Não dá para disfarçar. A impressão causada ao visitar as paneleiras, no bairro de Goiabeiras, em Vitória, no Espírito Santo, aflora como uma intensa sensação de mal-estar e mesmo de indignação social. Impressiona o mundo, ou melhor, o submundo em que trabalham. O acesso ao galpão das ceramistas faz o visitante torcer o nariz, ou correr de vez. Em dias de maré alta, a Rua das Paneleiras fica cercada de um lado por um esgoto a céu aberto, do outro pelas águas do mangue, que invadem o terreno ao lado e encharcam as madeiras que servem de lenha para a queima, também a céu aberto, das panelas de barro.

O galpão no qual estão instaladas e onde modelam e vendem as peças é um muquifo. Tudo rola em torno do desagradável. No interior não há espaço para as paneleiras realizarem suas tarefas, nem para os compradores escolherem as peças. E as goteiras ameaçam estragar as panelas recém-modeladas. Mais? Ao lado, onde fazem a secagem e a queima, a imagem é ainda pior. Lodo e restos de madeira de construção se mesclam com as fogueiras sempre acesas.
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A visão que se oferece é feia, muito feia, infernal. Nesse universo emerge a figura dessas ceramistas, ícone da identidade cultural capixaba e registrada, em 2002, como primeiro patrimônio imaterial de nosso País, no Livro dos Saberes, outorgado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Além disso, reconhecidas também lá fora, as “panelas de barro de Goiabeiras” estão a caminho de receber o exclusivo título internacional de identificação geográfica, como aconteceu com o vinho produzido na região francesa da Champagne.

O trabalho é difícil e desgastante, mas chama a atenção a forma como essas mulheres, movidas a paixão e competência, encaram a luta diária pela vida. Não há desânimo e a autoestima é elevada. Nem sempre foi assim. “Nós tínhamos vergonha de ser paneleiras, isso antes do registro do Iphan, mas agora vimos que somos importantes, e minha atividade me dá orgulho”, diz Eloísa Helena, paneleira desde os 13 anos. A despeito do olhar ausente, Eloísa, 37 anos, morena, solteira, parece tudo ver e saber. Cuida de dois sobrinhos que a irmã lhe deu e é a síntese, o espelho de quase todas as outras ceramistas que se juntam à conversa. Forjadas pelo trabalho de um calor sufocante de mais de 40 graus, elas se apresentam com rosto sombrio e duro, mãos fortes e calejadas e pele escura curtida de sol, de fogo e fumaça, que lhes acrescentam alguns anos. Tudo ali tem a mesma cor: panelas, mangue e mulheres.

No início ressabiadas, logo depois se soltam às confidências. Valdineia Victoria, 46 anos, ceramista desde pequenininha, pergunta com frases benfeitas que denotam boa escolaridade o porquê do interesse da Revista em seu ofício. Ela era técnica de segurança de trabalho. Fez outros cursos, mas o que gosta mesmo de fazer são as panelas de barro. “Não é muito rentável, mas…”, avalia Victoria. A produção, em média, de cada uma das paneleiras é de 20 a 30 peças diárias, o que representa no final do mês algo em torno de R$ 1.200,00. A exceção fica por conta de Evanilda Ferreira, 43 anos, que molda até 50 panelas por dia.

“Quer conhecer a edícula que estou construindo?” – tasca Eloísa. Fomos ver. Ficava ali perto, em uma das ruazinhas onde mora a maioria das paneleiras, até mesmo as que não trabalham no galpão. Porque falta lugar e não há rodízio entre elas – das 118 associadas, somente 40 têm boxes fixos, o que prejudica o comércio das outras ceramistas, que acabam vendendo seus produtos ali mesmo, no quintal de casa. O sobrado de Eloísa é simples, limpo e arejado. Tudo está em ordem, diferente da barafunda de seu local de trabalho. Como quase todas as descendentes das ceramistas, sua sobrinha diz que quer ser paneleira como a tia.

A toada muda quando voltamos ao galpão. A conversa fica mais ácida e elas começam a passar a limpo um rol de reclamações. Estão reivindicando um galpão maior, com boxes para todas as associadas, sanitários, loja de exposição e vendas para seus produtos, além de um estacionamento para os compradores. “Você sabia que mais de três mil denúncias foram encaminhadas à prefeitura sobre a situação de deus-dará em que nos encontramos?”. E o mais grave: elas se sentem sob ameaça, até de uma estrada que irá desalojá-las desse galpão. “Para onde vamos? Eles acham que vamos acreditar que nós ficaremos num local provisório até o término dessa obra e depois retornaremos para esse local?”, dizem em uníssono. “Mesmo com a proteção do Iphan, elas ainda não aceitaram a reforma do galpão, cuja estrutura está comprometida. Quanto à estrada, o perigo existe, mas recebemos dos órgãos oficiais garantia da permanência das paneleiras no local”, afirma Tereza Carolina de Abreu, superintendente do Iphan/ES.

As paneleiras criticam também, com muita ênfase, a construção de uma Estação de Tratamento de Esgotos, exatamente no Vale do Mulembá, onde se encontra a jazida de argila. “Hoje estamos percebendo que a argila já não vem tão boa, está mais dura do que antes da Estação ser concluída”, informa Eloísa. Embora a retirada da argila se localize na montante da Estação de Tratamento, esta vem monitorando a retirada do barro para evitar possível contaminação. Quanto ao endurecimento da matéria-prima, o motivo pode não ter qualquer relação com a Estação. “Isso deve-se à possibilidade da jazida estar com seus dias contados, depois de mais de 500 anos de extração. As ceramistas já devem começar a pensar em um novo barreiro”, alerta Tereza.

A situação atual das paneleiras, porém, não se deve apenas aos políticos que veem, mas fingem não ver, deve-se também a elas próprias. No caminho comum de muitas associações, a das Paneleiras vive em constante atrito, seja por expurgos de diretorias, pela insatisfação das paneleiras que ficaram de fora do galpão, ou pelos constantes debates conflituosos sobre tudo o que envolve seu ofício. O próprio Iphan, cuja ação desencadeou a salvaguarda desse patrimônio brasileiro e valorizou as artesãs propiciando melhoria em sua condição social e econômica, constata a dificuldade de as paneleiras se manterem unidas. “Questionamos o Ministério Público com o objetivo de impedir a obra da Estação de Tratamento de Esgotos, em Mulembá. No entanto, contrariando todas as expectativas, a Associação das Paneleiras, como organização civil, acabou por assinar um termo permitindo a sua construção”, esclarece Tereza. São raras as oportunidades de contato com uma arte autenticamente brasileira, que permanece há séculos no seu fazer e no seu habitat. Mas, se a persistência dessas cenas desagradáveis e seu tempo de duração incomodam demais, isso não é apenas uma contingência. É também fruto de um comportamento há muito enraizado: a exposição da pobreza.

AS PANELAS
De caldeirões rasos, segundo traços históricos descritos desde o início do século XIX pelo naturalista Saint-Hilaire, a panela de barro é o recipiente indissociável das moquecas e tortas capixabas feitas à base de peixes e frutos do mar. A técnica cerâmica utilizada é secular e se caracteriza por modelagem manual, queima a céu aberto e aplicação do tanino, tintura retirada da árvore mangue-vermelho, que dá a cor negra à peça. Os instrumentos para o acabamento são rudimentares: uma pedra de rio para alisar e uma vassourinha de muxinga (planta rasteira nativa), resistente ao calor e ao impacto, utilizada para bater o tanino. Na hora da queima, termômetro não existe. “Eu conheço a hora para tirar quando a panela muda de cor. É sabedoria simples”, ensina a paneleira Eloísa Helena. Todo o processo de fabricação da panela demora três dias. A atividade é predominantemente feminina e o saber transmitido de mães para filhas.


Saiba mais
Associação das Paneleiras de Goiabeiras – (27) 3327-0519


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