O limite não existe. O que existe são as paredes. Mas, para as paredes, existem escadas.” As primeiras palavras proferidas pela atriz Denise Del Vecchio na estréia do espetáculo Mar de Gente, que está circulando pelo Brasil, resumem o trajeto percorrido por Ivaldo Bertazzo e os 30 dançarinos que integram sua companhia de dança, todos eles recrutados na periferia paulistana.

Nascido na Mooca, filho de mãe libanesa e pai italiano, Ivaldo era um garoto tímido de 14 anos, com gestos retraídos e discurso frágil, quando viu uma entrevista da bailarina francesa Renée Gumiel no antigo programa da Rede Record, Bate-Papo com Silveira Sampaio.
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Maravilhado, desembarcou na escola dela escondido dos pais, confiante na possibilidade de encontrar ali a escada que lhe permitiria atravessar as paredes mais altas e vencer a inibição. Uma década depois, tendo enveredado pelos meandros da fisioterapia e inaugurado um promissor intercâmbio cultural com a Índia, Ivaldo abriu a própria escola com o intuito de utilizar a dança cvomo método de reeducação do movimento.

Havia funcionado com ele, funcionaria também com seus alunos. Fotografias da época mostram um jovem magro e barbudo, precocemente calvo, imerso na atmosfera deliciosamente inspiradora e libertária de uma sala de ensaios típica dos anos 70: moças e rapazes de cabelos longos, pés descalços, batas brancas, umbigos de fora e faixas nas cabeças.

A estréia como diretor aconteceu em 1976, no Teatro Galpão. Ivaldo tinha 26 anos quando propôs a seus alunos a montagem de um espetáculo. Convocou os interessados a comparecer à escola no sábado seguinte e foi surpreendido por 80 inscrições. “Quase desmaiei. Não imaginava que a idéia pudesse gerar tanto interesse”, conta. “Os inscritos eram advogados, executivos, estudantes, jornalistas, terapeutas, mas ninguém com pretensão de virar bailarino.”

Surgiu ali a primeira turma de cidadãos-dançantes, termo lapidado por Ivaldo para definir aqueles que dançam embora não sejam dançarinos. O modelo pegou e arrastou para sua escola muitos outros alunos interessados na experiência de ser também cidadãos-dançantes. Um deles, matriculado em 1981, virou seu assistente dois anos depois e participou de pelo menos 12 espetáculos nos anos seguintes. Hoje, apresenta o Fantástico. “Ivaldo é uma das poucas pessoas que eu tenho a honra de chamar de mestre”, registrou Zeca Camargo em seu blog recentemente.

Sucesso de crítica e público, Ivaldo chegava finalmente ao topo da escada e observava o muro de cima, pronto para atravessá-lo. Com a mesma ousadia com que decidiu levar “gente comum” para o palco, desejou trabalhar com as camadas menos
favorecidas da população.

“Meus alunos eram netos de portugueses, italianos, alemães. Eu sabia tudo sobre seus corpos, mas tinha enorme curiosidade em conhecer o morador da periferia. Essa gente tem elementos africanos e indígenas que não existem nos europeus. Eu sentia uma necessidade enorme de conhecer esses corpos e trabalhar com eles”, conta.

Faz exatos dez anos que Ivaldo se voltou para os estratos periféricos da sociedade (geográfica e economicamente falando) e transformou, pela primeira vez, jovens da periferia em protagonistas de sua arte. Em agosto de 1997, estreou no teatro do Sesc Pompéia, em São Paulo, o espetáculo Palco, Academia e Periferia (O Penhor dessa Igualdade), no qual alunos e dançarinos compunham um caldeirão étnico e ético embalado pela música de Nelson Ayres, Naná Vasconcelos e os timbaleiros do Candeal, de Salvador.

Desde então, sua dança jamais se desvincularia dos ideais de cidadania. O primeiro espetáculo composto exclusivamente com jovens carentes foi Mãe Gentil (2000), com participações especiais da atriz Rosi Campos e de Zeca Baleiro. Instalado no Rio de Janeiro, Ivaldo inaugurou um projeto pioneiro em arte-educação com adolescentes de 12 a 20 anos do Complexo da Maré. Os espetáculos Folias Guanabaras (2001) e Dança das Marés (2002) foram recebidos como um soco no estômago por aqueles que não acreditavam na capacidade criativa e na delicadeza dos gestos de crianças do morro às quais, muitas vezes, faltavam as primeiras letras.

Folias Guanabaras contou com a participação de Elza Soares. Dança das Marés, escrito por Drauzio Varella, tem trilha sonora executada ao vivo pelos mineiros do grupo Uakti. “Faz dez anos que trabalho com jovens carentes e, para mim, parece uma vida”, confessa o mestre. “Hoje, sei que não tenho interesse nenhum em trabalhar com a tipologia longilínea e elástica padronizada nas companhias tradicionais. Meu foco é essa tipologia diversificada, extremamente brasileira, com mais bunda, peito e peso nos gestos do que a maioria dos bailarinos convencionais.”

Em 2003, de volta a São Paulo, Ivaldo reuniu 40 e poucos jovens de baixa renda indicados por sete diferentes ONGs da cidade no Projeto Dança Comunidade, dirigindo-os nos espetáculos Samwaad – Rua do Encontro e Milágrimas nos anos seguintes. São os mesmos jovens que acabam de formar a Cia. TeatroDança Ivaldo Bertazzo, em excursão pelo País a bordo de Mar de Gente. Funcionários registrados, eles recebem salário de R$ 700 e, pela primeira vez, administram as próprias finanças. Há um ano, todos os jovens da companhia possuem o registro profissional de ator conhecido como DRT (um documento que, entre nós, também poderia se chamar “escada”).

O palco parece mais amplo e familiar agora, quando a emancipação varreu para longe o desconforto experimentado no primeiro espetáculo, quatro anos atrás. “Quando éramos um projeto social, oferecíamos café da manhã, acompanhamento psicológico, cursos de formação, e tínhamos sempre a perspectiva do desenvolvimento humano como algo que se sobrepunha ao resultado técnico. Agora, nossa relação é profissional, em torno da criação de um produto cultural, o que mexe ainda mais com a auto-estima deles e nos permite analisar o espetáculo em si mesmo”, Ivaldo compara.

A profissionalização surgiu em um momento de reavaliação de procedimentos. Aclamado pela crítica e agraciado com diversos prêmios de cunho social, o Projeto Dança Comunidade despertou também o fel da crítica. Houve quem argumentasse que não fazia sentido, num país com tantas necessidades, gastar tanto dinheiro (cerca de R$ 2,5 milhões por projeto) com apenas 40 jovens. Outros diziam que o resultado do trabalho não era mais do que a produção de um grande espetáculo, de modo que o diretor apenas se utilizava do élan da responsabilidade social para ganhar dinheiro com bilheteria, livros, CDs e DVDs.

Ivaldo pensou em abandonar tudo, mas foi convencido a persistir. Uma coisa, no entanto, lhe pareceu necessária: renovar o grupo. “Os jovens que estão comigo desde 2003 já atingiram um estágio de desenvolvimento e emancipação que nada mais lhes restava a não ser a profissionalização. Optei por empregá-los em uma companhia de dança, coisa que eu nunca havia feito na vida, e quero começar um novo projeto social, a partir do zero, com jovens sem experiência alguma”, promete. Em outras palavras, a fila tem de andar.

Entre os 40 e poucos jovens que deram início ao Dança Comunidade em 2003, quase 30 permanecem no grupo. Alguns saíram por falta de vocação; outros, porque a vida lhes surpreendeu com novos chamados. Um dos jovens, dono de excelente retórica, abandonou a dança para virar pregador evangélico. Uma garota abriu mão da carreira de artista ao flagrar, há quase dois anos, outro coraçãozinho pulsando dentro dela na tela do ultra-som.

A vida dá voltas, saltos e piruetas. Quando pisaram pela primeira vez nas oficinas do projeto, raros eram os meninos que conseguiam imaginar a si mesmos como dançarinos profissionais. Apelidados de Ivaldinhos pela equipe de professores, psicólogos e assistentes sociais, os jovens galgaram lentamente os degraus de suas escadas e aprenderam a vencer as paredes que insistem em aparecer diante deles. Anderson Dias da Silva, por exemplo, um jovem recrutado pela Associação Sarambeque, do Jardim Monte Azul (zona Sul de São Paulo), sonhava ser jogador de futebol. “Ele quebrou a cara durante um ano batendo de clube em clube até decidir, sem nenhuma pretensão, matricular-se em uma aula de street dance na ONG”, Ivaldo conta.

Foi o passaporte para o Dança Comunidade. “Eu queria jogar futebol e acabei virando bailarino, pode?”, segredou-lhe o jovem algum tempo depois. Claro que pode, Anderson, principalmente quando o time é dirigido por um treinador como Ivaldo, que grita, fala palavrão, chama na chincha e jamais leva desaforo para casa. É certeza de medalha de ouro.

Hoje, cerca de dez Ivaldinhos trabalham como professores assistentes na Escola do Movimento, o centro de estudos e terapias corporais mantido por Ivaldo Bertazzo na Vila Pompéia. Alguns conciliam ensaios e espetáculos com projetos desenvolvidos junto às instituições que os lançaram, quatro anos atrás. Rubens Oliveira Martins, por exemplo, realiza todos os anos um festival de música na ONG Arrastão, no bairro do Campo Limpo.

“Quando comecei no Dança Comunidade, em 2003, achava que seria mais um projeto entre os muitos dos quais eu já havia participado”, ele conta. “Acabou se tornando um processo tão valioso quanto uma faculdade. Aprendi um monte de coisa sobre dança e fisioterapia, montei três espetáculos, viajei por diversas cidades e, hoje, tenho uma profissão e um emprego.”

“Cabul! Bombaim! Bagdá!”, provoca Denise Del Vecchio quase no final do espetáculo. “Cidade Tiradentes!”, responde em coro o mar de gente. Ivaldo Bertazzo é isso: amálgama de civilizações e culturas, estrada de ferro que une Oriente e Ocidente, teleférico que leva música erudita para o morro e a timbalada para a corte. Na trama de Mar de Gente, uma babel visual e sonora, composta com influências da Europa Oriental e do Oriente Médio, dá origem às civilizações.

Uma polca, uma valsa, música experimental do Egito, canto tradicional da Bulgária, marchas russas de Dmitri Shostakovich somam-se ao texto da dramaturga Andréa Bassitt. É tudo parte do vasto repertório trazido por Ivaldo das viagens que faz todos os anos para os cafundós da Ásia e da África. Rajastão, Madagáscar e Chechênia estão na lista dos locais por onde Ivaldo passou recentemente e de onde pretende trazer ritmos e canções para os projetos futuros. “Faço isso para abrir o leque cultural meu e dos meninos. A cabeça deles não vai virar purê”, brinca o mestre.


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