“Quero declarar a V. Exa. que já tenho reclamado isso até da própria tribuna da Câmara e o faremos, sem dúvida, entre as conclusões desta Comissão perante as Casas do Congresso, exigindo que esse fundo (partidário) seja realmente aprovado porque nos parece que com ele nós eliminaremos definitivamente a influência do poder econômico nas eleições e daremos aos partidos essa autonomia econômica que eles também precisam para poder realizar pleitos livres, capazes de corresponder à verdade popular.”
Enganam-se os que pensam que esta é a fala de um deputado que, no cumprimento do mandato, discursa, em 2016, da tribuna do Congresso. O trecho acima faz parte do depoimento, até então inédito, feito pelo então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, nos dias 22 e 23 de agosto de 1963, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) constituída pelo Congresso Federal e instaurada para apurar a origem dos recursos do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e suas atividades políticas. A legislação em vigor proibia a ingerência internacional e o aporte de dinheiro estrangeiro nas campanhas eleitorais. Com cerca de 500 documentos na mala, e sua conhecida verve na defesa dos interesses nacionais, o então governador rumou para Brasília. Lá, provou que a campanha de 1962 foi movida a dólar americano, despejado nas contas de candidatos reacionários e conservadores, para livrar o Brasil da “ameaça vermelha”, a imagem do perigo comunista disseminada para a opinião pública, pela forte estrutura montada dentro do conglomerado formado pelo Ibad e pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês).
Agora, depois de 53 ano fora do alcance de qualquer consulta, proibidos até mesmo aos deputados, os 17 volumes que formam o processo que compôs as apurações da CPI serão disponibilizados ao público, no portal da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara – CEMVDHC (http://www.acervocepe.com.br/comissao-verdade.html). Além disso, toda essa documentação foi detidamente analisada por estudiosos e acadêmicos, membros daquela Comissão, e será publicada sob a forma de revista, que dará conta do conteúdo numa linguagem acessível, já contextualizada à luz da Justiça de Transição. A edição revela o depoimento de Arraes à CPI do Ibad, na íntegra. É também uma forma de homenageá-lo no ano do seu centenário de nascimento.
A revista, além de comprovar definitivamente a compra, pelos Estados Unidos, de políticos que comungassem com as ideias de que o Brasil, “florão da América”, corria o risco de tornar-se, tal como Cuba, uma república socialista, ainda tem o mérito de dar voz a um importante personagem da nossa história recente: Rubens Paiva. Na documentação, ele aparece, nos diálogos com Arraes, como um sujeito cortês, combativo e determinado. Os dois personagens voltariam a aparecer lado a lado anos mais tarde, nas publicações que trataram do período, quando já era anexado ao nome de Arraes o aposto de ex-exilado e de Rubens Paiva o de “desaparecido político”.
O então governador Arraes, já no início de sua exposição, define-se como “democrata”, como “nacionalista”, e afirma ter sido, “por isso mesmo, uma das maiores vítimas do Instituto Brasileiro de Ação Democrática neste país, pela vultosa soma de recursos que levou para o pleito de Pernambuco”. O verdadeiro derrame de recursos não foi destinado apenas à disputa em que se elegeu governador, mas, também, às eleições municipais que se travavam no Estado e das quais, segundo Arraes previa, “apesar do dinheiro, sairemos vitoriosos com o voto do povo pernambucano”. Previsão que se cumpriu, para desespero dos ultradireitistas, que desde o primeiro minuto passaram a monitorar e a bombardear o seu governo.
Como vimos no trecho de abertura, Arraes defendeu, ainda, a não interferência do poder econômico nas eleições, para que os pleitos fossem livres. E, antes de tudo, o voto dos analfabetos, “maioria da nação” (à época), que constituíam, em sua opinião, junto com os semialfabetizados, os que exercem “maior pressão social na nossa terra” e “aqueles que clamam pelas reformas (…), aqueles que pedem as modificações indispensáveis à vida do país”.
Argumentou que as necessidades dessa camada da população tornaram-na vulnerável e imediatista, tal qual “o poder de um pão diante de um faminto”. E apontou, já naquele tempo, a exploração dessas carências pela troca de votos. Nas eleições municipais do Recife (1963) houve distribuição de cobertores e utensílios domésticos para essa população marginal. Por isso, ele, na condição de depoente, pedia à CPI do Ibad para apurar tais irregularidades.
Foi, sobretudo, a partir da campanha eleitoral de 1962, que se viram multiplicadas as ações de entidades como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o Ipês, dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva, e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, o Ibad, na orientação e custeio de candidatos tidos como confiáveis ou aliados. Os institutos eram mantidos com financiamento dos Estados Unidos e de empresas e pessoas físicas brasileiras e estrangeiras. Montou-se um quadro social constituído por 125 indivíduos e 95 empresas. Dessas últimas, cinco (Listas Telefônicas Brasileiras, Light, Cruzeiro do Sul, Refinaria União e Icomi – Indústria e Comércio de Minérios) arcavam com mais de 70% das contribuições, como registrei no meu livro Propaganda e Cinema a
Serviço do Golpe, publicado em 2001 pela editora Mauad. Esse núcleo civil esteve também articulado a grupos de extrema-direita, organizados em movimentos anticomunistas, que praticaram muitos atos de terror e de intimidação, particularmente junto ao movimento estudantil, então bastante influente.
Quando a CPI foi instalada, reinava no País o clima de liberdade próprio de governos eleitos pelo povo, como o de João Goulart
Os trabalhos da CPI sobre o Ibad comprovam que se realizou uma ampla campanha ideológica, em que foram mobilizados vastos recursos financeiros e tecnológicos para que se difundisse a ideia de uma “ameaça comunista” iminente. A importância de Pernambuco nessa campanha é também demonstrada pela concentração desses meios no combate à candidatura do prefeito da capital, Arraes, ao governo do Estado e aos ataques contra ele efetivados. Nas panfletagens, para associar Arraes ao comunismo, espalhavam imagens de Cristo com uma coroa de foice e martelo. Fatos como esses vêm também explicar o papel protagonista que o depoimento de Arraes, já governador, desempenhou durante aquela investigação feita pela Câmara dos Deputados.
“A instalação em abril de 1963 de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados, destinada a apurar a origem dos haveres e a atuação política das instituições conhecidas pelas siglas Ipês/Ibad, repercutindo denúncias feitas em quase todos os Estados, deu lugar, na história da República, à primeira tentativa consequente de enfrentamento do problema”, destaca o ex-deputado Fernando de Vasconcelos Coelho, coordenador-geral da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara.
Para ele, a decisão de publicar as peças mais importantes dos 17 volumes que resultaram daquele processo advém da convicção do quanto esses documentos “continuam atuais, inclusive nas providências sugeridas que, se adotadas, constituiriam, ainda hoje, passo importante para o saneamento do processo eleitoral”. Além disso, Coelho aponta o aspecto de tributo que a publicação renderá ao ex-governador.
Ao ser instalada, ainda reinava no País o clima de liberdade, próprio dos governos democráticos, eleitos pelo voto, como o do presidente de então, João Goulart. A chamada CPI do Ibad ouviu centenas de depoimentos e analisou milhares de documentos, inclusive extratos de contas movimentadas em bancos estrangeiros, no Brasil e no exterior.
Apesar ou, certamente, em função da importância desses depoimentos, da repercussão que tiveram à época e da força da prova reunida no curso dos trabalhos, a CPI não chegou ao fim. Com a apreciação, pelo plenário da Câmara dos Deputados, do parecer do relator, deputado Pedro Aleixo, e do Projeto de Resolução por ele encaminhado (PR 35/63), a CPI foi atropelada pelo golpe de Estado de 1° de abril de 1964. Os mandatos dos deputados que mais se destacaram nas investigações da CPI foram cassados logo na primeira lista, publicada com base em Ato Institucional.
Depostos, seguiram para o exílio. Foi o caso do presidente João Goulart, do governador Arraes e do deputado Rubens Paiva, que em 20 de janeiro de 1971 morreu assassinado pela ditadura no interior do DOI-Codi, no Rio de Janeiro.
O coordenador-geral da Comissão Dom Helder Câmara, Fernando de Vasconcelos Coelho, escreve sobre a dificuldade em conseguir cópia da documentação produzida pela CPI na publicação preparada pela CEMVDHC, que receberá o título O Governo Arraes: “Por haver comprovado fatos e práticas que comprometiam, entre outros, políticos situacionistas de expressão, apesar de sujeita regimentalmente à apreciação pelo plenário, em 30 de novembro de 1969, a proposição foi simplesmente arquivada pela Mesa da Câmara dos Deputados, trancados os autos a sete chaves no gabinete da Presidência e impedida a sua consulta até mesmo aos parlamentares. Consoante fui informado e pude constatar pessoalmente, ao assumir em 1975 o mandato de deputado federal por Pernambuco e ter indeferido o requerimento formalizado com aquele objetivo. À semelhança do que ocorreu também com o deputado Genival Tourinho, de Minas Gerais, ao pleitear o desarquivamento da proposição”.
Assim que a CPI do Ibad foi derrubada pelo golpe de 1964, seus documentos foram trancados no gabinete da presidência da Câmara
De posse, somente agora, de cópia dos 17 volumes dos autos – obtidos com o empenho dos deputados Pedro Eugênio e Luiza Erundina –, a CEMVDHC decidiu publicar as peças mais importantes da investigação, a exemplo do depoimento do governador Miguel Arraes de Alencar. O parecer do relator, deputado Pedro Aleixo – mais tarde vice-presidente da República no governo do general Costa e Silva e, pela sua independência, demonstrada inclusive no episódio da edição do AI-5, impedido de assumir a Presidência na vacância do cargo –, consta deste caderno, resumido e comentado. Produzidos há mais de 50 anos, esses documentos, agora pela primeira vez publicados num conjunto, continuam atuais, inclusive propondo providências que, se adotadas, constituirão ainda passo importante para o saneamento do processo eleitoral.
Com a publicação deste caderno quer a CEMVDHC, também, associar-se ao povo pernambucano nas solenidades que assinalam o transcurso do centenário de nascimento do governador Miguel Arraes de Alencar – um dos principais responsáveis pelo êxito da investigação sobre o Ibad e homem público que, mesmo deposto, preso e exilado em 1964, voltou a ser duas vezes novamente governador de Pernambuco, marcando o seu tempo, de forma indelével, pela defesa intransigente dos direitos humanos e dos interesses nacionais.”
De novo, é preciso lembrar que a fala trancrita logo abaixo, embora caia como uma luva nos dias de hoje, é de autoria de Miguel Arraes e foi proferida em seu depoimento à CPI do Ibad, uma verdadeira peça de indignação cívica. E, se ela nos parece muito atual, é para demonstrar que o passado, se não bem compreendido e esmiuçado, tal como na letra da canção de Fagner, “volta a incomodar”.
“Dinheiro em larga escala; veículos do último tipo, equipados com alto-falantes; contratos fabulosos com jornais, estações de TV e emissoras de rádio; ofertas generosas em dinheiro e vasto material de propaganda a quantos candidatos à deputação federal ou estadual formassem ao seu lado, tudo foi utilizado com prodigiosa liberalidade. Nada se poupou. Não se poupou sequer o padre Vanderlei Simões, meu atual secretário da Agricultura. Panfletos mentirosos, acusando-o de desobedecer ao arcebispo, foram espalhados à larga.
Depois do pleito, conseguimos reunir alguma documentação esparsa, fragmentária, da ação do Ibad em Pernambuco. Tudo isso forma um compacto dossiê, reunido em dois volumes, que ora vos trago para que o examineis, confrontando com o que já conseguistes. O superintendente, em Pernambuco, do Instituto Brasileiro de Ação Democrática era o sr. Frutuoso Osório Filho, que lá permaneceu durante toda a campanha. Com procuração ampla, para atuar em Pernambuco, dos srs. Ivan Hasslocher, Carlos Lavínio Reis e Barthelmy Beer, diretores da S.A. Incrementadora de Vendas Promotion, com sede na rua Marechal Câmara, 271, 8º andar, grupo 801, o sr. Frutuoso Osório Filho movimentou, em Pernambuco, entre 30 de maio de 62 a 1º de outubro do mesmo ano, nada menos de Cr$ 308.057.100 e possivelmente mais Cr$ 107.000.000, de que temos algumas referências. O coordenador-geral da Promotion em Pernambuco, coronel reformado Astrogildo Correia, movimentou, só no Banco Mineiro da Produção, exatamente Cr$ 63.353.247,60. Canhoto de 46 cheques encontram-se na documentação reunida. Uma figura secundária, como o sr. Adeildo Coutinho Beltrão, movimentou, só no Banco Mineiro da Produção,
Cr$ 26.720.000. O sr. Adeildo informou que também movimentou recursos financeiros de vulto no Banco Nacional do Norte. Estas são algumas das figuras que controlavam os recursos financeiros do Ibad, da Promotion e da Ação Democrática Popular (Adep) em Pernambuco. A Adep, subsidiária do Ibad, deu ajuda financeira e cobertura publicitária através da imprensa, rádio e TV, e ainda por meio de faixas e cartazes, a sete candidatos a deputado federal e a trinta e um candidatos a deputado estadual.”
As denúncias de Arraes, juntamente com a consistência dos documentos, deram vulto nacional aos trabalhos da comissão, atraindo a atenção da opinião pública. Não seria exagero dizer que o estrago produzido pela CPI acelerou a conspiração para a derrubada de Jango.
O governador de Pernambuco disse, já em 1963, que as eleições estavam cada vez mais caras porque a corrupção e o suborno não tinham limites
Em Pernambuco, elegeram-se para a Assembleia Legislativa, com ajuda do IBAD, 14 deputados estaduais: Antônio Correia, Felipe Coelho, Suetone Alencar, Olímpio Ferraz, Francisco Sampaio Filho, Antônio Luís Filho, Draiton Nejaim, Olímpio Mendonça, Antônio Barreto Sampaio, Elias Libânio, Adauto José de Melo, Antônio Farias, Audomar Ferraz e Constâncio Maranhão. Não se elegeram, apesar da ajuda do Ibad, os candidatos Aderval Torres, Agripino Almeida, Luís Oliveira, Álvaro Costa Lima, Clodomir Moreira, Arnaldo P. Oliveira, José Emídio Lima, Justino Alves Bezerra, Clóvis Correia, Antônio Pinto Ramalho, Francisco de Assis Barros, Jurandir Barros, Dídimo Guerra, Constâncio Maranhão e Francisco Falcão.
Para se ter ideia da abrangência de recursos que o Ibad ostentava, basta lembrar que Lael Sampaio, irmão do governador Cid Sampaio, recebeu, de uma só vez, através do cheque nº 78.43.93, contra o Banco Mineiro da Produção, a importância de Cr$ 5 milhões. Cheque emitido a 30 de julho de 1962. Já João Cleofas, candidato que disputou a eleição ao governo com Arraes, sacou pessoalmente do Ibad Cr$ 2 milhões. Cheque ref. 35, série XXVIII, nº 64.74.02. Emitido a 4 de setembro de 1962. As verbas utilizadas na imprensa, no rádio e na TV foram amplas. Para fazer o jogo de Cleofas, Rui Cabral, produtor do programa semanal Cadeira de Engraxate, na TV Canal 2 (Rádio Jornal do Comércio), recebeu do Ibad Cr$ 1 milhão. Na documentação apreendida, o seu programa, ao lado de outros três, figura com a classificação de “negociável”. O produtor de TV Fernando Castelão (Você Faz o Show), do Canal 2, recebeu do Ibad Cr$ 200 mil somente para declarar que ia votar em Cleofas.
Importante frisar que o mesmo expediente foi usado país afora, nos demais estados. O desenrolar dos fatos levou o País ao golpe em 1º de abril de 1964 e até 1989 o povo manteve-se longe das urnas para a eleição majoritária. Mas, tão logo a prática de campanhas eleitorais foi retomada, o modelo implantado pelo conglomerado Ipês/Ibad foi praticado com cinismo e liberalidade. Ao observar o trecho do depoimento de Arraes, a seguir, algo muito familiar salta aos nossos olhos:
“Ora, o preço de uma eleição é cada dia mais caro no Brasil, precisamente porque o preço da corrupção e do suborno não tem limites. Essa estranha teoria da legitimidade da influência do poder econômico no processo político, especialmente no processo eleitoral – estribada na qual muitos políticos e homens públicos estão confessando haver recebido dinheiro do IBAD –, essa estranha teoria é uma prova de que, em matéria de corrupção, de suborno, de traição aos legítimos interesses do povo brasileiro, já atingimos o limite extremo do cinismo, da desfaçatez, incompatível com a dignidade de todo aquele que recebe um mandato popular.
Os forjadores dessa teoria, a quem a corrupção deixou sem brios, sem sensibilidade moral, já não podem nem mesmo perceber que, se os grupos econômicos financiam e compram candidatos, é para deles exigir, uma vez eleitos, privilégios e favores vergonhosos, favores e privilégios que lhes devolvem, com lucros fabulosos e quase inacreditáveis, o dinheiro empregado nas campanhas eleitorais. E fingem esquecer que é em consequência dessas negociatas que nosso povo a cada dia paga mais caro o pão com que se alimenta, a casa em que mora. A roupa que veste”.
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