Em Os Sonhos que Alimentam a Vida, a autobiografia do ex-deputado, ex-ministro da Justiça e ex-embaixador José Gregori, 69 anos, existe, antes de tudo, um traço de elegância. Mesmo tendo participado de perto de grande parte dos fatos que fizeram a história recente do Brasil, Gregori se coloca, quase o tempo todo, como coadjuvante. Cabe ao leitor avaliar o tamanho do papel desempenhado pelo autor em cada episódio. É um belo contraponto aos autocentrados depoimentos de muitas das testemunhas oculares da nossa história.
O livro também revela outra característica pessoal de Gregori: a valorização da amizade. Bem sabemos que o mundo da política tem seu léxico próprio. Nele, a palavra “amigo” define o aliado – ocasional ou mais duradouro. No caso de Gregori, aqueles a quem chama de amigos são, de fato, os seus amigos. Gente a quem se confia segredos, de quem se compartilha o cotidiano, com quem se divide a mesa da copa.
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Assim, o livro faz menção a um bilhete de Fernando Henrique Cardoso desabafando um inconfessável cansaço (ao menos para o FHC público) e contém trechos que denotam uma quase devoção a San Tiago Dantas, que teve mais de três décadas de forte atuação na vida política. Amigos, sempre. Mas nem só de amigos vive a obra. Gregori é capaz de descrever, com inesperada e serena franqueza, o que poderiam ser contradições de sua biografia. Na juventude, ele aproximou-se (com reservas, como fica claro) do antigetulismo de Carlos Lacerda – a ponto de proferir discursos a favor de uma ruptura com as instituições democráticas. Mais tarde, aceitou um cargo importante no ministério de Fernando Collor de Mello, o de chefe de gabinete do ministro da Fazenda, Marcílio Marques Moreira.
Marcílio sucedeu Zélia Cardoso de Mello, em um dos momentos mais complicados do Brasil pós-ditadura, em meio a uma tentativa do governo Collor – já sob suspeitas robustas de corrupção e desmandos – de montar uma equipe de notáveis para se segurar e segurar o Brasil. Um desafio-gincana, que Gregori assumiu. Não sem antes consultar os amigos.
Gregori faz uma narrativa basicamente cronológica, em que uma ou outra abordagem fora da linha do
tempo compõe uma leitura pessoal da história do Brasil contemporâneo. Ele não se furta a mesclar as lembranças do poder com memórias afetivas. A morte do pai, assassinado estupidamente quando ele tinha apenas nove anos, é abordada logo no início da leitura. Deixou uma marca profunda. Mas é contada sem autocomiseração.
Muitas vezes, José Gregori esteve com personagens cruciais da vida brasileira. Guardou sobre um deles: “Não revelava qualquer intenção de, em qualquer assunto, abrir mão de dar a última palavra entre seus companheiros, sindicalistas ou intelectuais”. O personagem é Lula, ainda nos tempos do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Os anos mostram que o então líder operário já sabia tudo sobre dar a última palavra.
A ABSURDA AGRESSÃO AO PRÊMIO NOBEL DA PAZ
“Houve também, em 1979, a detenção, pela Polícia Federal, do Prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Pérez Esquivel. Ele ia iniciar uma conferência pública, no auditório do Colégio Sion, em Higienópolis, quando foi detido por agentes federais e levado à força para fora do recinto. Insurgi-me contra a detenção e, totalmente transtornado, agarrei-me a Esquivel e disse aos policiais que ele só sairia dali comigo. Estabeleceu-se o impasse, e os agentes pediram instruções ao delegado-chefe, pelo rádio da viatura policial. Por fim, fomos todos – Esquivel, eu e o advogado Mário Carvalho de Jesus, da Frente Nacional do Trabalho, além dos agentes – para a antiga sede da Polícia Federal, na Rua Antônio de Godói, no centro da cidade. Todos apinhados num minúsculo Fiat.”
MISSÃO: CONVENCER FHC A ALÇAR VOOS MAIS ALTOS
“Ainda guardo na memória a expressão de surpresa de Fernando Henrique: “Quem? Eu?”. E tentou justificar-se: “Vocês estão fora do juízo. Meu papel é outro: é fornecer ideias, embasamento a projetos políticos e não fazer política”. Porém criou-se consenso em torno da ideia de lançá-lo candidato ao Senado e coube a mim insistir para que aceitasse sua indicação.”
AS MARCAS CANINAS DA CONSTITUIÇÃO
“O principal assessor do deputado Ulysses Guimarães na Constituinte era o jurista Miguel Reale Jr., com quem me encontrava diariamente. Houve um fato pitoresco. Logo depois de promulgada a Carta Magna, os três primeiros exemplares foram entregues ao Presidente Sarney, ao doutor Ulysses e a Reale Jr. O jurista foi almoçar em minha casa, especialmente para mostrar-me o histórico exemplar da Constituição, que lhe fora presenteado pelo doutor Ulysses, com bela e merecida dedicatória. Naquela época, tínhamos um cachorro da raça beagle, desses que roem até trinco de porta. Num determinado momento, Maria Helena e eu vimos, perplexos, o jurista largar o garfo e mergulhar, como se fosse um goleiro, para tirar da boca do beagle o “livrinho”, que era como o presidente Dutra chamava carinhosamente a Constituição. Até hoje guardo a visão daquele exemplar do texto constitucional, com a histórica marca dos dentes de meu cachorro. A prova, ou a esperança, talvez, de que a nossa Constituição resistiria aos ataques mais surpreendentes.”
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