Marília Gabriela: “Sou doida por homem, sempre fui”

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São Paulo estava vivendo a animada reafirmação de seu Carnaval de rua naquela segunda-feira em que a atriz e apresentadora de TV Marília Gabriela, 68 anos, abriu a porta de um silencioso e organizado duplex no alto de um edifício do bairro paulistano de Cerqueira César. Ela preparou para si um expresso, serviu outro e, antes de nos sentarmos à mesa, avisou: “Nesta cadeira, não. Este lugar é meu”. Só no fim da conversa explicou a preferência, apontando para uma fotografia de Miguel Rio Branco na parede intitulada Moça do Vestido Vermelho, onde vemos uma figura feminina nas ruas de Havana. “Gosto de ficar olhando para ela.”

Mulher alta, de 1,78 metro e temperamento determinado – o que, sob sua ótica, lhe deu livre trânsito pelo mundo dos homens –, Marília Gabriela Baston de Toledo Cochrane traçou boa parte de sua trajetória no jornalismo televisivo. Em 1969, iniciou a carreira como repórter do Jornal Nacional (Globo), passou pelo Fantástico e tornou-se entrevistadora célebre: comandou os programas TV Mulher (Globo), Cara a Cara (Bandeirantes), Marília Gabriela Entrevista (GNT), De Frente com Gabi (SBT) e Roda Viva (TV Cultura), entre outros.

Casada três vezes e mãe de dois filhos, considera-se independente, namoradeira e desmente boatos de que já tenha se relacionado com mulheres. “Sou doida por homem.” Em sua casa, além de dezenas de obras de arte, assinadas por Dora Longo Bahia, Arthur Omar e Farnese de Andrade, entre outros, guarda relíquias barrocas e muitas bonecas, algumas delas trazidas de uma infância marcada pelos conflitos com uma mãe autoritária e “abusiva”.

Na entrevista, Marília revê momentos notáveis de seu trabalho, contextualizando-os entre situações políticas e, especialmente, como exemplos singulares das conquistas da mulher. Quando o TV Mulher estreou nos anos 1980, conta, seu salário era o mais baixo da equipe. “Eu perguntava: mas como? Sou a mulher da TV Mulher e ganho menos que os homens?”.

Durante a entrevista, falou também do difícil trânsito da carreira de jornalista para a de atriz de teatro e novelas. Vê sua primeira peça, Esperando Beckett, escrita e dirigida por Gerald Thomas em 2000, como a mais aceita entre críticos. “(Hoje) há uma birra por parte da crítica, uma dificuldade que eu mesma apresentei: como dissociar essa mulher que apareceu tanto nas nossas vidas sendo Marília Gabriela da que vai para o palco fazer um papel?”.

Brasileiros – Quando você conhece o entrevistado, como equilibrar a cumplicidade e o compromisso de jornalista?
Marília Gabriela – Taí uma pergunta para a qual não tenho uma resposta muito esperada ou lógica. Já fiquei íntima de várias pessoas que conheci entrevistando e, ao mesmo tempo, nunca me proibi de fazer qualquer pergunta para essas pessoas, quase achando que, com a intimidade, eu tinha ainda mais direito de perguntar. Vamos dizer que em algumas situações tenha ficado uma coisa meio promíscua, porque a pessoa é minha amiga, mas, me desculpe, eu faria aquela pergunta. Nunca tive dificuldade. Cheguei a entrevistar meus dois filhos. Eu os tratei com a exata retidão com que sempre tratei meus entrevistados. E não vejo por que não ser simpática com as pessoas que convido. O jornalista é sempre o privilegiado. Todo mundo parte da premissa de que o jornalista pode perguntar tudo. A situação delicada é sempre a do entrevistado e não a do entrevistador. Quando sento na frente de alguém, tenho respeito por aquela pessoa, quero saber por que ela é o que ela se tornou, por qual essência, esteja eu de acordo com ela ou não. Já me contrapus a entrevistados sem problema, sem que, com isso, eu criasse uma situação irreversível. Tive sim potenciais entrevistados que nunca quiseram me dar entrevistas.

O SINDICALISTA - Lula em entrevista ao programa Cara a Cara, antes de ser eleito à Presidência - Foto: Arquivo Pessoal
O SINDICALISTA – Lula em entrevista ao programa Cara a Cara, antes de ser eleito à Presidência – Foto: Arquivo Pessoal

Tem exemplo de quem recusou entrevista?
Uma pessoa que nunca quis foi Delfim Netto (Antônio, economista e político), em uma época em que eu entrevistava muitos políticos. Ayrton Senna nunca quis. Lula, depois que foi à Presidência, nunca mais aceitou um pedido de entrevista meu. E olha que eu o entrevistava desde que ele era sindicalista.

Tentou entrevistar seu ex-patrão Silvio Santos?
Convidei o Silvio inúmeras vezes. Estive no SBT muitas vezes. Tive uma relação intermitente com o SBT durante anos. Mas, às vezes, eu o encontrava saindo (do estúdio), ia e perguntava: “Silvio?”. Ele respondia: “Não fale comigo”. E eu pensava: esse homem não deve gostar de mim. Não, ele gosta. E, um dia, fui a uma convenção do SBT, no Guarujá, em um hotel dele. Daí ele apareceu de bermuda, a Daniela (Abravanel, filha de Silvio) estava em cena, porque dirigia a emissora. Fui convocada para esse encontro para entrevistá-la. Ela estava na primeira fileira e logo comecei a brincar, fazia perguntas para ela. Depois, peguei e disse: “Silvio, fala aqui comigo, cinco minutos”. Ele disse que não dava entrevistas. Só que se entusiasmou nesse dia, subiu ao palco e resolveu falar de si e responder a perguntas da plateia. Eu levantava a mão, e ele falava: “Você não”. Ficou falando horas sobre a vida dele, que é interessantíssima, e não me deixou fazer sequer uma pergunta.

Quando você convida alguém de opiniões fascistas, machistas ou racistas para uma entrevista, considera que há risco de propagar a ideia do entrevistado?
Você está me perguntando de uma entrevista específica: Silas Malafaia.

Eu perguntaria sobre ele na sequência, mas, sim, é sobre ele que quero falar.
Não pensei nesse risco. Depois é que chegaram comentários que discutiam esse ponto de vista e davam esse parecer: de que você não pode dar espaço para alguém assim na mídia, ainda que vá questioná-lo, porque a propaganda é imensa. Antes dele, muito tempo atrás, cheguei a ficar nervosa com Lair Ribeiro (médico). Eu o entrevistei no Cara a Cara e me lembro dele dizendo que só era pobre quem queria ser pobre. E aquilo me deixou tão indignada que perguntei: “Você está dizendo que as crianças que pedem esmola nas esquinas estão ali porque elas querem, que é por isso que elas vivem nessa miséria?”. Ele dizia que sim. Eu fiquei tão indignada, talvez tenha sido a primeira vez que perdi a paciência no ar. Sabe o que aconteceu quando acabou a entrevista? As pessoas ligavam querendo saber onde encontrar o Lair Ribeiro e onde comprar o livro dele. Foi a primeira vez que isso aconteceu e que eu pensei: como assim? Agora, no caso do Malafaia, me caiu isso de novo e eu pensava: quero falar com esse homem. E me lembro de vê-lo muito nervoso quando eu lhe perguntava sobre questões de evasão de divisas. Mas essas pessoas todas têm o discurso muito preparado. É genuinamente perigosa a exposição de uma pessoa como ele, porque ele é um orador talentosíssimo. Tem o domínio da palavra e a prática da oratória. Só depois que tudo passou é que vi que houve uma divisão entre quem era contra e a favor. Mas foi um risco que corri quase cegamente. Não me arrependo, mas tenho certeza, hoje, de que deveria ter me lembrado da ocasião do Lair Riberio.

Há 17 anos, você iniciou carreira no teatro com Esperando Beckett, que tinha direção e dramaturgia de Gerald Thomas. O teatro ensinou a você algo que o jornalismo não pôde?
É o contrário. Acho que levei ao teatro uma coisa que o jornalismo me deu: eu ouço bem. Outro dia, em uma discussão que tive com alguém, a pessoa me disse: “Mas eu nunca falei isso que você está falando”. Eu respondi: “Olha, eu ouço bem, você pode me acusar de qualquer coisa, mas não disso”. Eu também tive um namorado que dizia para os amigos: “Cuidado, ela é do FBI, tudo o que você falar agora, lá na frente, ela vai cobrar”. Ouço bem, e isso é fundamental para o teatro, porque teatro é um ouvir absoluto. Ouvir a direção, a plateia, quem contracena com você. Isso adquiri fazendo jornalismo, entrevistando pessoas. Agora, o que você está me perguntando é um buraco mais embaixo. Eu sou uma insatisfeita, tenho angústias existenciais. Preciso saber mais, testar oportunidades, outras áreas, porque uma só não me basta. Acho que, no teatro, discute-se de fato a vida. Mais do que a vida, as indagações sobre ela estão lá. Vindas das maneiras menos palpáveis até. E é incrível existir um meio em que você possa ver como é que aquilo está chegando ao público naquele momento.

De que forma as primeiras críticas sobre seu trabalho a influenciaram ou a afetaram?
Não sou uma paixão da crítica, nunca fui, mas fui muito bem criticada quando comecei com o Gerald. Não sei se é porque aquilo tinha muito a ver comigo ainda. Acho que as pessoas viam mais a Marília Gabriela fazendo uma performance do que uma personagem. Deu muito certo aquele trabalho. Estou agora no meu sexto espetáculo. Mas a crítica… Olha, fiz novela também, e fiz direito. Fiz cursos, fiz Antunes (Filho, diretor), fiz CPT. Até Fátima Toledo (preparadora de atores) eu fiz. Há uma birra. Havia uma birra. Mas hoje em dia não chamo de birra. A dificuldade, acho, fui eu que apresentei. Sou Marília Gabriela, aquela da televisão, voz, presença, tudo. Estava na televisão desde os 20 anos. Como dissociar essa mulher que apareceu tanto nas nossas vidas sendo Marília Gabriela da que vai para o palco fazer um papel? Lembro de uma crítica que recebi em Aquela Mulher, peça escrita para mim pelo Agualusa (José Eduardo), dirigida pelo Fagundes (Antonio). Lembro de uma crítica dizendo que era um bom espetáculo, mas que a voz de Marília Gabriela estava lá.

foco político O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no programa Cara a Cara - Foto: Arquivo Pessoal
Foco político – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no programa Cara a Cara – Foto: Arquivo Pessoal

O teatro já não superou esse tipo de questão? A forma de se fazer teatro hoje não tem mais a ver com a performance, com a expressão individual do intérprete, incluindo tudo o que conhecemos sobre ele? Esse tipo de crítica parece anacrônico…
Mas acontece. E tenho duas saídas para falar sobre essa minha posição. Outro dia falei para o Caco (Ciocler, parceiro de cena em Constelações). Ele, vendo um ensaio, disse: “Sabe que a gente não consegue despregar o olho de você?”. Eu disse: “Sei”. E sabe como sei? Pode soar antipático, mas é uma constatação. Eu tenho carisma. Fernanda Montenegro me disse isso, de maneira que não vou saber repetir. A crítica é diferente. Maria Eugênia Castro, grande astróloga, uma vez fez meu mapa astral e disse: “Gabi, estou escrevendo um livro sobre pessoas como você. Pessoas que têm Plutão na casa 1”. Plutão chega antes de a pessoa chegar. Entra e avisa: “Olha, a Marília Gabriela está chegando”. E isso desperta amores gratuitos e ódios gratuitos. Convivo com isso. Desperto antipatias e simpatias exacerbadas e muito claras.

Antipatia te incomoda? Dói?
Hoje em dia, quase nada. Realmente.

Mas chega a dar algum prazer?
As antipatias (risos)? Olha, será que alguém gosta de ser antipatizado?

Gerald Thomas às vezes parece gostar…
Será? Essa é outra questão que passamos a vida tendo que lidar com ela, a tal da rejeição. Saímos de uma barriga, somos mandados para fora dela e já temos que começar a lidar com essa rejeição. O mundo começa numa grande e dolorosa rejeição. E a gente passa a vida tentando lidar com isso. Sou desconfiada. Hoje em dia, lido muito melhor. Fiz análise durante anos. Mas não tenho a persistência dos grandes analisandos. Eu me canso do processo e caio fora. Mas acho que o que se discutia ali era: sou amada ou não?

Quando entrevistada no programa Roda Viva, você disse que sofreu uma rejeição na infância. Você pode falar dessa lembrança?
Coitada, pobre mãe que eu tive. Quando ela morreu, eu tinha 14 anos. Também ela deve ter tido uma vida de… Ela foi privada de sonhos, imagino. Ela teve a sorte de encontrar um homem maravilhoso, porque meu pai realmente era um homem muito bacana. E acho que ela se casou com uma vida de dificuldades. Uma vida muito honesta. E muito restrita. Eles moravam em uma casinha em Campinas, que foi a casa onde nasci. Saí de lá com 8 anos de idade. Eu me lembro de minha mãe lavando roupa, fogão a lenha na cozinha. Eu me lembro de dois quartos.Num deles, nós, duas filhas, e depois viria mais um irmãozinho.

Meu pai era um funcionário público e minha mãe, dona de casa. E eu ficava trancada em casa quando minha mãe ia ao supermercado. Eu ia para a escola a pé e sozinha, eram tempos nada violentos. Não sei se a doença dela já a comia por dentro, ela foi ficando cada vez mais nervosa. Antes, era mais carinhosa e amiga. Minha mãe ia fazer feira e era madrinha de metade dos japoneses que vendiam alfaces e legumes. Não sei se ela queria porque queria que os filhos tivessem mais sucesso do que ela, ficou muito rigorosa. Ela nos castigava. Se falássemos meio palavrão, sabão na boca, e punha no canto da sala. Batia de cinta. Era uma mãe abusiva. Agora, nessa peça, quando estou me preparando para entrar em cena, eu lembro dela.

Quando ela morreu, eu era uma adolescente de 14 anos. E aquela mulher que estava morrendo foi a mesma que me proibiu de passear com as minhas amigas, que me dava tantos minutos para ir para o colégio, tantos para voltar, senão me castigava. Eu tinha que dividir trabalho com a moça que ela empregava na casa. E, hoje, quando eu penso nisso, vejo que ela tinha uma intenção, e era muito bacana, porque a gente ia à missa e eu tinha que ir de mãos dadas com a empregada. E eu não entendia aquilo. Depois, tinha que ser a primeira da classe. Porque senão eu apanhava. E quando falo que eu apanhava é porque eu apanhava.

A minha irmã mais velha foi mandada para um colégio interno, e então a convivência era comigo mesmo. Depois nasceu meu irmãozinho. Então, essa é a memória que eu tenho da minha mãe. Eu não me lembro da minha mãe feliz. Só me lembro do medo que eu tinha dela. Meu pai ficou viúvo, talvez houvesse nele também uma culpa, como se não tivesse podido dar para aquela mulher o que ele achava necessário. E minha mãe se foi com um câncer avassalador. Hoje em dia fico comovida quando me lembro disso, porque talvez eu tenha sido injusta com ela. Se nós, mulheres, hoje, temos tantas reivindicações e desilusões, imagina uma mulher como ela, que bordou um enxoval para ter um casamento (neste ponto, Marília Gabriela solta um suspiro profundo), honesto, mas cheio de dificuldades. E estava eu lá na hora errada. Entendeu? E eu me comovo quando entro em cena porque penso: que pena que eu não tive a chance de poder entendê-la enquanto ela estava viva.

Com o ator Denis Hopper. Foto: Arquivo Pessoal
Com o ator Denis Hopper. Foto: Arquivo Pessoal

E por que você se lembra dela especificamente neste espetáculo?
Porque a peça fala de um câncer avassalador. Penso todo dia antes de entrar em cena que talvez devesse ter sido mais compreensiva com essa mãe, que foi tão complicada na minha vida. Talvez eu a compreenda hoje, mas já não adianta mais.

Você acha que ela não se sentia compreendida por você?
Agora, falando com você, estou me lembrando de um momento em que ela me chamou na cozinha. Ela tinha o quarto ano primário e, no entanto, a gente tinha piano na sala, porque piano era educação obrigatória. Eu me lembro da minha mãe me chamando para me ensinar a cozinhar. Era ela passando o que sabia fazer de melhor para mim. Achei aquilo uma ofensa e disse: “Não quero”. Quando penso nesse assunto, penso na frustração, na tristeza, na… rejeição, chegamos à palavra, na rejeição que ela deve ter sentido quando quis me ensinar o que sabia fazer de melhor e não aceitei. Acho que todos nós passamos a vida lidando com rejeições. E tentando compensar isso. Imagina que escolhi uma profissão em que estou posta (risos) a julgamentos todos os dias. Fiz durante minha vida inteira televisão diária. É como se eu estivesse procurando aprovação. E correndo o risco da reprovação, claro.

É comum ouvir atores recusando o pensamento cartesiano porque, para eles, vale mais a loucura. Utilizam-se da técnica para que, no ponto da vertigem, possam esquecer a técnica. O jornalista não, ele é cartesiano o tempo todo. É nesse sentido que eu te perguntei anteriormente se o teatro te ensinou algo.
Essa técnica de ouvir e ouvir bem, isso não é apenas técnica, não é técnica pura. Ou melhor: em que momento isso deixa de ser técnica e passa a ser uma vivência, uma necessidade? Vou te falar uma coisa, minha cabeça é bem complicada. Acho que as mulheres, no geral, têm uma facilidade para a complicação, no sentido que o raciocínio das mulheres, no geral, é muito intrincado. As associações mentais que são feitas, na cabeça das mulheres… Estou falando de novo de uma forma generalizada e, portanto, perigosa, mas, por observação e por convivência, imagino que seja isso. Sou louca pelos homens, por essa simplicidade de funcionamento. Acho uma coisa tão admirável, que é a vida dividida em departamentos. Há uma organização deslumbrante no raciocínio masculino. Há departamentos estanques e, com ligeiras variações, eles funcionam muito bem nessa organização. Tanto é que, se você quiser desorganizar a cabeça de um homem, é só botá-lo para viver com uma mulher. Eles adoram saber que isso aqui é beber, isso é trabalhar e isso é fazer esporte. Isso é amar, isso é o amigo, aquela lá é a amante. Adoro ser a mulher que sou, mas me dou bem com os homens por isso. Eu os admiro em sua essência. Estou falando isso por que mesmo?

Falávamos sobre teatro e loucura.
Então a mulher é louca (gargalha). Conclusão (gargalha mais): é fácil você tirar uma mulher do equilíbrio e botá-la na loucura. O teatro tradicionalmente é de quem?

Dos loucos?
Das mulheres.

Das loucas.
Os grandes papéis são em geral femininos. Você se lembra de memoráveis mulheres no teatro, não se lembra? Mais de mulheres ou de homens?

Está falando de intérpretes ou personagens?
De atores. E do que eles conseguiram em grandes papéis. Você tem grandes personagens no teatro. Grandes personagens femininos, concorda? Estou especulando. É muito fácil você conseguir aquele desequilíbrio que tira uma mulher de sua estabilidade para a evidente instabilidade, dúvida, dor e entendimento de uma condição. Acho que as mulheres chegam lá mais fácil. À loucura.

Qual foi seu programa mais longevo?
Talvez tenha sido o do GNT. Sem considerar idas e vindas, foi o do GNT. Que comecei em 1996 e fiquei até o começo do ano passado.

Com Dorival Caymmi. Foto: Arquivo Pessoal
Com Dorival Caymmi. Foto: Arquivo Pessoal

Imagino que a razão tenha sido liberdade de escolhas de pautas…
Não. Sempre fiz televisão aberta, daí apareceu o GNT. Senti que ali seria um lugar onde poderia entrar em assuntos mais sofisticados, porque, em televisão aberta, e isso veio se efetivando cada vez mais ao longo do tempo, você precisa ter uma linguagem popular. Para ter audiência, é simples assim. Nos meus últimos anos no SBT, por exemplo, eu negociava com a direção do canal. De vez em quando, queria levar um Roberto DaMatta, como levei, mas era negociado. Um Roberto DaMatta para não sei quantos atores, cantores, personalidades públicas. E o canal a cabo começou assim, um lugar que você podia usar para raciocínios mais sofisticados. Mas depois veio a questão da audiência e do faturamento. E aí você não tem como… Comecei a negociar também. Fora que minha pauta era mandada para o Rio de Janeiro, onde se resolvia quem ia e quem não ia.

Nas emissoras da rede aberta não era assim?
Em emissora aberta, eu mandava a lista de entrevistados e pediam: “Bota um mais popular aí”. No GNT, fazia-se uma pauta, ela ia para o Rio, e o Rio aprovava ou não. E, com o crescimento da TV a cabo, o negócio foi se fechando ainda mais. O bom do GNT é ter acesso mais fácil a atores e atrizes, pessoas públicas e notórias da própria TV Globo. Eu tive uma carreira de anos, o Cara a Cara foi um programa com grandes entrevistados, independentemente da audiência que dessem. Ali o privilégio era mesmo o do pensamento. Eu entrevistei o Vargas Llosa (Mario, escritor), entrevistei pessoas das mais improváveis, passando por apresentadores de televisão americana, como Peter Jennings, presidentes daqui e de fora. E atores, atrizes, personalidades das mais diversas áreas.

E essa mudança de clima determinou o fim do programa no canal GNT?
O que determinou o fim do programa foi um imenso cansaço. Eu já te falei dessa instabilidade emocional, dessa inquietude. Olha, quando morreu José Wilker (ator), que era um grande amigo, pensei: “Vou parar, vou parar”. Eu estava muito cansada. A cada vez que fazia uma reunião, ia ficando muito irritada, exatamente com essas concessões de ter que fazer determinadas entrevistas. Comecei a lembrar de uma época em que eu teria acesso à possibilidade de entrevistar pessoas muito interessantes e que pudessem mudar alguma coisa em nosso cotidiano, em nossas perspectivas, encaixar algum outro tipo de raciocínio nas nossas cabeças. E isso, com o tempo e as circunstâncias, foi se transformando. E eu tinha que fazer coisas cada vez mais populares, e não só: tinha que repeti-las. Se você prestar atenção, estamos todos entrevistando sempre as mesmas pessoas, é perverso esse sistema. Em dia de reunião de pauta, eu ficava tão irritada! Um dia, numa das reuniões, eu, já muito irritada, fui tirar uma camiseta para colocar a roupa para fazer o programa e bati o dedo num sofá do meu camarim, quebrei o dedo.

E por que você demorou para deixar o programa, se estava infeliz?
Porque eu me preocupava com minha tropa, pessoas muito próximas de mim e que havia anos dependiam desse trabalho e do salário. E eu comecei a dar sinais de descontentamento dois anos antes de sair. Eu dizia: “Gente, vocês não estão entendendo, eu estou infeliz, só fico bem quando sento e entrevisto”. Todo o entorno me cansava muito, me deixava impaciente, que é um lado meu que eu não gosto definitivamente. Era exaustivo, mas eu ainda aguentei durante dois anos. Então, pedi desculpas e disse: “Vou parar”. Avisei e passou mais um ano. Entre uma coisa e outra morre o Wilker. Um amigo meu, de às vezes eu pegar um avião aqui e ir para lá, numa fase em que ele precisava conversar. “Não se mexa que amanhã estou aí”, e no dia seguinte estava lá com ele: “Está tudo bem agora?”, daí pegava o avião e voltava para São Paulo. Era amigo. Quando ele morreu, aquilo bateu tão próximo. “Ele também? Então eu também.” Nós somos frutos de uma mesma época. E aí ficou muito próximo de mim. Eu vivo sozinha nesta casa. Aqui, quando tem filhos… Theodoro mora na casa dele há muitos anos. Christiano, quando vem com a família do Rio, e agora ele está nos Estados Unidos, fica aqui comigo, mas eu fico sozinha. Agualusa (escritor) às vezes vem e fica hospedado. Mas eu fico muito bem sozinha aqui. Já tive amores fortuitos que passaram por aqui, mas tchau e bênção. Não tenho medo de estar sozinha e gosto dessa experiência da solidão consciente e desejada. Inclusive, fico lendo essas matérias todas “morre mais rápido quem não tem uma vida social…” ou “vive mais quem tem amigos”… Eu não tenho essa vontade, acho que vou “me morrer” daqui a pouco. Mas estou ótima, saudável, tenho meus horários, tenho as minhas coisas. E pela primeira vez na minha vida estou me entregando ao prazer de fazer o que eu quero.

Além da peça, você está escrevendo um livro…
Tenho esse material para um livro, está fechado no meu cofre. Mas isso eu preciso vencer o medo do que seja escrever um livro. E preciso de um tempo só para isso. Mas tem uma pendrive no meu cofre guardada. Está lá.

SEMPRE PELA MANHÃ -  Marília Gabriela ao lado de Nilton Travesso, diretor do programa TV Mulher. Foto: Arquivo Pessoal
SEMPRE PELA MANHÃ – Marília Gabriela ao lado de Nilton Travesso, diretor do programa TV Mulher. Foto: Arquivo Pessoal

Você vai a velórios?
Não vejo os meus amigos quando eles morrem porque não me interessa aquela caixa, uma realidade com a qual eu me deparei quando meu pai morreu. Eu olhava para ele no velório, eu tinha estado com ele na véspera. Era uma caixa, e as pessoas reunidas, aquela coisas de velório, uns riem, outros não. O velório é um reencontro: eu olhava e aquilo, para mim, não fazia sentido, porque meu pai não estava ali, aquilo era apenas uma caixa. Daí, parei. Não quero ver caixas mais. Não fui nem ao velório do Wilker. Mas ficou na minha cabeça. No final de 2010, eu estava fazendo análise com Contardo Calligaris. Eu disse para ele: “Estou com uma questão: se eu morrer na sexta-feira, só vão me descobrir na segunda à tarde”. Ele ficou olhando para mim e falou: “Por quê?” Porque eu sou sozinha. Você pode ver aqui que meu telefone não toca. Não é uma reclamação, é uma constatação. Se eu morrer na sexta, na segunda à tarde minha secretária vai pensar: “A Gabi já devia ter acordado”. De manhã, se minha porta está fechada, ela não vai se meter a abrir, porque vai achar que a Gabi resolveu dormir. Na segunda à tarde, ela vai se perguntar: “Será que a Gabi saiu?”. Vai entrar no meu quarto e vai constatar que morri. Era o fim da análise, e ele disse: “Mas isso não vai acontecer com você agora, porque você está fazendo teatro e, se você não aparecer na sexta, no sábado ou no do­mingo, as pessoas vão te procurar e te achar”. Então, em 2010, já tinha tido isso. Quando veio a história do Wilker, pensei: está perto, agora está grudada aqui a probabilidade. Falei: quer saber, não quero mais. Trabalhava havia tanto tempo na minha vida. Não sou um faraó, não vou levar meus móveis comigo (risos), e não vou dizer: “Façam um ambiente aqui para eu ficar”. Não, não vou. Trabalhei muitíssimo para hoje ter uma folga. Chamei o cara que cuida da minha grana e perguntei: “Quanto posso gastar por mês?”. Fizemos esse cálculo: dali para a frente não dá para passar. Mas não sou uma mulher extravagante.

O isolamento a que você se refere, ou a opção pelo isolamento…
O isolamento como consequência…

O isolamento como consequência ou como opção: ele resulta da sensação de que as pessoas perderam a naturalidade com você? Em uma entrevista, você diz que acabou se tornando um recurso e que algumas pessoas se chatearam por não terem sido entrevistadas por você.
Acho que até hoje as pessoas me percebem como um veículo. Eu fui um veículo a vida inteira, a verdade é essa. E comecei a perceber isso muito cedo. Lembro do primeiro dia em que senti isso. Eu era repórter do Jornal Nacional. Fui a uma festa e percebi que me beijavam olhando atrás para ver se tinha vindo junto a câmera, o que é muito louco. Depois quando fui fazer análise com Gaiarsa (José Ângelo) e falei sobre isso, ele me disse: “Você sofre da maldição do príncipe. Jamais vai saber se as pessoas gostam de você pelo que você é ou pelo que representa”. Com o tempo, isso foi se sedimentando em mim. Você vai ver que isso vai parar lá naquele outro assunto da rejeição. Essa percepção de que as pessoas conversavam comigo contando eventos. Claro que existem exceções, claro.

Sendo José Wilker uma dessas exceções, a morte dele se torna mais dolorosa?
Sim, tem uma dimensão muito grande. Tenho alguns belíssimos amigos, mas vamos dizer que cheguei a um status profissional tal que, no geral, as pessoas chegavam para mim e não percebiam que eu já estava escolada e sabia que a mensagem era: veja que bom entrevistado eu não daria. Se eu abrir meu Instagram para você ler, e leio tudo o que as pessoas escrevem, elas me pedem entrevistas, nem sequer sabem onde eu estou fazendo as entrevistas. “Ah, meu sonho é ser entrevistado por você”… Pessoas do Brasil. É a maldição do príncipe.

Você se diz uma pessoa namoradeira. O que aproxima duas pessoas? Ou o que te aproxima de outra pessoa? Beleza? Sexo é fundamental?
Beleza é o primeiro. E sexo é fundamental. O subtexto da beleza é sexo. O que está subjacente é sexo. Para mim, sempre foi. E, honestamente, acho que dificilmente alguém não presta atenção na aparência de alguém. Gente, a primeira coisa que eu vejo não é inteligência. Quando você entra em um lugar e olha, o que vê primeiro? É a imagem, a figura. A coisa que eu sempre vi primeiro foi a beleza. Agora, se essa beleza ia dar em alguma coisa, isso vinha depois. E namorei muito. Não escondo isso de ninguém. Você viu a foto que eu botei hoje no Instagram? Olha aqui (mostra foto), esse foi um dos meus namorados. Que tal? Um francês que as pessoas adoram. Ele era inteligente? Calhou de ser. Mas ele era liiiiiiiindo. Mas namorei demais. Tenho que admitir que nos dias de hoje não sinto falta. Gosto muito de viver sozinha, de ser dona de mim e ser dona do meu tempo de fato. Toda vez que me apaixonei, entrei de cabeça. Era à primeira vista e vamos em frente. Quando digo à primeira vista é porque, se não desse certo no primeiro dia, com tudo o que isso implica, é porque não ia funcionar. Então eu tive inúmeras relações. Algumas mais duradouras e importantes e outras menos. Sempre vivi irresponsavelmente feminista, sem saber. Sou criada bicho solto no interior. Sou aquela que teve uma mãe que morreu cedo. E sempre fui abrindo meus caminhos estabanadamente e de uma forma até agressiva. Em uma cidade como São Paulo, você tem que saber se defender.

Defender-se de que exatamente?
Ingo Ostrovsky (jornalista), saindo de uma reunião do Cara a Cara, me pegou uma vez e disse: “Gabi, você já prestou atenção no que acontece com você quando a gente se reúne? Você não percebe que os homens falam para você coisas que eles só falam entre si?”. É isso o que acontece. Coisa que eu confirmaria anos depois quando o Caio Graco (editor), da Brasiliense, me procurou. Fui almoçar com ele, e ele queria me convidar para escrever um livro sobre o mundo dos homens. Ele disse: “Você já percebeu que tem trânsito livre nesse universo?”. Então foi a não percepção de que invadia ou era aceita, entre aspas, nesse mundo dominado por homens que me deu essa força e essa consciência de que quem mandava em mim era eu. Eu nunca escrevi esse livro.

Essa consciência do meu espaço eu adquiri quando me cobraram se eu a tinha, porque eu simplesmente vivi como se fosse tudo igual, sem ter uma consciência política dessa posição. Vivi entre homens e a única coisa que eu reclamava era do meu salário. Quando percebi que meu salário era mais baixo, reclamei. Tanto que na TV Mulher eu era quem menos ganhava quando o programa estreou, nos anos 1980. E eu falava: mas como? Eu sou a mulher da TV Mulher e ganho menos do que os homens?”. Mas eu ia. E não havia nessa circunstância a preocupação política de que eu estava passando por uma real discriminação. Isso fui adquirindo com o tempo, com elucidação intelectual, com leituras, observação. Mas eu consegui um lugar foi assim, foi botando o pé na porta. E brigando pelo meu salário. Lembro das mulheres reclamando da Marta (Suplicy, senadora), de algo que nós todas tínhamos e que a Marta personificava, de falar de sexo. Falar sobre sexo de forma tão aberta. E foram as mulheres que saíram às ruas para reclamar dela. Então isso tudo eu fui aprendendo com o tempo. Mas eu não vou mentir para você, eu consegui na prática o que hoje se discute tanto em tese.

Você já ficou com mulher?
Nunca. Não por preconceito. Por uma questão de quê? Fisiológica? Não sei. E é engraçado que no tempo do Cara a Cara, quando me separei de meu marido, lembro de uma notícia de um cruel jornalista que deu uma manchete dizendo que eu tinha ido embora para a Europa com uma mulher. Li isso com surpresa. Nunca recebi pensão. Eu tenho consciência do que é ser livre, e a liberdade passa pelo autossustento, sempre fui essa mulher forte e grande. E sempre tive uma postura agressiva para me defender. E acho que esse perfil de mulher, que é o desta para a qual você está olhando, que bota o pé na porta e diz “eu existo e sou dona do meu nariz, eu não dependo de ninguém”, pode ter levado as pessoas a achar que, talvez, eu tivesse uma preferência se­xual diversa da que eu tenho. Nunca tive interesse. Eu sou doida por homem. Sempre fui.


Comentários

3 respostas para “Marília Gabriela: “Sou doida por homem, sempre fui””

  1. Deve ser genético mesmo… Dizem as “boas” línguas, que o filho dela também é doido por homens.

    1. Avatar de Paulo Cesar de Oliveira
      Paulo Cesar de Oliveira

      como vc é burro! o gostar dela é diferente

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