não nega ser também à vida. E, ainda em delírio, Brás Cubas e Machado assistem ao espetáculo do esquecimento acontecer.
– A única imagem recorrente que me vem de Machado é a história que me contaram assim que vim trabalhar aqui. Me disseram: “Não se assuste ao ouvir uma música no meio da noite. É o Machadão tocando piano”.

Eduardo Fernandes Toneloto é técnico em eletrônica e trabalha num estúdio na Rua Marechal Pires Ferreira, onde era a casa de Assis. A entrada do lugar fica de frente para a capela onde o escritor se casou com Carolina no dia 12 de novembro de 1869. Desde 2001, Eduardo caminha pelas ruas calmas onde o escritor caminhava, passa horas ali, e acha que sai impune dos feitiços do Bruxo do Cosme Velho.

– Não sei nada sobre Machado. Se li algum livro dele, foi na escola, nem lembro mais. Contudo, é Eduardo quem conta onde Machado se casou, mostra exatamente onde ficava a sua casa no espaço em que foi construído o prédio, e lembra como as pessoas que moram ali se orgulham de fazer parte da história do escritor. Eduardo sorri, enquanto diz que há coisas mais importantes para se preocupar no Rio de Janeiro. O seu Rio não é o mesmo que o de Machado de Assis, argumenta.

O Rio de Eduardo tem mais de 15 milhões de habitantes; o de Machado tinha 300 mil. No Rio de Eduardo, 95,8% da população é alfabetizada; na época do Brasil Império, metade era escrava. No Rio de Janeiro de hoje, os morros escorrem para a cidade e são chamados de favelas. Em meados do século XIX, favelas eram chácaras que pertenciam a gente de dinheiro. Antes a iluminação a gás limitava-se ao centro; hoje, vista do alto do Pão de Açúcar, à noite, a cidade é desenhada em pontos de luz, tal qual árvore de Natal.

Em comum, talvez os dois Rios guardem o medo, que fez os brancos alforriarem seus escravos para evitar rebeliões que não poderiam controlar, e que hoje justifica o assassinato de jovens, quase todos negros, nos morros, em tão larga escala que o Brasil ocupa a liderança do ranking mundial.

– Você já foi assaltada aqui? – questiona Eduardo, para finalizar sua argumentação. – Não? Garanto que é uma questão de dias. E quando esse dia chegar é preciso tomar cuidado, porque num instante nos vemos apoiando a pena de morte e a execução sumária.

A miséria de Eduardo é a violência, vista sob lentes de aumento pela mídia, preocupada demais em sustentar sua credibilidade e manter os patrocinadores. Já para Machado de Assis, contava a miséria da existência, a miséria de um pedaço de carbono que ousou ser homem e se sonhou forte, jucundo, eterno. E que, no breve instante entre o respirar e o morrer, percebeu-se no verme que destroçava as próprias entranhas. Talvez esses dois Rios guardem muita coisa em comum.

Sobre ruas e livros
Rubião perseguia a costureira Dondon pela Rua do Catete. Queria flagrar os encontros amorosos de Sofia com um moço bonito, de bigodes e olhos grandes, muito grandes. Sofia era a esposa de seu amigo Palha e por ela Rubião nutria forte afeto, que a própria fazia questão de alimentar, na tentativa de mordiscar-lhe gorda herança. A Rua do Catete foi a via de acesso dos passeios de Rubião, personagem principal do livro Quincas Borba. De lá ele se encaminhava para o Morro Santa Teresa e para as praias do Flamengo e de Botafogo, onde morava. O Catete era, como hoje, um pedaço de terra espremido entre o mar e o morro, cruzado por outras ruas que dão acesso a bairros importantes da cidade. A diferença é que não existia o grande número de lojas populares em que os vendedores nas calçadas disputam com os ambulantes a atenção das pessoas.

Cantores de rua têm suas vozes abafadas pelos sons de axé e pagode que atordoam os ouvidos de quem passa. Um moço magro, de roupas puídas e cabelos cuidadosamente trabalhados no estilo Bob Marley, se prostra numa esquina e, sem ligar para a concorrência, segue com cantorias de Djavan ao violão. Mais à frente, as cordas de um violino interpretam músicas de Tom Jobim e Vinicius, tocado por um senhor gordo, cujas feições demonstram o prazer de estar ali. Naquelas ruas de paralelepípedos Machado caminhou para que Rubião fosse criado. Talvez aqueles personagens, meio moradores de rua, meio saltimbancos, tenham inspirado o louco-filósofo Quincas Borba.

– Não tenho dúvidas de que era das ruas que Machado tirava seus personagens. Ele era um grande observador, costumava dizer que onde ninguém metia o nariz lá entrava o dele, com curiosidade estreita e aguda, a descobrir o encoberto. As palavras são de Luís Antônio de Souza, chefe da Biblioteca Acadêmica Lúcio de Mendonça e grande leitor de Machado. O primeiro contato com o autor foi na escola: Dom Casmurro. O menino encantou-se por Capitu e seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Pouco tempo depois, aos 17 anos, foi parar na ABL, a Casa de Machado de Assis, onde permanece há 36 anos.

À altura do mestre
A Editora Globo lança as três principais obras de Machado de Assis – Memórias Póstumas Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba edição primorosa, com rigoroso processo cotejamento com as edições lançadas sob os cuidados próprio autor e com um bem cuidado projeto assinado por João Baptista da Costa Aguiar.

O que é Machado de Assis? Luís debate o tema com olhar apaixonado. Para o bibliotecário, Machado é mais do que o escritor que foi presidente da ABL. Machado lhe mostrou que, ao nascermos, temos todas as possibilidades pela frente pelo simples fato de existirmos.

– O mundo real não reservava nada a um mulato franzino e doentio, de origem humilde. Mas ele estava ali, nasceu e esse foi o seu trunfo. Machado já era um escritor conhecido quando Lúcio de Mendonça, amigo e também escritor, veio com a idéia de criar uma academia brasileira de letras nos moldes da Academia Francesa. No dia 20 de julho de 1897, acontecia a sessão inaugural da ABL. A presença de Machado de Assis se fez tão importante que o lugar ficou conhecido por Casa de Machado de Assis e, por causa disso, muitos lhe dão o crédito de idealizador do projeto. Mas Luís garante que esse não foi o grande feito do escritor. Para ele, Assis é um grande homem e por isso se fez escritor, e não o contrário.

– Talento, estudo e trabalho. Seguindo essa fórmula ele aprendeu francês, grego, inglês. Talento era o desejo de aprender; estudo era o debruçar-se sobre os livros; trabalho era o que fazer com o que tinha aprendido. Está aí a fórmula do triunfo de Machado de Assis.

Luís gesticula, suas mãos propõem que o escritor atravessou os tempos para tocar a essência do que somos. Através de Luís, Machado de Assis sopra- nos aos ouvidos. Triunfo nada tem a ver com vencer, ganhar. Triunfo é um processo, construção, que não depende só do escritor, mas de seus leitores. Literatura não se faz só, Machado sabia, e, por isso, conversava com o leitor. Em vez de se esconder para dar a impressão de narrar um fato real, ele se expunha para mostrar que o que fazia era ficção. O leitor sai do lugar intocável e passa a fazer parte da obra.

Para Luís, ao levar o leitor em consideração na hora de escrever, Machado mostrou que a palavra tem beleza diferente, a ser descoberta a cada linha, com sons que levam a inaugurações de formas. Por causa disso, muitos lhe viraram o nariz, não aceitavam uma obra que escapava da narrativa romântica. Houve quem descrevesse sua obra como primária e rudimentar, de vocabulário resumido. Besteira, diz Luís:

– Hoje o comparam a Proust (1871-1922). Agora, dizem, um país que tem um escritor como o Machado pode dar certo, não?


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.