Companheiro de birita de Raul Seixas, o zelador Antônio Soares de Souza, 51, estava em casa, deitado na cama, relaxando depois do expediente durante a madrugada, quando ouviu, pelo rádio, a notícia: o cantor e compositor estava morto. Antônio levou um susto. Foi ele a última pessoa a conversar com o artista, na portaria do prédio Aliança, na Rua Frei Caneca, 1.100, na região central de São Paulo, onde trabalha até hoje. Raul tinha chegado bêbado, cena comum no edifício onde morava nos últimos anos. Antônio o ajudou a entrar no elevador, apertou o 10o andar e avisou: “No apartamento, você terá de dar um jeito de entrar sozinho, não posso deixar a portaria sem ninguém”.
O autor de Ouro de Tolo subiu, abriu a porta do apartamento 1.003, colocou o pijama e deitou-se na cama. Então, a morte chegou. Na manhã do dia 21 de agosto de 1989, seu corpo foi encontrado sobre a cama por volta das 8 horas da manhã. Vítima de parada cardíaca, tinha 44 anos. Era alcoólatra e abusou do uso de drogas ao longo da vida e sofria de pancreatite (inflamação do pâncreas). A notícia de sua morte logo se espalhou pela cidade e fãs ensandecidos ocuparam a portaria do prédio. Ameaçaram invadir o imóvel, e a polícia precisou ser chamada.
Antônio correu para o local e ajudou a controlar o tumulto e, desde aquele dia, vive a missão de narrar as últimas horas de Raul Seixas, idolatrado até hoje. Ele não gosta muito da tarefa, e despista: “Aqui não tem mais ninguém que conheceu o Raul”.
Tem sim. Além de funcionário do prédio, Antônio frequentava o mesmo bar que Raul gostava, pertinho do prédio, e gastava horas de seus dias de folga bebendo ao lado do cantor. Enquanto Raul bebia uísque, vodca, conhaque, ele ficava na cerveja. Hoje, não coloca mais nenhuma gota de álcool na boca.
Antônio também viveu noitadas ao lado de Raul em um apartamento no 4o andar do Aliança, onde morava um casal amigo dos dois. Ali, o artista pegava o violão e cantava seus clássicos, imitava Elvis Presley e todos amanheciam na cantoria.
Mesmo tímido e meio a contragosto, Antônio ajuda a preservar a memória dos últimos dias do criador de Sociedade Alternativa. Na Frei Caneca em que Raul deu seus últimos passos, não há nada oficial para lembrá-lo. O bar que frequentava, o Canativa, trocou três vezes de dono, foi reformado e vai fazer parte de uma rede de lanchonetes. Ninguém se preocupou em preservar uma letra de música escrita por Raul em uma das paredes. A cadeira em que ele se sentava também não está mais lá. O Aliança mudou pouco, mas também não ganhou nenhuma placa sobre seu morador ilustre. Mesmo assim, toda semana fãs e curiosos param para fotografar a fachada. Raul chegava em casa por volta da meia noite, quieto. Cumprimentava os funcionários e subia para seu quarto e sala. Até nos dias de bebedeira, era discreto. Naquele 1989, vivia sua fase mais introspectiva e depressiva.
Acervo raro
Criador do Raul Rock Club, Sylvio Passos, 51, é um dos principais guardiões de relíquias do artista. Sozinho, preserva documentos, figurinos, anotações, gravações de shows, cartas para namoradas e até um velho tênis. Entre as raridades, o colete bordado, comprado em Nova York e usado por Raul na gravação do clipe de Gita, clássico do álbum que completou 40 anos neste ano. E também os passaportes do artista, além do pijama que usava quando morreu.
Sylvio sabe que o acervo merece fazer parte de um memorial aberto ao público. Mas diz não ter conseguido apoio oficial até hoje. Há alguns anos, foi procurado pelo governo da Bahia, mas desconfiou que poderia ficar sem o seu tesouro. As peças de Raul saem pouco da casa do fã e foram entregues a ele pelo próprio cantor e pela família dele.
Na adolescência, após ouvir Metamorfose Ambulante, Sylvio entregou-se de corpo e alma ao raulseixismo. Largou tudo para seguir o ídolo. Foram oito anos de norte a sul do País em viagens, shows e noitadas. Era tratado como mascote e chegou a ouvir conselhos paternais do maluco beleza: “Sylvícola, você precisa ganhar dinheiro. Não pode fazer as coisas de graça”.
Acompanhou a transformação do cantor, que passou a ser um homem mais agressivo do que no início da carreira e, depois, depressivo. Viu Raul destruir um aparelho de TV aos chutes, após ouvir notícia sobre uma possível catástrofe mundial.
Sylvio nunca perdeu o contato com o ídolo, mas ficou mais distante dele após passar por uma crise psiquiátrica, ser internado e se casar pela primeira vez. Mesmo assim, conversava com Raul ao menos uma vez por semana. Os dois se falaram um dia antes da morte, por telefone. “Na última visita na casa dele, Raul e eu assistimos em silêncio a uma fita do Elvis Presley. Não trocamos uma palavra. Quando fui embora, ele me acompanhou até a porta e disse: ‘Foi a nossa melhor conversa’.”
Sylvio se lembra do artista entristecido por causa da falta de dentes e do corpo inchado. Ele também tinha dificuldade para caminhar. Nessa mesma época, na fase da decadência de Raul, o zelador Antônio lembra que o artista ficava incomodado no bar quando alguém fazia perguntas sobre sua carreira. Calado, pedia a conta, pagava e ia embora. “Nesta época do ano, sempre penso nele”, diz Antônio. Uma cena marcante: o corpo de Raul sendo retirado às pressas pela garagem do prédio, depois de os fãs enlouquecidos serem despistados.
O bar
Baiano como Raul, Luiz Carlos da Conceição Moraes, o Kaká, 41, está em plena fase de adaptação. Os investimentos imobiliários na região do Baixo Augusta, onde tem um bar, provocaram a demolição do antigo Pops, conhecido como “Bar do Raul”. Ele, que considera o artista um “grande profeta”, atravessou a rua para abrir um novo estabelecimento com uma estátua de Raul nos braços. “Foi a última coisa que tirei do prédio.” Trata-se de uma réplica de Raul com a mesma pose da capa de Gita. Depois de comprar 50 números, Kaká a arrematou em uma rifa.
Não deu para salvar as pinturas feitas no porão do antigo bar. Não sobrou nada. Elas mostravam cenas cantadas por Raul, como um disco voador e um trem. No novo endereço, na mesma Rua Augusta, 479, a estátua já encontrou seu lugar, mas Kaká, instalado ali há três meses, ainda não teve tempo de decorar as paredes do jeito que gostaria. Dia desses, um fã entrou no bar e ficou aliviado ao perceber que o reduto dos adoradores do artistaerdeu a sede original, mas não vai morrer.
Kaká é admirador de Raul desde os 15 anos, quando ouviu pela primeira vez Cowboy Fora da Lei, a caminho da escola. Chegou a São Paulo em 1989, justamente no ano em que Raul morreu, mas teve tempo de assistir a um show, parte da série de apresentações que o cantor fez ao lado de Marcelo Nova. “Ele mal conseguia segurar o violão. Todo mundo gritava: ‘Raul, Raul’. Senti uma coisa esquisita, sabia que era a última vez.”
A cada ano, Kaká descobre novos significados nas canções. “Raul tinha o poder de prever algumas coisas”, exagera. As tais profecias estão nas camisetas que ele manda confeccionar e leva para amigos da Bahia. Também fornece as peças aos frequentadores das passeatas anuais realizadas em São Paulo, sempre no dia da morte de Raul, do Teatro Municipal até a Praça da Sé, de forma espontânea, sem organização oficial.
Em seu bar, os raulseixistas se reúnem para comemorar os aniversários do ídolo, beber, chorar a morte e cantar. Ali, o famoso grito “Toca Raul” inclui o lado B, com canções que não viraram clássicos, mas muita gente adora. “Ele morreu há 25 anos, mas é o cara mais atual da música brasileira”, acredita Kaká. “O Toca Raul não é só no Brasil, não. É no mundo inteiro.”
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