Ele deixou Humaitá, no Amazonas, para estudar Direito em São Paulo e conhecer os poetas. Ainda na faculdade, envolveu-se com a política e as posições progressistas dos anos 1950. Precoce, aos 28 anos, foi deputado federal pelo Amazonas. Aos 33, ministro do Trabalho e Previdência Social do governo João Goulart. Viveu um período conturbado da história e participou de episódios marcantes, o que o obrigou a 12 anos de exílio. De volta ao Brasil, envolveu-se na luta pela redemocratização e foi vice-governador de São Paulo. Aos 80 anos, é assessor do governador José Serra e escreve três livros.
No confortável apartamento alugado no bairro de Alto de Pinheiros, em São Paulo, decorado com inúmeras fotos da mulher, Lygia, com quem viveu 50 anos, Almino conversou longamente, enquanto sua assistente, Fátima, trazia sucos gelados. À beira da aposentadoria como advogado trabalhista, o orador brilhante, narrou quase 60 anos de atuação política. Quando Fátima despediu-se, Almino perguntou se ela ia de carona com um amigo ou de ônibus. A assistente respondeu que preferia ir de ônibus. Almino comentou: “É mais fácil seguir devagar do que correr e cair no buraco”. Foi essa a escolha que o ex-ministro fez na própria vida. Ele guarda só uma grande frustração: não ter se tornado o poeta que sonhava ser, ainda em Humaitá.
Brasileiros – O senhor é de Manaus?
Almino Affonso – Nasci em Humaitá, cidade próxima do Rio Madeira, o mais belo afluente do Amazonas. Meu avô materno, comendador José Francisco Monteiro, foi quem fundou a cidade e até escolheu o nome dela, em homenagem à Batalha de Humaitá, na Guerra do Paraguai.
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Brasileiros – O seu outro avô, o primeiro Almino Affonso, é nome de uma cidade no Rio Grande do Norte.
A.A. – Ele nasceu num vilarejo chamado Patu de Dentro. Mas seu nome está consagrado em outro lugar, numa cidade perto de Mossoró, onde se deu a libertação dos escravos. Eu me chamo Almino em razão desse meu avô. Era rio-grandense-do-norte, um extraordinário líder abolicionista. Teve participação brilhante na luta pela libertação dos escravos no Rio Grande do Norte, no Ceará e no Amazonas. Veio de uma origem modestíssima no sertão. Aos oito anos, órfão de pai, educou-se com um tio português. Aprendeu latim com 10, 11 anos. Dava aulas de latim no sertão, depois formou-se advogado no Recife.
Brasileiros – Qual foi a participação dele na Abolição?
A.A. – A primeira cidade a libertar os escravos foi Acarape, no Ceará, em 1881. Meu avô era uma das lideranças, ao lado de José do Patrocínio e outros idealistas. A segunda cidade a ter os negros libertados foi Fortaleza, no ano seguinte. Lá estava meu avô. Depois foi no Rio Grande do Norte, em Mossoró, em 30 de setembro de 1883, cinco anos antes da Lei Áurea.
Brasileiros – Por que ele foi para o Amazonas?
A.A. – A luta pela Abolição contrariou interesses, claro. Houve represálias e ele teve de deixar o Ceará. Era advogado, excelente orador. Com a contribuição dele, houve a libertação dos escravos, no Amazonas, em 1884. A Abolição foi a causa mais bonita do século XIX. Quando a República veio, ele foi deputado constituinte. Participou da primeira Constituição. Depois, foi eleito senador. Morreu aos 58 anos, que na época parecia uma idade longeva.
Brasileiros – Um avô construiu uma cidade e o outro deu nome a outra.
A.A. – Confesso que tudo isso me fascina. É do meu avô paterno, na elaboração da Constituição, uma emenda ao projeto que estabelece a igualdade entre os cidadãos. O que hoje se comemora como decisão igualitária é uma norma aprovada na Constituição de 1891. Uma dessas coisas brasileiras que não se pesquisa.
Brasileiros – Com que idade o senhor veio para São Paulo estudar Direito?
A.A. – Vinte. Foi em 1950. Já havia cursado o primeiro ano em Manaus, mas tinha um fascínio em cursar a Faculdade do Largo de São Francisco. Havia outra coisa pitoresca. Eu tinha sedução em ser poeta e os grandes, como Castro Alves e Álvares de Azevedo, poetas românticos, foram alunos no Largo de São Francisco. A faculdade de Direito, sim; a luta nacionalista, também. Mas o que me empurrou na vinda do Amazonas foi a possibilidade de conviver com grande poetas. Coloquei em risco um namoro de dois anos. Lygia teve a grandeza de aceitar o pacto: eu vinha, ela ficava. Durante quase sete anos só nos vimos três vezes. Namoramos por cartas. Foram trezentas.
Brasileiros – E a chegada a São Paulo?
A.A. – Voei pelo Correio Aéreo Nacional. Ao chegar, me levaram para um hotel muito modesto por eu ter poucos recursos: o Tiradentes, na frente da Estação da Luz. Ainda existe. Foi quando conheci percevejos… Depois de dois dias, um amigo me levou para uma pensão de estudantes.
Brasileiros – O senhor já estava envolvido com política?
A.A. – Fui me entrosando nas lutas estudantis. Duas teses dividiam a opinião pública: a nacionalista, que resultou na Petrobras; e a favorável à entrada do capital estrangeiro, a dos vendedores da pátria. Eu já vinha com a ideia nacionalista. Em Manaus, lutava pelo monopólio do petróleo.
Brasileiros – Foi dura a vida de estudante?
A.A. – Durante o curso, eu era datilógrafo e dava aulas de História na Escola de Comércio Santos Dumont, que ainda existe no bairro do Belenzinho. Estudava à noite. No quarto ano, entrei num escritório de advocacia. Era o que chamamos hoje de estágio. Terminei o curso em 1953 e fui o orador da turma. Não consegui ser um brilhante advogado, a carreira política me era mais evidente. Mas não fui um advogado medíocre.
Brasileiros – Como começou a carreira política?
A.A. – Acabei me integrando aos grupos nacionalistas. Fui eleito presidente da União Estadual dos Estudantes e tive contato com figuras como Fernando Gasparian, que foi um grande deputado federal, depois fundou a Editora Paz e Terra e o jornal Opinião, de oposição real à ditadura; Rubens Paiva, torturado e morto pela ditadura; e Adriano Murgel Branco, companheiro de luta da União Nacional dos Estudantes, uma figura admirável.
Brasileiros – A que partido o senhor se afiliou?
A.A. – Entrei no Partido Socialista Brasileiro em 1954. Tinha a visão do socialismo democrático, que era a diferença entre nós e os militantes comunistas. Embora na visão da imprensa fôssemos todos comunas (risos). Eu era e continuo sendo uma pessoa com visão socialista. Mas é bom lembrar que havia uma luta conjunta com os comunistas pelo monopólio estatal do petróleo, pela reforma agrária, Eletrobrás… Em 1955, houve eleições para presidente. Fui candidato a vereador, tive quase 800 votos, perdi por pouco. Até hoje me orgulho desses 800 votos…
Brasileiros – E o namoro de sete anos?
A.A. – Em 1956, ganhei uma causa importante do ponto de vista profissional e de honorários e pude casar com minha Lygia. No ano seguinte, tivemos o primeiro filho, o Rui, hoje professor de economia e diretor da Sabesp, e em 1958 se deu a convocação dos amigos de Manaus para que eu disputasse uma vaga de deputado federal. Em três meses de campanha, me elegi, com votos só da capital. Meus parentes e amigos de Humaitá já estavam comprometidos com outra candidatura. Mesmo assim me deram 20 votos (risos).
Brasileiros – Um deputado federal bem jovem, não?
A.A. – Eu tinha 28 anos. Levei a família para o Rio. Em 1959, nasceu meu segundo filho, o Sérgio Britto, músico e compositor dos Titãs. No primeiro momento, fiquei impactado com a grandeza da Câmara Federal, com homens públicos como San Tiago Dantas e Carlos Lacerda, que, mesmo sendo adversário, tenho de reconhecer, era a maior figura da época. E eu, um rapazola, rompi gradualmente essa barreira de grandes oradores, subi à tribuna e fui ouvido.
Brasileiros – Já era então um bom orador?
A.A. – Modéstia à parte. O respeito à palavra é o silêncio. Subir na tribuna com aquele mundo de gente das mais diferentes tendências e conseguir com que o plenário ouça em silêncio é o maior trunfo do orador. Graças a Deus, consegui.
Brasileiros – Em seguida, a Câmara foi transferida para Brasília.
A.A. – Viajei com a família no Fusca, que era todo o meu patrimônio.
Brasileiros – Como foi a adaptação?
A.A. – Cidade nova. Chegava em casa banhado de uma cor vermelha, da poeira, como se estivesse sangrando. No início foi bom, mas veio a crise política, quando eu era líder do Partido Trabalhista Brasileiro, da oposição. Aconteceu a renúncia de Jânio Quadros. Minha tese era a de que houve tentativa de golpe e não mera renúncia. A posse do vice-presidente, João Goulart foi vetada. Estivemos à beira de uma guerra civil.
Brasileiros – A saída foi o sistema parlamentarista.
A.A. – Sim, com o ministro Tancredo Neves como o primeiro-ministro. Exerci uma forte liderança contrária a isso. Eu chamava a saída para o parlamentarismo de “golpe branco” – embora fosse e ainda seja um parlamentarista. Naquela situação, a Constituição proibia uma reforma institucional. Portanto, era um golpe. Mas venceu a tese do parlamentarismo. Esse regime político durou pouco. Caiu o gabinete Tancredo e começou um período de conflito. O senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso, foi indicado para primeiro-ministro. Fui contra. Queríamos um ministério comprometido com as reformas sociais. O Moura Andrade, não. Fui ao presidente João Goulart e manifestei-me frontalmente contra o nome de Moura Andrade. O presidente argumentou que o senador se comprometia com um acordo para nomear os ministros militares e, também, com a antecipação do plebiscito para decidir entre parlamentarismo e presidencialismo. “Está vendo, Almino? Com ele assumindo como primeiro-ministro teremos o poder militar conosco e, ainda, a consulta popular.” Afirmei ao presidente que Moura Andrade não iria honrar o compromisso. E Jango, que usava a palavra tu, perguntou: “Por que tu achas isso?”. Respondi: “A posição dele é contrária… O grupo que o apoia é da UDN e do PSD. Ele diz isso ao senhor e o trai amanhã”. O presidente abriu a gaveta e mostrou-me uma carta de Moura Andrade, sem data, renunciando ao cargo de primeiro-ministro. Portanto, se Moura Andrade não cumprisse o combinado, o presidente poderia datar a carta e apresentar a renúncia do senador como primeiro-ministro. Afirmei: “Presidente, agora é que lutarei e votarei contra. Como é que um cidadão pode ser primeiro-ministro e ter uma atitude dessa, tão acovardada?”. Pois bem, Moura Andrade teve o nome aprovado como primeiro-ministro e deu-se início às negociações para a composição do ministério. Eu estava sozinho no plenário e tocou o telefone. Era o presidente Jango, que perguntou: “Almino, tu como líder do PTB, tem condição de falar a qualquer instante?”. Respondi que sim, desde que fosse um questão de relevância. “Pois então, Almino, pede a palavra e anuncia que o Moura Andrade renunciou. Tu não te lembra da carta? Pois é, eu a datei; logo ele renunciou.” Jango soube que Moura Andrade já tinha os nomes dos ministros militares definidos, sem consultá-lo, atitude de uma pobreza moral e ética incrível. E o presidente precisava de ministros militares de sua confiança para ter a certeza de que não seria deposto… Jango me disse: “Se nem no começo, ele cumpre…”. Eu, como líder de partido, e apesar e ser jovem, era respeitado e fui à tribuna. Em dez minutos, o plenário lotou e anunciei a renúncia do Moura Andrade como primeiro-ministro.
Brasileiros – Se o senhor fosse jornalista seria um furo de reportagem.
A.A. – Absoluto. Moura Andrade nunca mais falou comigo ou me estendeu a mão. Em seu livro de memórias, não teve a coragem de contar o que eu estou contando. Bem, sigamos. Continuou a luta do parlamentarismo. Com a queda do Andrade, foi indicado o San Tiago Dantas, do PTB. Uma pena que o presidente não tenha dado a ele o apoio que merecia. Foi um grande erro político. San Tiago tinha uma cabeça privilegiada e era muito equilibrado, apesar de uma história tendendo para o conservador. O presidente indicou o jurista Brochado da Rocha. Era gaúcho e amigo dele. E amigo, também, do Brizola; e o Brizola era uma liderança que se contrapunha ao Jango em questões delicadas. O professor ficou no cargo dois meses, de relógio. Daí, nova crise. Podia-se supor que estávamos à beira de uma convulsão militar e civil para exigir que o Congresso antecipasse a convocação do plebiscito. Sem essa antecipação, corria-se o risco da liderança do Brizola, que visava fechar tudo. Um golpe de Estado. Brizola comentava com figuras próximas que teria o apoio de João Goulart. Ao mesmo tempo, dizia: “Faremos isso com Jango ou sem Jango”.
Brasileiros – A situação se tornava cada vez mais complicada.
A.A. – Bateu insegurança no equilíbrio do comando militar. Tornou-se necessário para o presidente tirar o ministro da Guerra, Nelson de Melo. Com as nuvens prenunciando tempestade, Jango me chamou por volta da meia-noite e disse que estava me incumbindo de uma tarefa difícil. Pediu que visitasse, ainda naquela madrugada, todas as lideranças para saber a opinião a respeito da carta do comandante do Terceiro Exército, Jair Dantas Ribeiro. A tal carta afirmava que, se não houvesse convocação do plebiscito sobre o parlamentarismo, ele não iria garantir a tranquilidade do setor. Fui de apartamento em apartamento, até as sete da manhã. Depois, cheguei à Granja do Torto e relatei ao presidente o que ouvi. Ele ficou mais preocupado pelo fato de ninguém ter se surpreendido com a carta. Na outra tarde, o presidente chamou o primeiro-ministro Brochado da Rocha e pediu que renunciasse, pois, dessa maneira, cairia todo o ministério e, assim, seria possível trocar o ministro da Guerra.
Brasileiros – O Jango sabia jogar politicamente?
A.A. – Muito bem. Poucos saberiam jogar tão bem. Alguns diziam que ele era um débil. Débil coisa nenhuma! Dá até vontade de dizer um palavrão. Ele tinha um cunhado, o Brizola, que tumultuava… A esse respeito, não conto metade do que sei, pois tenho alguns deveres de silêncio… Enfim, foi aprovado o nome do professor Hermes Lima para primeiro-ministro. A essa fase chamo de “velório do parlamentarismo”. Logo depois, restaurou-se o presidencialismo. E, em plenos poderes, em janeiro de 1963, o presidente me convocou para ministro do Trabalho.
Brasileiros – Jango foi ministro do Trabalho, do último governo Vargas, com 34 anos. E o senhor?
A.A. – Eu tinha 33. Esse período presidencialista durou um ano e três meses. O rebojo foi crescendo até vir o golpe, com a absoluta impossibilidade de o presidente reagir. Quando começou o rebojo da tropa do general Mourão Filho, que veio em marcha sobre o Rio de Janeiro, o Jango decidiu ir a Porto Alegre, com a ideia de montar o governo lá, com apoio militar. Então, soube que não contava com o apoio do Primeiro, do Segundo e do Quarto Exércitos. O general Ladário Teles, do Terceiro Exército, permaneceu fiel. O Oswaldo Lima, então ministro da Agricultura, cita que o general Ladário teve a grandeza humana de dizer: “Presidente, autorize-me a resistir com a tropa que eu tiver para que eu possa lavar, se necessário, com sangue a honra da farda brasileira”. O Brizola, afoito, pediu: “Presidente, me nomeie ministro da Justiça para eu organizar…”. Não havia condição nenhuma. O Jango disse não: “Em nenhuma hipótese a minha manutenção no governo será feita com o sangue do povo. Não autorizo ninguém a falar em meu nome”. Apesar de tudo, Jango cumpriu seu papel. Nenhum presidente defendeu tanto a Reforma Agrária, embora fosse latifundiário. Na última mensagem ao Congresso, ele sugeriu um plebiscito sobre a Reforma Agrária. Para se ter uma ideia, existia uma norma na Constituição que obrigava pagamento prévio e em dinheiro para se desapropriar terras.
Brasileiros – O exílio do senhor se deu de que forma?
A.A. – O clima era de completa insegurança. Com Arraes preso, Paulo Freire preso, o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, preso… O quadro apontava que eu seria preso também. Recebi uma mensagem do presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, avisando que os militares iriam prender a mim e ao Francisco Julião. Dizia ele que não tinha condições, àquela altura, de impedir. Então, um grande amigo meu, Rubens Paiva, em companhia de Bocaiúva Cunha, grande deputado estadual do Rio, resolvem me levar para o sertão da Bahia. Saímos do aeroporto de Brasília numa avioneta, cercados por tanques. Conseguimos furar aquela parafernália e decolar para a Bahia. Pousamos no aeroclube, nas barbas dos militares, que estavam no Aeroporto 2 de Julho. Fiquei alguns dias na fazenda do sogro do Bocaiúva Cunha.
Brasileiros – A família sabia onde o senhor estava?
A.A. – Não. Resolvemos voltar no mesmo esquema à Brasília. Mas chegou a notícia do Ato Institucional número 1 e, logo em seguida, a cassação do meu mandato. Não tinha mais o que fazer. Antes, recebi uma visita de San Tiago Dantas que me disse: “Almino, homem público que se preza não deve deixar-se prender, opte pelo exílio. Você é jovem”. Mas disse algo em que errou: “O quadro atual pode demorar uns dois anos. Você vai arejar a cabeça, ver coisas que aqui dentro não vê, vai fazer bem para você”. Ele era um homem de autoridade intelectual que eu respeitava. Tenho muita coisa boa para contar sobre San Tiago. Você vai ler num livro que estou escrevendo.
Brasileiros – Era o que faltava para o senhor tomar a decisão?
A.A. – Sim. Mandei avisar minha mulher. Fui para a Embaixada da Iugoslávia. Estávamos em Brasília havia pouco tempo. A administração pública continuava toda no Rio. As embaixadas, também. O que tínhamos em Brasília eram as embaixadas dos Estados Unidos, que havia participado do golpe, e a da França que tem a figura do asilo territorial, e não a do asilo diplomático. Recém inaugurada pelo Marechal Tito, a Embaixada da Iugoslávia, concedia asilo diplomático. Chegando lá, verificamos que não tinha nada dentro, nem uma cadeira. Era só a beleza do prédio, aguardando para ser mobiliado. O embaixador disse que cabia a ele o dever de nos atender. O simples pedido de asilo obrigava a Iugoslávia a aceitá-lo. Não é lindo? Naquela mesma noite fomos para a embaixada. Éramos uns vinte. Lá, estavam Bocaiúva Cunha, Raul Riff, Fernando Santana. Dormimos todos no chão, até que nossas famílias providenciassem camas de vento. O Ato número 1 se deu em 9 de abril, e só em 22 de junho recebemos a autorização para sair do Brasil, com salvo-conduto. Fomos para o Rio e de lá para um navio cargueiro, o Bohiny. Após mais de um mês no mar, nos receberam com enorme fidalguia.
Brasileiros – Quanto tempo o senhor ficou na Iugoslávia?
A.A. – Pouco, pois os companheiros já estavam no Uruguai: João Goulart, Darcy Ribeiro, Leonel Brizola, Darci Passos. Com documentos vencidos, entrei no Uruguai. Com base no fato de os documentos terem expirado, o governo do Uruguai resolveu me expulsar, com pressão do governo brasileiro. O Uruguai vinha de tradições democráticas, não podia ter acontecido aquilo. Não me lembro do nome inteiro do cidadão, sei que era Terrera, ministro Terrera, que me disse: “O senhor entrou no país irregularmente, não podemos conceder o asilo”. Perguntei: “Senhor ministro, o senhor alguma vez viu um sujeito perseguido politicamente atravessar a fronteira com os documentos em ordem? Por isso, estou pedindo a proteção do governo uruguaio”. No que ele, rispidamente, respondeu: “Eu não convidei o senhor para discutir as normas do Tratado de Caracas”. Retruquei: “Só estou dizendo o quanto é abusiva a condição imposta pelo governo uruguaio”. E ficamos discutindo: “Nós não o mandaremos para o Brasil. O senhor vai para a Iugoslávia”. O diálogo continuou:
– Eu não aceito.
– Mas nós pagaremos a passagem.
– O senhor guarde a passagem. O que o senhor está tentando fazer é o que a Inglaterra fez com o Napoleão, ao mandá-lo para a Ilha de Santa Helena. Com uma diferença essencial: eu não sou Napoleão. Não aceito.
– O senhor faça como achar melhor. No momento oportuno, o governo tomará as providências necessárias.
Brasileiros – O que foi feito?
A.A. – Fui para casa. Minha mulher, arrasada. Ela tinha ido passar o Natal comigo. Eu era mantido com doações de amigos, dezenas de amigos. Levei um ano e seis meses mantidos, eu e minha família, por doações mensais. Nem sei o nome de todos. Fui ministro e saí de Brasília dignamente pobre. Reuni os amigos em casa: Waldir Pires, Darcy Ribeiro e tantos outros para discutirmos o que fazer. Darcy teve a ideia de entrar em contato com Eduardo Galeano, futuro escritor, jovem jornalista brilhante do jornal Época. O jornal passou a defender minha permanência no Uruguai. Saiu na capa uma foto minha com a família e a manchete “Uma família inteira por trigo”. Ou o governo uruguaio me expulsava ou o Brasil não compraria mais trigo do Uruguai. Com a campanha do Galeano no jornal, os universitários, intelectuais e trabalhadores saíram às ruas em meu apoio. Mais tarde me emocionei com o livro de Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América Latina. Devo muito a ele. Consegui recentemente o telefone dele para agradecer.
Brasileiros – Como ficou a sua situação?
A.A. – Neste ínterim, houve o contato com o poeta Thiago de Mello, adido cultural do Brasil no Chile. Ele, caboclo amazonense como eu, bateu às portas da hierarquia chilena. O governo chileno me mandou um salvo-conduto. E quem me entrega esse salvo-conduto? Um chileno passava pelo Uruguai, de férias. Toca o telefone e ele me diz: “Senhor Affonso, aqui é Pablo Neruda e eu lhe trago uma correspondência”. Desconfiei. Disse que não estava ali para trote, pois passava por uma situação complicada. Aí, ele citou Thiago de Mello e tudo foi se esclarecendo. Encontrei-me com Neruda, li o salvo-conduto e recebi 200 dólares que meus amigos próximos a San Tiago enviavam. Houve muitos gestos de grandeza humana que a gente não esquece.
Brasileiros – Como foi no Chile?
A.A. – Segui sem a família, pois ainda não tinha condições de mantê-la. Fui indicado a consultor da Organização das Nações Unidas, na área do Trabalho, ganhando 2,5 mil dólares. Com ótimo salário, passaporte liberado, direito a importar carro, usar placa da ONU. Mandei buscar Lygia e os quatro filhos. Vivi oito anos áureos do ponto de vista da relação familiar, pude namorar, viajar…
Brasileiros – Continuou havendo relacionamento com Pablo Neruda?
A.A. – Várias vezes, na companhia de Thiago de Mello, o visitamos em sua casa, em Isla Negra. Também em restaurantes. Neruda, gentil, fazia questão de pagar a conta, mas todo o mundo sabia que ninguém descontava o cheque, guardavam como honra.
Brasileiros – O senhor saiu de Manaus pelo sonho de ser poeta e depois foi salvo pelos poetas Pablo Neruda e Thiago de Mello e pelo escritor Eduardo Galeano. De certa maneira, foi salvo pela literatura.
A.A. – Bonita associação. Nunca tinha me ocorrido. Mas eu diria que outras coisas também me salvaram, coisas extremamente comovedoras. No ano passado completei 80 anos, e houve uma festa para 350 pessoas. Não gastei um tostão, pois fui homenageado… Só amigos. O meu discurso foi o da gratidão. Sou comprometido com o dever da gratidão.
Brasileiros – Quantos anos de exílio?
A.A. – No total, doze. Com o golpe do Pinochet, fui para o Peru. Em menos de um ano, caiu a ditadura militar na Argentina e assumiu o Perón. Meus filhos precisavam se preparar para a universidade e fui para lá. Outra vez com documentos vencidos (risos). Na Argentina, mandei buscar a família para passar um mês de férias. Eu era diretor da Escola de Ciência Política da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Morreu Perón. Aí, veio outro período de convulsão.
Brasileiros – Quando o senhor retornou ao Brasil, teve problemas com a polícia?
A.A. – Voltei em de agosto de 1976. No primeiro momento, tive problemas com a polícia. Voltei sem nenhum conchavo. Já estava cansado de ver a brutalidade na Argentina. No quarteirão em que eu morava, já tinham morrido o general Prates, do Chile; o Torres, ex-presidente da Bolívia, duas lideranças do Uruguai, que foram arrancadas do hotel e assassinadas. Pensei: “Se tiver de ser morto, que seja no Brasil”.
Brasileiros – Dessa vez, a documentação estava em dia?
A.A. – Eu não tinha passaporte. Pedi salvo-conduto. O governo brasileiro não consentiu. Havia e há uma possibilidade de viajar entre o Brasil e a Argentina usando só a carteira de identidade, e eu também não tinha. Mas tinha a de advogado e ela tem valor de identidade. Fui ao embaixador do Brasil na Argentina. Pedi ao embaixador, por escrito, que informasse que a carteira tinha valor de identidade. Ele disse que não podia, mas afirmou: “Compre a passagem e, se na hora não o deixarem embarcar, diga com firmeza que essa carteira tem valor jurídico de identidade no Brasil. Se duvidarem, ligue para mim na frente deles”. Deu certo. Meu coração batia como um tambor quando recebi a passagem.
Brasileiros – E a chegada a São Paulo?
A.A. – Fui recebido pela alta corte do serviço militar, do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, do DOPS, tudo… Para me homenagear, com certeza (risos). Para minha alegria, uns 200 amigos estavam lá. Este cidadão que hoje é senador da República, o Tuma, era chefe do DOPS. Na fila do passaporte, ele me convidou para acompanhá-lo. Nisso, surgiu uma figura altiva. Era o doutor Adib Janete. Ele se aproximou e disse que representava o comandante do Segundo Exército, Dilermando Gomes Monteiro, que garantiu que não iriam me fazer nada fisicamente. O Adib, meu dileto amigo, ali, representando o alto comando do Exército. Em que mundo estou? Explicação: o Jatene tinha sido o cirurgião do comandante, que ficou em dívida com o médico que salvou sua vida.
Brasileiros – Como foi o interrogatório?
A.A. – Fiquei numa saleta e colocaram o Adib numa saleta ao lado. Porta entreaberta para que ele visse que não estavam me torturando. Durante quatro horas e meia me interrogaram da maneira mais boba. As várias agências militares fizeram de todas as perguntas. Aí, veio o Tuma e perguntou: “O senhor acredita em Deus? É católico?”. Respondi: “Sou de formação católica, meus pais eram católicos, me criei em colégios católicos, mas hoje eu não sei se tenho o direito de dizer que sou católico. Tenho uma visão ecumênica, creio em Deus e acho que todas as religiões respondem a esta parte”. E daí fiz uma coisa inacreditável. Virei para o Tuma e perguntei: “E o senhor crê em Deus?”. Resposta: “Sim senhor, creio em Deus”. Continuei: “O senhor vai à missa todos os domingos?”. Tuma respondeu que nem sempre. Eu disse: “Tá errado”. Ele argumentou: “Não cumpro direito meus deveres cristãos, mas rezo pelos nossos mortos”. Daí eu me arrepiei com a frase que considerei ameaçadora. Resolvi acabar por ali, para não acabar mal.
Brasileiros – E o clima nos arredores?
A.A. – O deputado Airton Soares interveio para que minha mulher pudesse me ver. Ela entrou e Tuma na minha frente: “Minha senhora, vou lhe pedir um obséquio. Consiga que os amigos de seu marido saiam daqui, porque manifestação aqui eu não vou tolerar. Se a manifestação continuar, seu marido não vai dormir em casa”. Não havia qualquer manifestação, era só a presença dos amigos. Pedi ao Airton que eles deixassem o aeroporto e fui liberado.
Brasileiros – Como retomou a vida no Brasil?
A.A. – Em 1976, passei na base do “ora veja”. Não fiz nada. Depois, comecei a escrever para a Folha de S. Paulo. Isso me devolveu a visibilidade. Também advogava na área trabalhista, no escritório de Cantídio Filardi, grande amigo, que me cedeu sala e secretária. E gradualmente entrei no MDB. Em 1982, disputei a candidatura ao Senado, com Severo Gomes. Fui audacioso, viajando de ônibus, sem dinheiro para a campanha. Severo tinha o apoio até do Partido Comunista. Foi um bom senador. Homem de muita cultura, além de empresário. Homem que se detinha em teses. Tese da defesa do negro, dos cidadãos detidos em prisões. Tenho muito respeito pelo senador, mas direito a uma mágoa. Fui o primeiro suplente. Tive 2 milhões de votos; ele, 3 milhões. Em oito anos de mandato, não era justo ele ter me cedido um ano no Senado? Poderia ter me oferecido três meses. Talvez eu não aceitasse, mas seria um gesto bonito. Ele não foi generoso.
Brasileiros – Como continuou sua vida política?
A.A. – Em seguida, fui secretário do Estado dos Negócios Metropolitanos, governo Montoro. Depois, vice-governador no período Quércia. Mais tarde me candidatei a governador e foi um fracasso total. O Quércia me puxou o tapete. E fui deputado federal no ano em que Fernando Henrique se elegeu presidente. Tornei-me vice-líder do governo do Fernando na Câmara no primeiro mandato. Aí, me afastei porque o Fernando começou a ter composições opostas às que sempre teve. Ele era a favor do monopólio estatal no petróleo, por exemplo, mas a primeira medida que tomou perante o Congresso foi a de ruptura com o monopólio estatal. E várias outras coisas. Isso acabou me levando a renunciar desde logo.
Brasileiros – Ia contra a sua história?
A.A. – Essa história da defesa do monopólio estatal está no nosso sangue e tinha sido pensada também no Chile. Todas as sextas-feiras nos reuníamos na casa do Plínio Sampaio para analisar o Brasil. E o Fernando Henrique chega aqui e faz o oposto… O pai dele havia sido líder do monopólio estatal, o velho general Leônidas Cardoso. Eu me afastei politicamente do Fernando Henrique.
Brasileiros – E mais recentemente?
A.A. – Uma coisa curiosa. Entre as novidades da Constituição de 1988 está o Conselho da República, uma cópia do Conselho do Império. O Imperador tinha uma série de figuras de alta importância: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa… Começou com Dom Pedro II que se reunia mensalmente para ouvir a opinião sobre temas que decidia. Os conselheiros não votavam, opinavam. Não era lindo? Para minha surpresa, o Lula, eleito presidente, me convidou para ser membro do Conselho na República. No primeiro mandato do Lula tive esse cargo honorífico, honroso. Não recebia nenhum tostão, obviamente. Foi um grande reconhecimento e também uma tristeza. Lula nunca reuniu o Conselho. Por fim, agora, em novembro de 2009, o governador Serra me convidou para ser assessor especial. Não é honorífico. Algo me pagarão.
Brasileiros – Como o senhor vê sua atuação ao longo de todos esses anos?
A.A. – O que você espera de um homem na vida pública? Primeiro, que lance ideias. Tentei. Segundo, que se dedique à vida pública e lute por ela. Lutei. Nunca faltei ao que me propus. E paguei por isso. Não me deram 12 anos de exílio porque fiquei tocando flauta. Não fui um revolucionário. Não sei se era época de ser um revolucionário. Não era meu temperamento, mas eu dei as patadas, uma por uma. Orgulho-me da dignidade. Os colegas dizem: “É um homem que atravessou a vida pública e não roubou, não se valeu do cargo público para enriquecer”. Isso eu tenho, meu avô teve, também meu pai, que foi prefeito e morreu pobre. Não que eu goste de ser pobre.
Brasileiros – O senhor foi vice do governo Quércia, que sofreu várias denúncias de corrupção. Passou incólume?
A.A. – Tenho orgulho de ter passado incólume. Houve uma época em que estava na Secretaria dos Negócios Metropolitanos quando houve um problema grave. Uma grande empresa de ônibus da região de Mogi das Cruzes, não estava cumprindo seu papel. O povo revoltou-se com a denúncia de corrupção. Eu era o poder concedente como secretário e, segundo constava, estariam tentando subornar a comissão que eu havia nomeado. Quando eu menos espero, surge a acusação de que eu estava sendo comprado pelos corruptos. Foi um sofrimento que você não pode avaliar. Na mesma hora convoquei a imprensa e exigi a imediata instalação de inquérito administrativo e policial. Fui à Assembleia e exigi que o Poder Legislativo ou me convidasse ou me convocasse para me ouvir de público ou abrisse inquérito, uma espécie de CPI. Depois de um mês, numa belíssima reunião na Assembleia, com todos lá, apresentei um catatau desse tamanho que se chama Em Defesa da Honra da Dignidade Pública, em que contei a história toda e arrasei meus ilustres interlocutores. Por conta disso, um deputado foi cassado por corrupção, processado e condenado criminalmente e só não foi para cadeia porque apelou para a Lei Fleury. Cumpriu a pena em casa. O prefeito sumiu.
Brasileiros – O senhor ainda advoga?
A.A. – Não. Tenho um bom escritório de advocacia, no bairro do Belém, em sociedade com um grande amigo, o doutor Benedito Ribeiro. Vou lá cada vez menos. As causas sob a minha orientação já estão no fim. Não aceito mais causas. Nenhuma demorará menos de dez anos. Eu tenho 80, vou começar uma causa para quando? Estou escrevendo um bom livro, sobre 1964. A metade está pronta. Terminarei este ano. Também escrevo sobre a Lygia, que morreu em 2007. Mostra a verdade do período do exílio e minha lembrança, minha história vivida.
Brasileiros – Uma autobiografia?
A.A. – Eu chamaria de uma biografia do amor. Não é uma biografia em que diga: “Aí, eu fiz isso. Aí, fiz aquilo”. Escrevo ainda um romance, Maju, Amor e Morte. Uma história de amor. Não sei se terei tempo para tudo isso.
Brasileiros – O senhor acredita ter escolhido os caminhos certos?
A.A. – Tenho duas vertentes. Uma relação de amor que foi muito forte, que atravessa a vida. Não impede que eu tenha tido meus pecadilhos. A opção do amor para mim é a grande opção. A outra é a opção política. Tomei posições que eu sentia profundamente, desde Manaus, desde a faculdade de Direito… Poderia ter sido maior, poderia ter me preparado melhor para ser mais contundente na defesa das missões. Mas a vertente da vida pública foi a vertente que deveria ser a minha. Entrei pobre na vida pública. Na hora de ir para o exílio não tinha um tostão para manter minha família. Voltei do exílio pobre. Continuo pobre, moro nesta casa alugada. Acho que dignifiquei o que aprendi com meus pais.
Brasileiros – O que falta em sua biografia?
A.A. – Tive a grande ambição de ser poeta. Tenho livros de poesia publicados, mas sei que não me tornei um bom poeta. Aqui ou acolá deu para fazer algo que presta. Isso para mim é uma tristeza muito grande, a minha grande frustração. A outra é que não me tornei rico. Não me agrada não ter me tornado rico, mas também não me ponho embaixo da ponte.
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