Mãe de Santo à francesa

Quando a francesa Gisele Cossard Binon pisou pela primeira vez num terreiro de candomblé, pairava um clima de festa no local. Era o dia 5 de dezembro de 1959 e, na noite anterior, uma festa para Iansã havia sido realizada. A roça recendia a flores e ela sentiu, naquele momento, que nada era aleatório, que tudo fazia sentido: cada cor, cada folha, cada detalhe. Sua vida jamais seria a mesma depois de ouvir os atabaques tocando para Iemanjá, a rainha do mar. Recém-chegada ao Rio de Janeiro, a moça de pele branca e olhos azuis era católica e não tinha qualquer relação com a cultura africana – origem do candomblé. “Aparentemente, nada me ligava tão fortemente à África. Nasci no Marrocos, país que deixei antes de completar dois anos de idade, muito pequena para ter conservado qualquer lembrança. Mas meus pais, que eram franceses, guardavam dessa terra uma imagem encantadora, que embalou toda a minha infância”, diz ela na apresentação de seu livro recém-lançado Awó – O Mistério dos Orixás (Editora Pallas). Com o marido, o diplomata Jean Binon, Gisele morou em alguns países africanos – como Camarões e Chade – e no final da década de 1950 estabeleceu-se no Brasil, quando Binon veio assumir um posto na Embaixada da França, no Rio de Janeiro. Foi aqui que ela sentiu “a presença africana nas cores do povo, no gingar das mulheres andando pelas ruas, no cheiro do dendê nas esquinas e na exuberância da música e das danças”.

O convite para conhecer o terreiro de candomblé partiu de uma empregada, que era filha-de-santo. Movida pela curiosidade e pelo interesse antropológico, Gisele dirigiu-se até a casa de Joãozinho da Goméia, famoso babalorixá (pai-de-santo), em Duque de Caxias, região metropolitana do Rio. A inocente visita marcaria definitivamente a sua trajetória. “Aqui encontrei a chave para a África”, disse.
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Gisele Cossard Binon nasceu em 1923 em Tanger, no Marrocos, onde seu pai atuava como militar. Sua família era católica, classe média alta, republicana e culta – o pai era professor primário e a mãe, pianista do Conservatório de Música de Paris. Enviado para aquela ponta extrema da África, na época um protetorado francês, na Primeira Guerra Mundial (1914- 1918), seu pai acabou fascinado pelo país e permaneceu por lá até 1925 – quando retornou à França com a mulher e a filha. Gisele não guarda lembranças daquele período, mas, segundo o pesquisador Michel Dion, autor da biografia Omindarewá – Uma Francesa no Candomblé (Editora Pallas), a suntuosa coleção de objetos de arte que seus pais trouxeram daquele país africano, bem como suas histórias fantásticas, constituíram para ela “uma interminável fonte de deslumbramento”.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, foi determinante para que ela ampliasse os seus limites. Com o pai preso e deportado para a Alemanha, a família teve de abandonar a casa para fugir do exército de Hitler. Gisele entrou para a resistência francesa, onde atuou como espiã: com sua bicicleta, atravessava as linhas do front ao sul de Paris e fornecia aos militares franceses informações sobre as posições alemãs. Ela se lembra de ter passado muita fome nesse período. No fim da guerra, em 1945, pesava apenas 42 quilos. Foi nesse ano que seu pai voltou da prisão, a família restabeleceu-se e ela casou-se com Jean Binon. Em 1949, Gisele partiu com o marido para uma estadia de oito anos pela África. Percorreu o interior da República dos Camarões e descobriu uma iguaria impensável: peixe defumado no azeite de dendê. Na travessia de um rio, viu africanos atirando moedas na água em sinal de oferenda e achou tudo muito exótico. “Não entendia aquelas pessoas que faziam tudo diferente de mim. O que se passa na cabeça de um africano? Pode-se dizer que essa questão é o ponto de partida de toda a minha epopéia”, relata em seu livro.

A consciência de que existia um outro mundo, outra forma de pensamento, que são paralelos ao mundo ocidental, causou-lhe uma revolução interna. Descobriu a paixão pela caça – mas Gisele sempre preferiu atuar como rastreadora e seguir a pegada dos animais. Atravessou Oubangui, Congo, Congo belga (hoje Zaire), Uganda, Kenia e Tanganyika, e, em 1956, retornou à França.

No Brasil
Quando Jean Binon foi nomeado para trabalhar na Embaixada da França, no Rio de Janeiro, Gisele comemorou. Recém-chegada, não demorou a fazer amigos e aprender rapidamente o português. Nos livros de Jorge Amado, descobriu a magia dos orixás. Quanto mais se inseria na vida brasileira, mais sentia nela a presença africana. “As cestas trazidas da feira em cima da cabeça; a música que está sempre presente em todos os lugares, nas ruas, nas lojas, na praia, ritmada por tambores (…). E também porque todo mundo está sempre dançando”, escreveu Dion em sua obra. Ao contrário de Jean Binon, que só andava com franceses e odiava o Brasil de forma inexplicável, Gisele Cossard parecia cada vez mais integrada à nova realidade. Seus filhos adaptaram-se rapidamente ao País, falavam português perfeitamente e jogavam futebol na rua. Não tardou para que seu casamento entrasse em crise.

E foi naquela noite de dezembro, no terreiro de Joãozinho da Goméia, que ocorreu a grande virada em sua vida. Quando o babalorixá soube que Gisele pertencia à Embaixada da França, acolheu-a de modo especial. Ela lembra que ficou “fascinada” pela força de seu olhar. Os ogãs começaram a tocar os atabaques para Iemanjá e, de repente, enquanto admirava a evolução da dança, a francesa começou a se sentir estranha. “Pouco a pouco senti como um vazio no estômago e fui parar no chão, praticamente sem consciência.” A moça estrangeira havia “bolado no santo” (quando o orixá “toma” a cabeça da pessoa, mostrando a todos os presentes que aquela pessoa foi escolhida por ele e deve ser iniciada). Ao acordar do transe, deitada em uma esteira, alguém lhe informou que fora escolhida pelo orixá. A princípio, resistiu. “Tenho medo e não quero abandonar meus compromissos diplomáticos”, disse ao pai-de-santo. Meses depois, sofrendo com fortes dores de cabeça, rendeu-se ao chamado de Iemanjá, procurou Joãozinho da Goméia e iniciou-se no candomblé. Após o período de 21 dias de recolhimento, nasceu para uma nova vida. Seu nome não era mais Gisele Cossard Binon: passou a se chamar Omindarewá, que significa “água límpida”.

A história de Cossard Binon explica, de certa forma, o sincretismo de nossa cultura – “de repente representada não mais por uma divindade e, sim, por um ser humano” -, como escreveu certa vez Jorge Amado, referindo-se ao conterrâneo de Gisele, Pierre Fatumbi Verger (nome dado ao fotógrafo francês em 1953, na África, e que significa “nascido de novo graças ao Ifá”). Assim como ele recebeu o título de Ojuobá (“os olhos de Xangô”), das mãos de Mãe Senhora (autoridade máxima no terreiro Ilê Opô Afonjá), também a mulher do diplomata foi escolhida pelos orixás para exercer um cargo de grande responsabilidade dentro do candomblé: o de ialorixá (mãe-de-santo). Gisele foi a primeira mulher estrangeira a assumir esse posto no Brasil. Hoje, aos 85 anos, é uma das personalidades mais influentes da religião afro-brasileira.

No terreiro
O início, porém, não foi nada fácil. “Joãozinho da Goméia teve muita coragem quando decidiu me iniciar – preparar a minha cabeça para receber o orixá. Estava abrindo as portas do candomblé para uma mulher a quem chamava de embaixatriz. Eu não era embaixatriz, só queria aprender. Foi difícil conquistar a confiança do grupo. Mas, com paciência, fui fazendo amizades”, relembra Omindarewá. Em 1963, já iniciada, separou-se do marido e partiu para a França para defender uma tese sobre candomblé na Sorbonne. Lá conheceu Pierre Verger, de quem se tornou amiga. Tentou levar uma vida “normal”, mas, não suportando a saudade, voltou ao Brasil em 1972 e foi trabalhar como conselheira pedagógica do Serviço Cultural Francês.

Sem o apoio de seu babalorixá – Joãozinho da Goméia falecera um ano antes de seu regresso – Omindarewá manteve-se afastada dos terreiros. Porém, mais uma vez, o chamado do orixá foi mais forte. Em 8 de dezembro de 1973, Gisele sofreu um grave acidente de carro. Desenganada pelos médicos, foi levada por Pierre Verger à casa de Balbino Daniel de Paula – Balbino de Xangô, iniciado no Opô Afonjá, terreiro de Joãozinho da Goméia – que se propõs a ajudá-la. “Ele (Balbino) trouxe alguns de seus iniciados e ficou comigo em Santa Cruz da Serra, no Rio de Janeiro, na casa que eu acabara de comprar. Onze dias depois do acidente, era o meu aniversário de iniciação e ele fez questão de preparar as oferendas para Iemanjá. Mesmo estando eu gravemente acidentada, sem poder me mexer, sem poder andar, meu orixá veio, dançou em meu corpo e Balbino encantou-se com ele. Nossa ligação se estreitou e ele acabou sendo meu segundo babalorixá”, lembra.

Durante alguns meses, Balbino de Xangô ajudou Gisele a desenvolver o seu terreiro Ilê Axé Atara Magba, em Santa Cruz da Serra. O terreiro de Omindarewá passou a funcionar a todo vapor, apesar de muitos desconfiarem de sua legitimidade. “Fui discriminada por ser branca e estrangeira”, diz. O escritor Antonio Olinto, em seu texto para a orelha do livro de Gisele, escreve a respeito da presença de estrangeiros no candomblé: “Há aspectos da religião dos orixás no Brasil que surpreendem pelo ineditismo. (…) Num congresso organizado em São Paulo pelo babalorixá Jamil Rached – e pelo nome árabe do pai-de-santo já se pode ficar surpreendido – apareceu um grupo de japoneses, com roupas de santo. Logo depois surgiu uma casa muito animada: a de Giuseppe, italiano, que dança como ninguém”.

Candomblé e a classe média
O candomblé tem raízes milenares e chegou ao Brasil pelas mãos dos escravos africanos trazidos pelos portugueses. Foi proibido e considerado crime até 1946, mas sobreviveu às perseguições e às inúmeras tentativas de extermínio. Por ser associado aos negros, permanece envolto em preconceitos. Apesar disso, a iniciação de brancos e estrangeiros no candomblé praticado no Brasil não é fenômeno recente. Apesar de sua matriz africana e negra, a religião adaptou-se ao sincretismo para sobreviver no novo continente. “O candomblé é uma religião aberta. O destino das pessoas é predeterminado pelos orixás e não pela cor da pele”, diz Omindarewá. Giuseppe, o italiano que virou pai-de-santo, concorda: “Desde a Itália eu achava que toda religião devia ter dança. Quando cheguei ao Brasil e vi a dança dos orixás, disse logo: ‘esta é a minha religião’”.

O Brasil é o país com a maior comunidade católica do mundo. Mais de cem milhões de brasileiros declaram-se católicos. Muitos deles, contudo, acreditam também nos orixás, consultam os búzios, participam de ebós (trabalhos espirituais) e fazem oferendas. Isso talvez explique o fato de os terreiros estarem sempre cheios, embora os candomblecistas respondam por índices muito baixos nos censos sobre religião no País. Estudos mostram que a classe média não admite publicamente sua crença no candomblé. “Há um estigma de que declarar a fé no orixá poderia prejudicar suas carreiras”, afirma Mariza Soares, professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O xirê
Atualmente, Omindarewá contabiliza mais de 400 filhos-de-santo. Um deles, seu primeiro iniciado, é Mário Fernandes Filho, conhecido como Babatonican ou Pai Mário de Ogum. Ele é o babalorixá à frente do Ilê Axé Ifé Ogum Oraminan, terreiro localizado na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Apesar de ser pai-de-santo há muitos anos e de ter casa aberta, Pai Mário ainda não havia recebido o deká – um direito transmitido que delega, oficialmente, a autoridade para que a pessoa possa exercer o cargo mais alto do candomblé. Depois de receber o deká das mãos de sua mãe-de-santo, ele poderá, finalmente, “raspar”, ou seja, iniciar seus próprios filhos.
Por isso, o terreiro de Pai Mário de Ogum estava lotado de fiéis e visitantes na noite em que Omindarewá entregou o deká ao homem que aprendeu com ela os segredos do candomblé. Em uma cerimônia hipnotizante, os fiéis, de roupas brancas e batas africanas, dançaram em círculo e cantaram para Ogum, depois para Oxóssi e assim por diante, até que todos os orixás tivessem sido invocados. Omindarewá aproximou-se de Pai Mário, que estava sentado em um trono de madeira, e lançou alguns búzios aos seus pés; imediatamente, Pai Mário “recebeu” Ogum. Ele deu início à sua dança frenética e hipnotizante e os fiéis saudaram o orixá com seu grito de guerra: Ogunhê Patakori. Logo, Iemanjá e Iansã também deram o ar da graça. A emoção no terreiro foi geral. Após algum tempo Ogum se foi. Omindarewá entregou os objetos sagrados ao seu filho, oficializando o deká. Pai Mário de Ogum estava, finalmente, autorizado a dar continuidade ao trabalho de Gisele Cossard. Os fiéis então se abraçaram, partilharam a comida oferecida pelo orixá e beberam o aluá – bebida sagrada feita de milho fermentado. A francesa e os seus seguidores reproduziram, naquele momento, uma pequena África em solo brasileiro.


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