Na subida para o Monte Entoto, que soma 3,2 mil metros de altura e permite vislumbrar Adis Abeba, a capital da Etiópia, a agricultora Hiwate Maragwe trabalha três vezes por semana. Debaixo de uma barraca rústica, ela expõe os tubérculos, legumes e temperos que produz. O filho Tamarte, 5 anos, que Hiwate cria sozinha desde que enviuvou em fevereiro passado, corre para todos os lados enquanto a mãe ganha a vida. Do lado de fora da barraca, no acostamento sem pavimentação da estrada, ela costuma embalar carvão em pequenos sacos plásticos azuis. Hiwate obtém o carvão da queima do eucalipto, farto na região desde 1903, quando o rei Menelik II mandou trazer milhares de mudas da Austrália. A fartura à mesa, por sua vez, é exclusividade das camadas mais abonadas da população. A pequena quantidade de carvão adquirida para cozinhar pelos fregueses de Hiwate reflete a modesta porção de comida que eles têm para levar ao fogo. “Compram pouco, mas poucas pessoas produzem. Sempre vendo alguma coisa”, diz Hiwate com um sorriso no rosto. “Aqui é bom.”
Comparado com outras regiões do continente africano, o Entoto tem grandes vantagens, como solo fértil e clima ameno. Fica a apenas 10 km do centro de Adis Abeba, a capital da Etiópia, onde líderes políticos e comunitários se reuniram para a conferência internacional “Rumo ao Renascimento Africano: Novas Abordagens Unificadas para Erradicar a Fome na África até 2025”. Com 54 países e 1,1 bilhão de habitantes, o continente registrou um crescimento econômico médio de 5% ao ano na última década. Entre os dez países que mais crescem no mundo, seis são africanos. Ao mesmo tempo, quase um quarto da população vive em insegurança alimentar, como os especialistas chamam a lastimável situação de passar fome. Nesse cenário, o êxito do Brasil ao enfrentar o problema foi a grande atração da conferência, realizada na sede da União Africana, um prédio de 100 m de altura (o maior de Adis Abeba), auditório com 2,5 mil cadeiras, que custou US$ 200 milhões. Um presente da China, em sua disputa pelo promissor mercado africano.
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Com um pesado legado de exploração por colonizadores, guerras, governos corruptos e dependência de doações internacionais, a África tem a fome, a desigualdade social e a Aids como principais desafios nesse começo do século 21. Os dois primeiros temas foram o foco da conferência de Adis Abeba, organizada pela União Africana, pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e pelo Instituto Lula. Para definir novas estratégias de combate à fome, representantes de 54 governos e de 150 organizações não estatais discutiram modelos que deram certo em três países: China, Vietnã e Brasil. Na China, a aposta foi na urbanização do campo. O Vietnã investiu em pesquisa e abriu o mercado aos agricultores, que antes não podiam nem ter a própria terra (leia entrevista do diretor-geral da FAO à página 70).
É na experiência brasileira, a partir do projeto Fome Zero, que a maioria dos líderes africanos enxerga perspectivas de mudança. Etiópia, Malauí, Moçambique, Senegal e Níger já adotam o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) implantado no Brasil, em julho de 2003. Trata-se da iniciativa governamental de comprar a produção da agricultura familiar e destiná-la à rede pública de ensino, para a merenda escolar, e à população em vulnerabilidade social. Nos debates com seus pares em Adis Abeba, o primeiro-ministro do Níger, o touareg Brigi Rafini, demonstrava otimismo quanto à Iniciativa 3N, um programa que começou há dois anos, logo que o atual governo chegou ao poder.
Com 65% do território coberto pelo deserto de Saara e o restante em zona semidesértica, o país de Brigi Rafini ocupa a penúltima posição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2012. A combinação de projetos de irrigação com programas similares aos brasileiros pode alterar o quadro de crise de fome a cada estiagem na região. O ministro Amadou Allahoury Diallo, responsável pelo 3N, conta que em dois anos a área agricultável do Níger aumentou 49%. “No começo, a prioridade era que os agricultores conseguissem produzir a própria comida”, afirma Diallo. “Passamos, então, para um segundo momento. O governo está comprando o que eles produzem a mais, para abastecer as escolas e a população local. A ideia é não combinar mais a seca com a fome.”
Em Angola, onde a presença brasileira é muito forte, as empreiteiras chegaram antes dos programas de inclusão. Em 2002, com a infraestrutura angolana destruída por uma guerra civil de quase 30 anos, empresas brasileiras, a começar pela Odebrecht, passaram a atuar na reconstrução do país. Quatro anos depois, as relações se estreitaram. Foi quando o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) criou linhas de crédito para os projetos de empresas brasileiras em Angola. Como garantia, tinha o petróleo, pois o país é o segundo maior produtor da África, atrás apenas da Nigéria. O ministro da Agricultura, Afonso Pedro Canga, lembra sem saudades dos primeiros tempos do pós-guerra: “Quando a paz foi conquistada, tínhamos mais de quatro milhões de pessoas deslocadas”. O contingente equivalia a 25% da população da época.
Passados dez anos, Angola ainda abriga uma enorme proporção de subnutridos. De acordo com as últimas estatísticas da FAO, 27,4% dos angolanos se encontram nessa situação. Não por acaso, Canga volta sua atenção para o outro lado do Atlântico, ao falar do desafio que tem pela frente. “O Brasil deve servir de referência de que é possível erradicar a fome e considerar os pobres como uma grande oportunidade para a mudança”, diz Canga. “Vale a pena investir para que os pobres e os famintos produzam e sejam consumidores. Em nosso programa de agricultura familiar, trabalhamos com a Embrapa”, completa, referindo-se à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.
A sigla Embrapa, aliás, era sempre citada de forma efusiva na conferência de Adis Abeba. Referência internacional na pesquisa agropecuária, na África a empresa simboliza uma espécie de esperança no futuro. No continente desde 2006, a Embrapa trabalha em 43 projetos de 15 países. São apenas quatro profissionais baseados na África. Ainda assim, fazem a diferença no melhoramento das culturas, até porque dos testes de sementes feitos na sede, em Brasília, saem as respostas adequadas para cada solo. Para o agrônomo Marcio Porto, chefe da Secretaria de Relações Internacionais da empresa, a parceria é boa até para a preservação das espécies: “Os trópicos têm dois terços da biodiversidade. O Brasil e a África estão nessa linha de alta biodiversidade. Têm uma similaridade impressionante. Se uma espécie se extinguir em uma parte, pode ser recuperada na outra.”
Não se sabe como será quando a tecnologia que transformou o cerrado brasileiro em celeiro provocar mudança similar nas savanas africanas. Mas, por enquanto, entre os estrangeiros, só o ex-presidente Lula tem mais cartaz do que a Embrapa na África preocupada em erradicar a fome. Em Adis Abeba, ele era, sem dúvida, o líder mais festejado. Mas não fez pose. Escalado para fazer o discurso de abertura, começou agradecendo o apoio dos países africanos à eleição do diretor-geral da FAO, José Graziano da Silva, e do novo diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo. Nesse e em outros momentos da conferência de dois dias, Lula insistiu em que a erradicação da fome depende de dois fatores: vontade política e investimento em infraestrutura, em particular em energia. Defendeu a implantação de políticas duradouras, mas não criticou as doações de organismos internacionais a populações carentes: “Em muitas situações, elas provêm o único socorro e fazem a diferença entre viver ou morrer”.
O número de missões africanas que já visitaram o Brasil para conhecer de perto os projetos que tiraram milhões da pobreza reflete o interesse de líderes do continente em depender cada vez menos da caridade alheia. Apenas nos últimos 18 meses foram 14 missões, de 12 países: África do Sul, Costa do Marfim, Egito, Guiné Bissau, Malauí, Moçambique, Quênia, Senegal, Serra Leoa, Sudão, Tanzânia e Tunísia. O Egito mandou sua equipe em três ocasiões. Convidada a apresentar os programas brasileiros em Adis Abeba, a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, teve a sensação de que seus interlocutores enxergam o Brasil como um país irmão: “Para eles, o Brasil é uma África que deu certo” .
Diretamente envolvida com os Projetos de Aquisição de Alimentos (PAA) em cinco países, a ministra afirma que quase todo o continente tem interesse em fortalecer a agricultura familiar. “Mas é preciso ter terra agricultável e alguma experiência em agricultura familiar. Nem todos têm”, diz Tereza. “O desenho para cada país precisa ser feito de acordo com sua realidade.” Até a implantação de um programa de transferência de renda encontraria barreiras na África, pela ausência de um cadastro único da população e falta de capilaridade da rede bancária.
Junto com a FAO e o Instituto Lula, a União Africana lidera a iniciativa de apoiar o governo dos 54 países do continente no combate a um flagelo histórico. Pela primeira vez em 50 anos, a organização é presidida por uma mulher, a sul-africana Nkosazana Dlamini-Zuma, ex-ministra do governo Nelson Mandela. Ao final da conferência de Adis Abeba, no dia 1º de julho, Dlamini-Zuma garantiu que o compromisso de erradicar a fome em 12 anos é para valer. “Vou assegurar para que não seja mais um pedaço de papel”, disse, referindo-se às declarações finais da reunião. No encontro, ela cobrou a ampliação do acesso à terra e ao crédito às mulheres, que constituem a maioria dos produtores de alimento da África. São guerreiras como a etíope Hiwate Maragwe, a agricultora que aparece no começo dessa reportagem, vendendo seus produtos à beira da estrada para o Monte Entoto.
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