À maestrina com paixão

Regente do New York City Ballet, Clotilde Otranto manteve-se afastada do balé por mais de três décadas. “Eu bloqueei essa arte na minha cabeça”, diz a maestrina brasileira, de 63 anos. “Nunca mais fui assistir a um espetáculo.” Na adolescência, Clotilde foi uma bailarina de carreira tão fulminante quanto bem-sucedida. “Dançar era fácil para mim.” Aluna de Halina Biernacka, ela se apresentou com o elenco de Dom Quixote e O Lago dos Cisnes no palco do Theatro Municipal de São Paulo. “Até o meu sonho ser interrompido, como se tivesse levado um golpe de guilhotina.”

Os primeiros sintomas da artrite reumatoide se manifestaram quando Clotilde completou 17 anos. Ela vivia no bairro do Pacaembu e estava no último ano do colegial. “Fiquei durante um ano na cama, à espera de um diagnóstico mais preciso”, diz. “A medicina não sabia como tratar essa doença autoimune.”
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O bailarino é um atleta. Para desempenhar a sua profissão, precisa de uma condição física impecável. Em Apollo’s Angels (sem tradução, algo como os anjos de Apolo), livro que gerou polêmica neste ano, ao declarar o balé como arte morta, Jennifer Homans afirma que os dançarinos admiram Apolo, deus pagão, porque ele representa a ideia do corpo em perfeito estado. Por isso, opina a crítica de dança da The New Republic, os problemas físicos podem adquirir no balé uma dimensão moral.

Quando viu fechado o acesso ao universo da dança clássica, Clotilde teve paciência. Ocupou a mente com muito estudo para entrar na faculdade, onde cursaria Direito, e continuou envolvida com a arte.

Estudou música com a pianista Lina Pires de Campos, e apesar do inchaço nas mãos, entre os 18 e os 24 anos, tocou piano em concertos sob a regência de Eleazar de Carvalho. Ganhou o concurso de melhor pianista da Rádio Eldorado, realizado desde 1985, quando o primeiro ganhador foi João Carlos Martins.

Aos 25 anos, Clotilde casou-se com Armando Otranto, seu marido até hoje. E abandonou o piano, pois os dedos estavam com os movimentos cada vez mais limitados. No mesmo período, enfrentou altas doses de cortisona e penicilina. “Enquanto lutava contra a dor, armazenava energia.” Parecia estar à espera de uma reviravolta, que ocorreria dali a 15 anos.

O comportamento de Clotilde lembra o de George Balanchine (1904-83), coreógrafo fundador do New York City Ballet (NYCB), onde ela é maestrina desde 2008. Quando se viram em um beco sem saída, ambos esperaram um sinal do destino.

Balanchine nasceu em São Petersburgo, na Rússia. Entrou por acaso na escola imperial de balé do Mariinsky Theatre porque, assim, teria teto e alimentação garantidos. Adolescente, revelou grande talento para coreografia. Conciliou dança com aulas de música. Aos 20 anos, com a saúde fragilizada pela privação econômica e a criatividade oprimida pelas normas da escola, fugiu da Rússia bolchevique. Depois de apresentações em Londres, ele se estabeleceu em Paris. Sem perspectivas materiais ou artísticas, isolou-se em um pequeno apartamento, como se um chamado externo fosse resolver o seu marasmo. Por telefone, certo dia, Balanchine recebeu um convite para atuar na Ballets Russes, companhia itinerante de Sergei Diaghilev. Os ajudantes de Diaghilev haviam rastreado o paradeiro dele.

Robert Gottlieb afirma, em George Balanchine: The Ballet Maker (algo como “George Balanchine: o criador do balé”), que o coreógrafo era tão paciente quanto prático. A espera por um trabalho repentino na Europa, para onde foi sem garantia, e os projetos nos EUA que teve de adiar por mais de uma década revelam essa atitude, segundo Gottlieb, ex-editor chefe da The New Yorker e ex-membro da administração do NYCB.

O empresário norte-americano Lincoln Kirstein convidou Balanchine para criar uma companhia de balé nos anos 1930. Ele veio para a América e fundou uma escola. Mas a falta de público e de bailarinos treinados sob a sua técnica retardou por 15 anos a criação de uma companhia estável. O balé perdeu a prioridade. Nesse intervalo, trabalhou para musicais da Broadway e filmes de Hollywood, transformados em seu sustento. E lidou, muitas vezes de molho na cama, com os problemas frequentes de saúde.

O NYCB se estabeleceu como o espaço da novidade, em oposição ao American Ballet Theatre, considerado conservador. Balanchine ampliou a linguagem clássica, ao aprofundar elementos básicos do vocabulário da dança. O seu estilo destacava-se por moldar os passos dos bailarinos de acordo com o tempo musical. Segundo a coreógrafa Martha Graham: “A música passa por ele e, do mesmo jeito natural e maravilhoso que o prisma refrata luz, ele irradia som em forma de dança”.

Na Europa, Balanchine conheceu Igor Stravinsky (1882-1971), compositor russo cujo trabalho reverenciou. A parceria mudou o rumo do balé. “Ele sempre disse que a música vem primeiro”, diz Clotilde. “Por isso é bom ser regente do New York City Ballet.” Na temporada exaustiva de ensaios, que duram mais de 12 horas, Clotilde troca a batuta pelo metrônomo, aparelho que marca o compasso da música. “A regência de uma orquestra de balé depende totalmente da manipulação do tempo.”

Cada elenco de bailarinos impõe um ritmo diferente. Ela é obrigada a captar essa percepção musical e depois, com a batuta, transmiti-la para 65 instrumentistas. “O maestro exerce um papel de permanente negociação”, diz. “Ao mesmo tempo que absorve os conflitos entre coreógrafo e compositor, tem de fazer a orquestra tocar para ele.”

Ao contrário de décadas atrás, os médicos hoje recomendam à Clotilde uma rotina intensa de exercícios físicos. Às seis da manhã ela está em pé para a aula de natação. O avanço da medicina permitiu que ela planejasse a mudança para os EUA. Aos 39 anos, sem dominar o inglês, decidiu ser maestrina, porque era a melhor forma de unir duas paixões: a linguagem corporal e a musical.
Estudou regência na University of Michigan, Arizona State University e Yale University. “Os outros alunos tinham no máximo 30 anos, mas nunca fui discriminada por ser mais velha.” Em Yale, recebeu um conselho do pianista André Previn. “Ele disse que, sendo mulher em um ambiente dominado por homens, iriam exigir muito mais da minha performance.” Ela confirmou a previsão: “Era como se apertassem um parafuso dentro de mim, provocando-me para ver o que eu sabia”.
Depois de trabalhar com os maestros Seiji Ozawa e Leonard Bernstein, Clotilde se tornou regente convidada da orquestra de Phoenix. Viajou pela Europa. Em 1999, mudou-se para a Flórida, onde comandou a Naples Philharmonic Orchestra. Ex-bailarino do NYCB, Edward Villella lhe propôs a direção da orquestra do Miami City Ballet. O caminho para Nova York se encurtou.

Na temporada de outono, que termina em 22 de outubro, Clotilde rege Ocean’s Kingdom – balé escrito e musicado por Paul McCartney – O Lago dos Cisnes e West Side Story. Por conta do sucesso de Cisne Negro, filme de Darren Aronofsky, o balé de Tchaikovsky teve seis apresentações seguidas em setembro. “Mas a regra no NYCB é trocar de repertório a cada noite, o que estimula mais o regente.”

Fora da fase de ensaios, Clotilde aproveita a efervescência cultural de Nova York. Planeja comprar ingressos para as peças War Horse e The Book of Mormon. “O contato com obras de arte ajuda a polir a nossa personalidade.” Não fosse o respeito pela criação artística, Clotilde teria rejeitado de vez o balé. Passados 35 anos de espera, “voltou, de uma maneira diferente, a minha grande fonte de prazer”.


Comentários

4 respostas para “À maestrina com paixão”

  1. Deus sabe o motivo de tudo, e tudo que ocorre ele permite, pois ele nos conhece melhor do que pensamos, melhor do que nós é conhece o futuro oq há de vir, mas ele nos ama e quer ver nos bem com ele é em paz, paz e certeza de salvação, apesar de tudo.
    Olá, Jesus te ama, Ele morreu por vc, estamos vivendo o princípio das dores, independentemente de quem vc é ou do q vc fez, Ele te ama e quer mudar sua, fazer valer a pena, se vc o aceitar e abrir seu coração com sinceridade não vai se arrepender, Ele pode fazer tudo por vc se vc crer e quer te dar a vida, Ele quer uma chance sincera, não o ignore nem só digite amém mas o aceite e o siga. Abraço.

  2. Avatar de SILVIA DANIELA PINTO MACEDO
    SILVIA DANIELA PINTO MACEDO

    Parabéns pela luta, por não desisitir, por ir atrás de seu sonho, por ser a grande profissional que és. Me orgulho muito das mulheres que quebram barreiras e ocupam seu mais que merecido lugar no mundo!

  3. Avatar de Maria helena Vieira
    Maria helena Vieira

    Esta superação é uma grande prova de amor à VIDA.

  4. Avatar de marcia rizzini
    marcia rizzini

    Eu e minha familia tivemos o privilégio de morar na cidade de Ann Arbor, Michigan, na mesma época em que Clotilde e Armando Otranto. Foi uma convivência muito rica e intensa. Muitos bons momentos. Seria um grande privilégio conseguirmos o contato eletrônico deles!
    Ricardo, marcia, Emmanuel e nana rizzini

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