O desembargador Duarte é homem de hábitos simples. Passa as manhãs de domingo lendo, ao lado de um bolo de fubá e uma térmica de café. É sua manhã de paz. Mas nem sempre. Há alguns meses, seu filho chegou da rua às seis da manhã. Pegou um pedaço do bolo e, sem dizer bom dia, perguntou o que ele achava do Ahmadinejad.

O desembargador, desatento, disse: “É mais um louco que quer brincar de bomba atômica”.
O rapaz logo emendou: “Parece justo que o Irã tenha sua bomba para superar desequilíbrios regionais”.

O desembargador estranhou aquele “desequilíbrios regionais” e esclareceu: “Arma na mão de gente responsável é uma coisa, na mão de louco é outra”.

O rapaz perguntou: “Quem é gente responsável?”. O pai, com o livro já fechado, disse: “Estados Unidos, França, Rússia, China e Reino Unido jamais fariam uma loucura”.

O rapaz retomou: “Considere apenas o pós-guerra e os testes”. O pai, antevendo encrenca, perguntou: “Como assim? Que testes?”.

O filho então recitou: “Esses aí que você chama de responsáveis já explodiram 2.044 bombas atômicas na Terra com uma potência total de 438 megatons, o que equivale a 29.200 bombas de Hiroshima. Em terra, mar e ar”. Com a mão em megafone, o filho imitou técnico de som: “Testando! Testando!”.

Aquilo irritou muito o desembargador, que procurou se acalmar. Afinal, era sua manhã de leitura com bolo.

“Fazendo as contas” – e o rapaz fez – “dá uma bomba atômica a cada nove dias, por 50 anos, e V.Ex.a diz que eles são responsáveis?”

Aquele V.Ex.a pegou nos nervos do desembargador, que conseguiu manter o controle: “À época, sabia-se muito pouco sobre radiação e impactos ambientais. Seus números não estão exagerados?”.

O filho disse: “V.Ex.a me perdoe, não são meus os números. São públicos, exatas 2.044 explosões nucleares”. E por aí seguiu com estatísticas.

O desembargador, abreviando o confronto, perguntou: “Aonde você quer chegar?”. O rapaz foi claro: “Quero que V.Ex.a reconheça que é mal informada e, ademais, alienada”.

Com essa pancada, o desembargador perdeu as estribeiras: “Cai fora daqui, moleque abusado, xiita de merda! Isso é hora de voltar da balada? De me encostar na parede? Não vê que eu estou comendo bolo de fubá?”.

Ousadíssimo, o rapaz ponderou que bolo de fubá e armas nucleares tinham importâncias diferentes para a humanidade. “Ademais”, disse ele, “autocontrole, amor e bom senso são características de uma mente sã. Não vejo isso em V.Ex.a.”

Aí ele passou da conta. O desembargador descompensou e urrou. A pressão foi lá pra cima. A mulher desceu do quarto voando, assustadíssima. Encontrou o marido reclinado no sofá, vermelho ofegante.

O rapaz, então, sorriu e, com voz terna, pediu calma. Esclareceu que estava aprendendo a desestabilizar pessoas. Uma especialidade de grande futuro no mundo dos negócios. Precisava treinar com uma pessoa do porte, competência e equilíbrio do pai, que admirava. Pediu desculpas pelo susto, beijou ambos na testa e foi dormir.

O desembargador ficou atônito, com lágrima nos olhos. Curiosamente feliz.


*Engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP. Dedica-se também à Literatura.


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