Memória em jogo

Casada com Augusto Boal por mais de 40 anos, Cecília Boal vive um grande dilema. Com a morte do dramaturgo em 2009, ela herdou um enorme acervo de documentos que carecem de cuidados urgentes. São mais de 20 mil textos, 300 horas de vídeo, 120 horas de áudio, mais de 2 mil fotografias, cromos, desenhos e uma volumosa correspondência mantida com amigos, como Chico Buarque – que dedicou a Boal o clássico Meu Caro Amigo -, a atriz Fernanda Montenegro e o mestre do conto Julio Cortázar. Preciosidades de grandes momentos históricos que podem parar nos Estados Unidos, acolhidas pela New York University – NYU, que manifestou interesse em receber os arquivos de Boal e, no começo de agosto, chegou a enviar um de seus diretores, Michael Nash, ao Rio de Janeiro, com o propósito de levar os documentos para a NYU. O ministro da Educação, Fernando Haddad, voluntariamente intercedeu e está empenhando esforços para acolher o acervo na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em missão urgente.

Fomos ao Rio conversar com Cecília sobre a polêmica, suas expectativas, e também falar de sua experiência ao lado desse importante intelectual que, desde o final dos anos 1950, quando ingressou no Teatro de Arena, foi um dos mais ativos pensadores das questões culturais e sociais do País. A obra de Boal se espalhou pelo mundo e o Teatro do Oprimido – método de transformação social pelo teatro criado por ele, inspirado nas experiências do amigo e educador Paulo Freire – foi disseminado em mais de 50 países, aplicado em instituições educacionais, psiquiátricas, prisionais e sindicais. Boal foi traduzido em mais de 70 países e, em 2008, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 2009, foi nomeado Embaixador do Teatro Mundial pela UNESCO. Ansiosa pela permanência do acervo do marido – que completaria 80 anos em 2011 – no Brasil, a ex-atriz e psicanalista Cecília aguarda um final feliz com a UFRJ, mas adverte: “Se daqui um ano as coisas estiverem indefinidas, é melhor mandar o acervo para qualquer País que pretenda cuidar adequadamente dele que perdê-lo”.

Brasileiros – Antes de entrarmos na polêmica do acervo, conte um pouco como era sua relação com Augusto, Cecília…
Cecília Boal – Conheci o Augusto em 1966. Ele já era um diretor respeitado, pois foi muito jovem trabalhar no Teatro de Arena. Ele se formou em Engenharia Química, nos Estados Unidos, estudou na School of Dramatics Arts, também em Colúmbia, e quando voltou ao Brasil foi convidado a dirigir o Teatro de Arena. Augusto trouxe novas ideias dos Estados Unidos, o método Stanislavski, o método do Actors Studio, e uma nova forma de escrever, muito mais naturalista. Alguns diretores argentinos conheceram o Augusto em um festival, viram os espetáculos dele, e o convidaram para fazer algumas direções em Buenos Aires. Ele enfrentava problemas políticos, por conta do Golpe de 1964, estava fazendo no Rio o espetáculo Opinião, com a Nara Leão, e achou ótima ideia sair um pouco do Brasil, dar um tempo por lá e ver o que acontecia. Aceitou ir para Buenos Aires e foi trabalhar com um grupo do qual eu fazia parte, em um teatro chamado IFT. Augusto precisava de atores para uma montagem dele, me viu no palco e me convidou para trabalharmos juntos.
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Brasileiros – E quando é que você veio para o Brasil?
C.B. – Em 1967, vim morar em São Paulo com ele e integrei o Teatro de Arena. Fizemos uma rápida viagem aos Estados Unidos, em 1971, e quando voltamos ao Rio, Augusto foi preso pelos militares. Saía de um ensaio quando foi sequestrado e desapareceu. Quando foi localizado e libertado, graças a muito esforço da família dele e à grande repercussão internacional, decidimos morar em Buenos Aires e ficamos durante cinco anos na Argentina. Foi lá que ele começou as experiências que o levaram ao Teatro do Oprimido. A situação na Argentina não podia estar pior. Por sorte, ele teve um convite para ir trabalhar em Portugal, o que coincidiu com a liberação do passaporte dele.

Brasileiros – Vocês também foram perseguidos na Argentina?
C.B. – Não chegamos a ser incomodados, mas muitos amigos argentinos desapareceram e alguns foram mortos. Nossa casa se transformou em uma espécie de núcleo de encontro de brasileiros exilados na Argentina e aconteceram coisas interessantes por lá, como a primeira leitura do Poema Sujo, do Ferreira Gullar. Frequentavam nossa casa Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Martinho da Vila. Fazíamos jantares semanais, com muita leitura de textos. Os leitores do primeiro encontro fomos eu e o Eduardo Galeano, que fez uma longa entrevista com o Boal, para aquela excelente revista que ele publicava chamada Crisis.

Brasileiros – Nesse tempo todo na Argentina Augusto viveu clandestinamente?
C.B. – Sim, até que, finalmente, o César Vieira, um advogado de São Paulo conseguiu a liberação do passaporte dele e pudemos ir para Portugal. Moramos dois anos lá e o Boal começou a ser convidado com frequência para o Festival de Teatro de Nancy, do Jack Lang. Entrou em contato com muita gente da França, e conheceu aquele que depois se tornaria seu editor, um grande intelectual ligado ao teatro e uma pessoa sensacional, o Emile Copfermann. Ele trabalhava na François Maspero, “a” editora da esquerda francesa na época, que publicou vários livros de Augusto e o tornou muito famoso no mundo inteiro. Ele começou a ser convidado para ir a muitos lugares, foi publicado em dezenas de países e foram criados centros do Teatro do Oprimido ao redor do mundo todo. Tem um centro de referência dele na França, e acabamos morando lá por oito, nove anos. Voltamos ao Rio em 1986, quando Augusto foi convidado por Darcy Ribeiro para fazer montagens com animadores culturais nos CIEPS.

Brasileiros – Você ainda acompanha a produção do Teatro do Oprimido?
C.B. – Não tenho tanta proximidade, mas sei que é algo que ainda é muito forte. Uma pesquisa rápida na internet revela que vários grupos ao redor do mundo continuam esse trabalho. Algumas pessoas que tiveram mais proximidade com Augusto conduzem o trabalho de forma mais séria, com o objetivo político do Teatro do Oprimido, mas também tem muita gente que tem utilizado o método como autoajuda e terapia, algo inevitável. Fazem o que bem entendem e não há muito como controlar. Lamento que o conteúdo político fique esvaziado, mas as pessoas podem utilizar o método para discutir problemas, como também podem simplesmente usar a força da palavra nas prisões, nas escolas, em instituições psiquiátricas e em sindicatos, como é muito recorrente na França.

Brasileiros – Como se desenrolou essa polêmica toda com relação ao destino do acervo?
C.B. – Tenho uma quantidade considerável de documentos, mas tem muita coisa dispersa pelo mundo. Augusto trabalhou em muitos lugares onde o Teatro do Oprimido foi levado, fez muitas entrevistas, e esse material está espalhado por aí. Os documentos que mantenho em um apartamento em Botafogo estão sob minha responsabilidade e de nosso filho, Fabian, que é cineasta e me alertou para o estrago que estava acontecendo. Começamos a nos preocupar, houve um momento que decidi escrever para as pessoas que podiam nos ajudar, e acionei um amigo americano para tentar conseguir recursos e fazer o restauro no Brasil. Uma amiga fez a estimativa de custo de R$ 500 mil e esse amigo repassou meu e-mail para diversas universidades. O apelo chegou à New York University – NYU, que foi parceira do Augusto, praticamente tanto tempo quanto eu. Augusto trabalhava todos os anos para eles e tem, inclusive, uma cátedra dedicada a ele e ao Teatro do Oprimido. A NYU tem um setor que pesquisa e difunde autores de esquerda, o Tamiment Library, cujo diretor, Michael Nash, esteve aqui e se dispôs a cuidar do acervo sem nenhum custo. Concluímos que Augusto estaria muito bem acolhido, bem tratado, em boa companhia, e acessível a todos, mas quando souberam que eu iria entregar tudo para os Estados Unidos, houve uma reação negativa que coincidiu com a vinda desse senhor. O dia que fui encontrá-lo, o ministro da Educação Fernando Haddad me telefonou e disse: “Cecília, acabo de voltar de viagem, fiquei sabendo do seu problema e queremos ajudá-la”. Uma semana antes, eu tinha falado com uma equipe da UFRJ que sempre foi muito atenciosa e simpática comigo. Eu disse ao Carlos Levi, reitor da UFRJ, que gostaria muito que a universidade recebesse o acervo, mas teria de ser criada uma infraestrutura que eles não têm.

Brasileiros – E qual foi a reação da NYU, quando disse a eles que não liberaria os documentos?
C.B. – Conversei com o Sérgio de Carvalho, da Companhia do Latão, que veio especialmente me acompanhar e fiquei pensando em como me explicar para esse senhor, vindo dos Estados Unidos exclusivamente para buscar esses documentos, que eu não poderia entregar as coisas para ele. Falo péssimo inglês, Sérgio também é um desastre, Nash não entende nada de português, e mostrei a ele uma matéria do O Globo, com a repercussão da polêmica. Também concordo que um país não tem de entregar as coisas que lhe pertencem e fico feliz de saber que o Brasil vai reunir esforços para conseguir manter o acervo desse seu importante intelectual. Sei que estão empenhados para desenrolar tudo em menor tempo, e pedi ao senhor Nash para aguardar e não se preocupar, pois quem tinha de se preocupar éramos nós. As tratativas com UFRJ estão em andamento, o ministro Haddad ligou para o Levi e fomos ao encontro dele, acompanhados do senhor Nash. Foi uma reunião muito agradável e torço para chegarmos a uma conclusão rápida.

Brasileiros – A UniRio, que ficou um período com o acervo, alega que terá condições de recebê-lo no final de 2012. Não é possível aguardar esse prazo?
C.B. – Não sei bem o que aconteceu na UniRio, sei que expliquei que eu já estava tratando tudo com a UFRJ e retirei o acervo de lá porque não foram criadas as condições necessárias para acolher os documentos. É muito caro manter adequadamente um acervo, pois cada tipo de documento requer um tratamento diferente. Disse ao jornal O Globo e torno a dizer: entendo que o Brasil não tenha pautado como prioridade a preocupação de manter os acervos de seus artistas, pois na América Latina inteira acontece o mesmo, e não quero nem pensar no que acontece na África, pois é algo muito triste. Particularmente no Brasil, acho importante uma mudança de mentalidade. O País deixou de ser um país pobre. A Argentina, por exemplo, não consegue sair da crise e não pode elencar isso como prioridade. Meu desejo, na verdade, é que fosse construído um centro de memória que pudesse reunir outros artistas também, não só o Boal.

Brasileiros – E a quantas andam as iniciativas da UFRJ? Há também o interesse deles em mapear o material disperso ao redor do mundo?
C.B. – Acho que a UFRJ tem outras possibilidades. Empresas que apoiam pesquisas, como a Petrobras, poderiam financiar o projeto. A NYU apoiou muito bem a ideia de que as coisas fiquem no Brasil. Em momento algum tiveram a atitude mesquinha de não compreender a importância da manutenção desses documentos por aqui. Quando for criado um núcleo, vamos articular ações entre a UFRJ, eu e a NYU, para identificar esses documentos, fazer pontes para tentar trazê-los de volta e, em troca, fazer a digitalização e permitir o acesso a esses materiais.

Brasileiros – Você arriscaria impor um prazo? Até quando vai aguardar um desfecho?
C.B. – A resposta tem de ser breve. A UFRJ está muito bem-intencionada e já tem, inclusive, um local na praia Vermelha, que ainda precisa de reforma. O projeto envolve gente jovem e entusiasmada não só com a obra do Boal, mas com a própria vida. Acho que o Sérgio de Carvalho tem sido como um anjo da guarda do Boal. Foi ele quem me colocou em contato com a UFRJ. Terei sim de determinar um prazo. Se daqui um ano as coisas estiverem indefinidas, é melhor mandar o acervo para qualquer país que pretenda cuidar adequadamente dele que perdê-lo. Pode ser os Estados Unidos, o Japão, a Alemanha, a China e até a Argentina. Quando começaram a se incomodar com essa hipótese de eu mandar tudo para a NYU, cheguei a brincar com alguns amigos: “Se essa indefinição persistir, mando tudo para Buenos Aires!”. Uma provocação, é lógico, pois o que queremos mesmo é que o acervo fique aqui e que esses documentos estejam acessíveis não só aos brasileiros, mas a todos os interessados ao redor do mundo.


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