O que o refrão marcante de ‘Festa’, de Ivete Sangalo, poderia ter em comum com os arranjos de ‘Anunciação’, música instrumental executada por uma orquestra de sopros e percussão que funde ritmos afros com os fundamentos do jazz? Além de terem sido concebidas na Bahia, a maior semelhança entre as duas pode ser resumida em um nome: Letieres Leite. Reconhecido como uma das grandes personalidades musicais brasileiras em atividade, o caminho que o maestro, arranjador e compositor baiano percorreu é tão extenso quanto a sua obra.
Nascido em 1959, em Salvador, Letieres dos Santos Leite conheceu a música de perto ainda criança. Aos 12 anos, entrou para uma orquestra da musicóloga Emília Biancardi, com quem aprendeu os primeiros fundamentos de ritmo e percussão. Mais tarde, mesmo com a formação em artes plásticas pela Universidade Federal da Bahia, Letieres queria se dedicar à música. Depois de encarar a frustração de ser reprovado no teste para entrar no curso de flauta da UFBA, o instrumentista autodidata se deu conta de que precisaria buscar novos ares.
“Eu era músico profissional havia um ano, mas queria estudar. Fui para o Rio de Janeiro e continuei descendo até chegar em Alegrete, no Rio Grande do Sul”. Bem relacionado com as bandas locais, partiu de novo quando percebeu que a música ali não lhe proporcionaria muito mais. “No inverno quase não fazíamos shows, eu trabalhava nas plantações de arroz e tocava flauta pela lavoura com os gaúchos”, lembra.
Pouco antes de se mudar do Brasil, Letieres viveu tempos difíceis em Florianópolis, “dormi mais de uma semana em um viaduto”. Mas, junto com as jam-sessions que começaram a surgir, veio também um convite: participar do grupo Expresso Rural. “Fomos chamados para tocar na Espanha e, quando a banda voltou, eu resolvi ficar por lá”, conta o maestro. “Conheci um pessoal que estava de partida para Viena, peguei carona de trem e fui morar em uma casa com músicos de outros países”. Já bastante habilidoso no saxofone e na flauta transversal, o teste para estudar no conservatório austríaco Franz Schubert não lhe causou quaisquer decepções.
A volta e a Orkestra. Quando voltou a Salvador, mais de dez anos depois de partir, Letieres tinha uma ideia fixa: “A música baiana precisava se desenvolver, porque lá fora as pessoas queriam saber do que se tratava”. Apesar do empenho, o instrumentista formado em Viena percebeu que as coisas seriam mais difíceis do que imaginava. “Não conseguiria sobreviver só com aquilo e resolvi ir atrás da música industrial”, explica, traçando o caminho que o levou a passar uma década na Banda do Bem, da cantora Ivete Sangalo – a ex-vocalista da Banda Eva não foi a única popstar com quem o maestro trabalhou; entre outros, também estiveram com ele Daniela Mercury e Jammil.
“Foi uma escola acompanhar Ivete. Fiz os primeiros arranjos dela, era a oportunidade de entender melhor o processo popular de composição”, ele diz. Paralelamente, Letieres retomava seu projeto instrumental, que culminou na criação da AMBAH – Academia de Música da Bahia, no início dos anos 2000. Apesar de a escola de formação não ter seguido adiante, sobretudo por falta de suporte financeiro, o maestro baiano encontrou outra maneira de concretizar a ideia que trouxera da Europa anos antes: uma orquestra apenas de sopros e percussão, com estruturas rítmicas elaboradas e que mantivessem a origem da música sacra dos terreiros.
Em 2009, três anos após ser fundada, a Orkestra Rumpilezz lançou seu primeiro álbum, conquistando prêmios e expandindo as apresentações para o país inteiro. O nome vem dos atabaques do candomblé – rum, rumpi e lé – acrescidos do sufixo do jazz; já a Orkestra, com “k”, segue o formato original da palavra, que vem do grego. “A Rumpilezz é o cartão de visita de uma ideia, dos conceitos da música afro-brasileira que desenvolvemos”, explica o maestro. Nos bastidores da Orkestra correm projetos paralelos, como a Rumpilezz de Saia, dedicada à educação musical para mulheres, e a Rumpilezzinho, que tem o intuito de ministrar aulas para crianças. “Os cursos têm como base a música local partindo para a universal. Não acredito nas fronteiras, está tudo misturado, jazz, erudito, é simplesmente música”.
Além das influências musicais assumidas (Hermeto Pascoal, Paulo Moura, John Coltrane), Letieres Leite tem uma concepção subjetiva sobre os caminhos que costuma seguir: “A música é metafísica, vai além do que aparenta, tem o poder de conectar as pessoas à natureza plena das coisas. Os paradigmas e as formas nos aprisionam, e poder fazer compor sem me preocupar com tamanho ou fórmulas me dá um sopro de vitalidade”.
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