O início do poema Mar Português poderia muito bem ilustrar o sentimento dos conterrâneos do poeta Fernando Pessoa neste momento. A razão para as tais lágrimas, porém, hoje passa longe de qualquer objetivo mais nobre. Em vez de chorarem as perdas trazidas por uma das iniciativas mais corajosas da história da humanidade – a de se lançar em mares totalmente desconhecidos em busca de novas terras -, agora os portugueses choram os efeitos de uma crise econômica cada vez mais profunda e sem fim aparente. Uma tragédia que, pelo menos até o momento, atingiu o seu ápice com a renúncia do primeiro-ministro José Sócrates e a concretização do já esperado pedido de ajuda financeira à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
O abismo no qual Portugal despenca sem obstáculos não surgiu de uma hora para a outra. A crise financeira global de 2008 foi apenas a rasteira final nas pernas já bambas da economia lusitana. Depois de receber uma enxurrada de recursos da União Europeia nos anos 1990, o país entrou no século XXI crescendo muito menos que outros membros da comunidade com economia de tamanho equivalente. Tal qual os anos 1980 ficaram marcados para o Brasil, a primeira década dos anos 2000 foram para Portugal uma década perdida. Entre 2001 e 2008, a economia do país cresceu pouco mais de 1% ao ano, contra 4% de Grécia e República Tcheca, 6% da Eslováquia e 8% dos países bálticos (Letônia, Estônia e Lituânia). Assim, como explica o economista português Álvaro Santos Pereira: “Enquanto os outros países passaram de uma expansão econômica para uma grave crise, Portugal simplesmente continuou em crise”.
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Professor na Simon Fraser University e na University of British Columbia, no Canadá, Pereira é colaborador do blog The Portuguese Economy e autor de livros, como O Medo do Insucesso Nacional, em que aborda os mitos e complexos por trás da derrocada da economia portuguesa. Para ele, seu país vive, na verdade, três crises: “A das finanças públicas, a da competitividade e do baixo crescimento e a do endividamento”. Uma análise que vai ao encontro do pensamento consensual sobre as causas para a crise local. Em linhas gerais, os dirigentes portugueses não souberam, ou não quiseram, investir o dinheiro da União Europeia de modo a fortalecer a economia do país. Preferiram obras de utilidade duvidosa, como as realizadas para a Eurocopa 2004. Depois, endividaram o Estado se esbaldando com os empréstimos a juros baixos que o mercado financeiro oferecia até 2008. Boa parte da população portuguesa fez o mesmo, também se endividando e consumindo mais do que o país consegue produzir. Junte-se tudo isso à perda de competitividade das exportações portuguesas após a adoção do euro, e à concorrência dos produtos chineses, e chega-se à bancarrota.
País no divã
Noticiada e debatida ad exaustum pela mídia nacional, a crise invadiu a vida do português. Em Lisboa não faltam cartazes e pixações com menção ao problema, e assistir ao noticiário da TV é um exercício de resistência à depressão. Até mesmo a publicidade usa a crise como mote para promover produtos. Uma situação que levou o jornal O Diabo a declarar em sua primeira página: Portugal está “à beira de um ataque de nervos”. O pequeno semanário não usa meias palavras na hora de falar da crise nem de apontar quem, na sua visão, são os responsáveis pela desgraça do país. Suas tragicômicas chamadas de capa lembram, por exemplo, que “os portugueses continuam a esbanjar como se fossem ricos”, apesar da bancarrota e que, graças à política de José Sócrates, cada português teria de trabalhar 33 anos só para que o país conseguisse pagar sua dívida. Diretor geral do jornal, João Vasco Almeida acredita que os partidos do atual presidente Cavaco Silva, e do agora primeiro-ministro que renunciou José Sócrates, são em grande parte culpados pela situação do país. Para Vasco, o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido Socialista (PS) não souberam aproveitar a “chuva de dinheiro” da União Europeia para colocar o país na rota do desenvolvimento sustentável. “Nunca em Portugal se fez o que, por exemplo, a Espanha conseguiu: a renovação, por meio de medidas políticas, do tecido empresarial”, avalia o jornalista. Para ele: “Nem a esquerda nem a direita sabem o que fazer com a administração pública”, e a mania lusitana de “culpar terceiros pelos seus problemas” deve ficar ainda mais acentuada com uma intervenção do FMI.
Tsunami fiscal
Com o fim da festa do dinheiro fácil, o Estado português finalmente aceitou que precisava apertar o cinto com força. Acontece que a decisão veio tarde demais, e o resultado é um orçamento para 2011 de fazer corar os mais árduos defensores de um Estado austero. Chamado até de “tsunami fiscal” na imprensa local, tem por objetivo baixar o déficit público do país, que ficou em 8,6% do PIB ano passado, para cerca de 4,6% este ano. Uma empreitada que custará, para uma sociedade já empobrecida, cortes de até 10% nos salários do funcionalismo público, congelamento do valor do salário mínimo, redução de benefícios sociais como o auxílio-maternidade e a Renda Social de Inserção (espécie de Bolsa Família) e, claro, aumento de impostos. Na prática, algo como pedir uma doação de sangue a um paciente já em estado crítico.
“O orçamento de Estado para 2011 é quase uma tentativa desesperada de tentar fazer cumprir as metas do déficit orçamentário, sem que haja o mínimo de estratégia econômica ou planejamento adequado para a economia. Há um aumento brutal da carga fiscal, que vai fazer a economia cair novamente em recessão, e os cortes são feitos às cegas”, avalia Álvaro Santos Pereira. Para o economista, não há dúvidas: “O despesismo do Estado continua, pois não se corta aquilo que devia ser reduzido, que são as despesas de milhares de entidades e organismos públicos que povoam a administração pública”.
Os indicadores socioeconômicos de Portugal seguem em deterioração: a inflação prevista para 2011 é de 3,6% (contra 1,4% no ano passado), o desemprego atinge cerca de 11% da população, o PIB deve cair 1,2% este ano e o índice de confiança do consumidor português, apesar de uma pequena melhora desde janeiro, ainda está em -48 pontos. Dados macroeconômicos que servem para ilustrar a penúria de uma economia, mas que, como é usual nestes casos, escondem o real sofrimento da população. Para entendê-lo, o melhor é recorrer a números como os publicados pelo jornal Público em uma série de reportagens sobre os efeitos da crise entre famílias de diferentes regiões portuguesas: além da capital, Porto (norte), Coimbra (centro), Beja e Faro (sul). Os gráficos que acompanham as reportagens, com números sobre desempregados inscritos nos centros de emprego, novos pedidos de adesão ao rendimento social de inserção e falências de empresas mostram, sem exceções, uma impressionante piora do quadro em todas essas regiões em 2009 e 2010.
Atuando contra os efeitos da crise em três frentes, a Cáritas Portuguesa viu o volume de atendimentos de janeiro de 2010 para janeiro deste ano aumentar em 60%. A entidade mantém um fundo diocesano, lojas sociais que distribuem roupas gratuitamente e, em parceria com a Fundação Agir, cursos que ensinam, por exemplo, pessoas em situação difícil a renegociarem suas dívidas.
Rostos da crise
Desempregada, Ana Paula Prata recorre cada vez mais frequentemente à loja da Cáritas do bairro lisboeta de Carnide. A portuguesa de 49 anos viu o seu rendimento social de inserção reduzido de 150 para 112 euros mensais e agora precisa pedir ajuda ao banco alimentar para matar a fome. “Trabalhava em uma empresa de engomadoria e tínhamos de atingir uma certa quantidade de peças para receber. Eu não consegui e agora, além de recorrer ao banco alimentar, não pinto mais o cabelo, não posso comprar calças, essas coisas.”
Cristina Leitão é outra que passou a integrar as estatísticas. O lugar onde trabalhava fechou e agora o trabalho de promotora em supermercados, antes apenas um bico, tornou-se sua fonte de renda principal. Para piorar, os subsídios que recebia do governo para sustentar os dois filhos foram cortados. “Me tiraram o abono de família que o mais novo recebia. Com o mais velho isso já tinha acontecido há seis meses. Cheguei ao banco e o dinheiro não estava lá”, conta Cristina. “Deixei de ir a cafés e agora só compro produtos de marcas brancas (com os selos das próprias redes de supermercado, mais em conta em Portugal). Meus filhos perguntam o que eles podem comer.”
Com 42 anos, o pedreiro João Almeida Lopes também recorre à loja social da Cáritas. Em menos de três anos, ele foi vítima da falta de ajuda do governo, do desemprego e da precariedade das condições de trabalho. “Passei quase dois anos desempregado. Não recebia do fundo desemprego porque o meu último trabalho não pagava a segurança social. Há três meses, estou em um novo emprego, mas agora é o salário que não me pagam”, conta João.
Entre os que procuram pelas roupas gratuitas da Cáritas, um brasileiro. Capixaba, ele não quer ter o nome revelado porque sua família no Brasil “não pode sonhar” que ele “está nesta situação”. “Eu morava nos Estados Unidos”, conta o brasileiro, “e tive a infeliz ideia de voltar ao Brasil para depois vir para a Europa. Primeiro fui para a Irlanda, não consegui nada e vim para cá. Desde então, não consegui trabalhar um dia.”
O futuro
O agravamento da situação em Portugal faz com que, de vez em quando, ideias curiosas ou mesmo bizarras surjam como possíveis saídas. O jornal britânico Financial Times, por exemplo, sugeriu uma hipotética anexação ao Brasil, não sem ponderar que a ex-metrópole estaria longe de ser uma província dominante, representando “5% da população e 10% do PIB (total do Brasil)”. Já o Público revelou que, de acordo com estudo luso-espanhol, quase metade dos portugueses são, hoje, a favor da união ibérica com a Espanha. Uma saída temerária, visto que a economia da vizinha também anda mal das pernas.
O fato é que, soluções fantasiosas à parte, os portugueses têm uma eleição legislativa pela frente. O pleito foi antecipado para o próximo dia 5 de junho após a renúncia de José Sócrates. O primeiro-ministro, oficialmente ainda no cargo, mas sem poder exercer o poder, saiu depois que o Parlamento não aprovou mais uma série de cortes contidas no novo PEC (Programa de Estabilidade e Crescimento). Não se sabe como o eleitorado lusitano vai reagir desta vez, se com a resignação das eleições para presidente ocorrida em janeiro, quando a taxa de abstenção ficou em 53,48%, um recorde, ou com a energia da “Geração à Rasca” (geração em risco), manifestação que levou cerca de 200 mil pessoas às ruas de Lisboa no dia 12 de março. Diferentemente do que já ocorreu em outros países europeus, como Grécia, França e Inglaterra, essa foi a primeira demonstração pública de repúdio à situação do país realmente significativa.
João Vasco Almeida acredita que a mesmice da política portuguesa deverá impedir que o pleito de 5 de junho ofereça alguma alternativa real às já apresentadas. “O Partido Comunista mantém-se fiel a seus princípios, controla a maior central sindical do país, mas não se apresenta disponível para governar ou coligar-se com o PS. E os trotskistas do Bloco de Esquerda são apenas um partido de protesto, sem expressão no terreno político. Quem neles vota é a pequena elite jovem das cidades, culta, mas menos fiel. Os três partidos não se entendem nem entre si nem em conjunto.”
Seja quem vença a eleição, em curto prazo Portugal não parece mesmo ter para onde correr. A desconfiança dos credores internacionais nos títulos da dívida pública portuguesa fez com que os juros para os papéis com vencimento em um ano chegassem a quase 6% em abril, um recorde. A esperança é que o pacote de resgate financeiro a Portugal, que pode chegar a 90 bilhões de euros, acalme o mercado. Isso se a Finlândia, onde políticos resmungaram contra socorro da UE a mais um de seus membros, não inviabilizar a ajuda. Já há na imprensa lusitana quem chame o país nórdico de “empata-esmolas”.
Colaboraram Vitor Sorano e Glaicon Emrich
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