Mara Gabrilli, uma mulher de garra

Graduada em psicologia e publicidade, Mara Gabrilli enfrenta há sete meses os corredores da Câmara Municipal de São Paulo, onde é vereadora de primeira viagem pelo PSDB. Nesse período, tem se desdobrado para desvendar os mistérios de uma casa em que um parlamentar é capaz de acusar outro de dedo em riste e aos berros, para depois – é o que se diz nos bastidores – convidá-lo para uma pizza “amiga”. Quem convive com essa turma garante que quase tudo no plenário é teatro, e a qualidade do texto muitas vezes deixe a desejar.

Em uma quinta-feira de outubro passado, em meio a um desses tiroteios verbais, uma vereadora, contrariada com a forma como a Prefeitura renegocia seus contratos de coleta de lixo, saiu-se com esta: “Há algo de podre no reino da Inglaterra!” Do fundão, como se estivessem em uma sala de aula, alguns colegas a corrigiram prontamente: “Da Dinamarca, vereadora, da Dinamarca!” Geografia à parte, digamos – e sem preconceitos – que a Câmara tem um que de teatro, como sugere a palavra representação, cara a esses dois mundos. Mara seria, então, a atriz aspirante que se assusta com o modus operandi das “estrelas da casa”. Nesse contexto, contar com o apoio de Sigmund Freud e Marshall McLuhan pode ser decisivo.
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“Tem vereador aqui que toma cinco cafés-da-manhã por dia, em cinco padarias diferentes, só para circular na sua base eleitoral. Outro é capaz de ir a um velório por noite, de segunda a sexta, e faz questão de chegar de madrugada, quando está apenas a família e já acabou a choradeira. Eles são ‘profissas’”, garante Mara ao deixar o plenário depois de uma sessão ordinária – em que foi aprovado, convém frisar, um momentoso parecer do Tribunal de Contas do Município relativo aos gastos realizados pelo próprio Tribunal em 1993, no século passado, portanto.

No mesmo tom, a vereadora conta como foi seu rito de iniciação na Câmara, o momento em que começou a ter consciência da distância entre a boa vontade do parlamentar e o projeto aprovado. Foi em seu primeiro mês como vereadora, quando soube que dois projetos de lei de sua autoria acabavam de ser vetados por seu colega, Agnaldo Timóteo, sem sequer irem à apreciação dos demais. Ficou fula da vida. “Eu sabia que, do ponto de vista técnico, não havia nada de errado com eles”, comenta com um sorriso irônico. Ao contrário, tinham sido elaborados com a ajuda de sua assessoria jurídica, responsável por seguir à risca o protocolo. Mara não teve dúvida: foi tirar satisfações com o vereador-cantor. O que se seguiu foi uma aula e tanto. “Calma lá que eu não entendo nada dessa história de legislação. Isso é lá com o pessoal da ATL”, contra-atacou Timóteo. O vereador referia-se à Assessoria Técnica Legislativa da Câmara, responsável pelo apoio jurídico. Depois de avaliar os dois projetos, a ATL nada encontraria de errado e, portanto, não havia justificativa para o veto. Não fosse um “detalhe” exposto pelo assessor que atendeu Mara. “É que ninguém disse que era para o projeto ser aprovado”, foi a sincera justificativa para o parecer contrário. Faz lembrar Kafka; ou seria intriga da oposição?

O tranco e a mudança
Avessa à política desde os tempos de estudante, Mara viu sua vida mudar drasticamente depois do acidente que a deixou tetraplégica, em 1994, quando tinha 27 anos. Ao voltar de uma viagem ao litoral paulista com seu namorado e um amigo, o carro em que viajavam saiu da pista em plena serra e caiu mais de 15 metros. O tranco foi suficiente para quebrar seu pescoço e lesar a coluna. Foram meses de hospital em São Paulo e nos Estados Unidos. Aos poucos, retomou a vida social, abriu uma entidade para auxiliar pessoas com deficiência e levantar fundos para pesquisas com células-tronco. Fez do seu drama pessoal uma causa pública. Não fosse o acidente, ela provavelmente seria hoje dona de uma agência de publicidade ou uma executiva de alto salário.

Cidade acessível
“Dois dias antes do acidente, eu havia saído do emprego em que era encarregada de vender espaço publicitário de um painel eletrônico localizado no cruzamento das avenidas Rebouças e Henrique Schaumann.” Pediu demissão para virar sócia de uma empresa especializada nessa nova mídia que parecia ter grande futuro pela frente. Por ironia, em setembro de 2006, quando o prefeito Gilberto Kassab sancionou a lei proibindo o uso desses painéis pela cidade, Mara participava de sua equipe, à frente da Secretaria Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (Seped), criada em 2005 e única do gênero no País. Indicada pelo então prefeito José Serra, cuja filha é amiga de longa data de Mara, ficou dois anos comandando a pasta encarregada da difícil tarefa de tornar São Paulo plenamente acessível a cadeirantes, surdos, cegos e outros cidadãos com necessidades especiais.

Nesse meio-tempo, chegou a participar brevemente da política federal. Foi a Brasília depor na CPI dos Bingos, acusando a administração petista de Santo André, no ABC paulista, de extorquir a empresa de ônibus que a sua família possui na cidade. Foi uma exposição e tanto, mas nada que intimidasse Mara.

Medo dos holofotes, aliás, nunca fez parte de seu currículo. Uns anos atrás, já depois do acidente, não titubeou em participar de um ensaio fotográfico para uma revista masculina em que aparecia apenas de calcinha. Assinadas pelo premiado fotógrafo Bob Wolfenson, as fotos assustaram alguns familiares, preocupados com a repercussão. Mara não deu importância. “Eu não estava nem aí. Minha viagem maior era ver meu corpo de vários ângulos, já que eu malho tanto”, diz ela, que ainda hoje mantém a rotina diária de exercícios de reabilitação. “Profissa”, Bob tratou Mara como se ela também fosse do ramo. “Deixa eu ver seu peito”, falou o fotógrafo. “Que cara louco!”, Mara pensou na hora. Mas achou que o melhor era seguir em frente. Assim como foi em frente quando uma marca de lingerie, pouco tempo depois das fotos, a chamou para aparecer em outdoors usando desta vez calcinha e sutiã.

Saldo positivo
O balanço que faz dos três anos de vida pública inclui vários projetos no Executivo sobre o tema da acessibilidade para pessoas com deficiência. Com a Secretaria de Transportes, por exemplo, aumentou a frota de ônibus adaptados, de 300 para mais de 2 mil. Também criou condições para os cegos escolherem os livros que desejam ler em braile nas bibliotecas municipais, entre outras iniciativas. E conta, por enquanto, com apenas uma lei aprovada na Câmara, a que cria uma central de intérpretes para a linguagem dos surdos, Libras. Os usuários poderão agendar a presença de um intérprete ou acioná-los via webcam. O público-alvo – 250 mil paulistanos incapazes de ouvir – deverá usar computadores localizados nas subprefeituras da cidade. O projeto já deveria ter entrado em vigor, mas a burocracia não tem ajudado. “Está na hora de puxar a orelha do secretário”, comenta Mara a uma assessora, referindo-se ao médico Renato Baena, professor da USP e seu substituto à frente da Secretaria.

Além de tocar projetos próprios, a Seped também teria, na avaliação de Mara, uma importante função pedagógica. “É preciso ensinar as outras secretarias a pensar em acessibilidade quando elaboram políticas de educação, cultura, esporte, transporte etc.”

No momento, a vereadora está empenhada na aprovação do projeto que pretende obrigar os moradores da cidade a respeitarem a legislação sobre as calçadas de São Paulo. A idéia é acabar com os trechos acidentados e irregulares, quase a totalidade do calçamento paulistano, a um custo razoável. Quem não arrumar sua calçada será multado. A vereadora também articula sua campanha à reeleição – nesta legislatura obteve 12 mil votos e ficou com vaga de suplente. Por isso, assumiu há apenas sete meses. Se a concorrência bobear, Mara Gabrilli fará o que tem feito até aqui: seguirá em frente.


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