Memórias de pacientes

Foto: Rodrigo Luz
Ao Trabalho
Marina, com o Projeto Lãs Cabaças, na Amazônia.

Marina Quinan é atriz, palhaça e arte-educadora. Há oito anos ela sofreu um acidente que a deixou dois meses internada em um hospital público. Entrou para os Doutores da Alegria e atua contra a impessoalidade que impera na saúde pública brasileira. Há dois anos, criou o grupo Lãs Cabaças, que leva os palhaços para os locais de difícil acesso do País.

O Caminho de Santiago de Compostela
“Eu tinha 22 anos (…) Fui com um namorado, mas acabamos fazendo o caminho sozinhos (…) O caminho é maravilhoso (…) Depois, o que mudou, o que foi mais radical, foi que eu comecei a dar um valor incrível para coisas miúdas. Foi quando voltei a andar de bicicleta. O trajeto de ir de um lugar para o outro virou a coisa mais importante (…) Eu acho que aprendi a olhar os detalhes, quão prazeroso é beber água, quão prazeroso é andar (…) Quando voltei pra cá, não conseguia ficar parada. Fazia milhões de coisas, capoeira, dança, kung-fu. Ia de bicicleta pra todos os lugares. (…) Até que eu fui atropelada.”

O acidente
“Eu estava saindo da minha casa, indo até um curso de máscaras que fazia na época. Estava de bicicleta, andava entre a faixa do ônibus e a primeira faixa de carro que era um espaço bom. Até que um ônibus me fechou e eu caí. Eu não sei se a roda passou por cima ou se só bateu, não sei exatamente porque eu só senti a dor, a batida.”

No hospital
“(…) A medicina olha a gente como partes. Tinha a equipe da bacia, a equipe da pele, porque perdi toda a pele da perna e tive que fazer enxerto. (…) Você tem que administrar tudo, e é uma coisa absurda num hospital público (…) Fiquei na mesma posição por dois meses e meio. (…) Tinha que fazer um trabalho de conquistar cada enfermeira de cada turno (…) Logo que o médico saiu da cirurgia falou para minha mãe que tinha muito pouca chance de eu sobreviver. (…) Em uma semana, eu saí do risco de morte e do risco de amputar a perna. “Eu não posso perder tempo”, ficava pensando: “Células, se multipliquem, células, se transformem”, eu fechava o olho e ficava imaginando cada partezinha do meu corpo, as células se reestruturando, se refazendo, saindo o roxo, voltando a cor normal da pele. (…) Melhorar virou uma questão de honra. Tinha acabado de fazer o Caminho de Santiago, sabia o tanto que eu podia falar: “Corpo, anda” (…) Antes de você ser um joelho, você é uma pessoa. Não adianta você tratar parte, você tem que tratar o todo. Muitas vezes a cura está noutro lugar, além do joelho. A medicina ainda tem que evoluir muito (…) Eu tenho um jeito de achar que as coisas não acontecem em vão, porque você tem que aprender uma coisa com isso. Foi uma grande oportunidade que eu tive de aprender tudo que aprendi. Foi desse jeito, vai saber por que, fosse um acidente ou fosse um filho. Essas coisas não me cabem entender. O que me cabe é “eu tenho isso nessa situação, como vou sair ou passar por isso?”

Os Doutores da Alegria
“Eu via umas coisas nos hospitais que me decepcionavam, não era isso o que eu queria. E senti isso. Tinha umas pessoas de uma igreja que iam cantar, enquanto eu estava internada “Viemos aqui para trazer um pouco de alegria para você.” Aquilo era uma invasão tão grande. Porque eu não queria aquilo, eles que estavam precisando da minha atenção(…) Nos Doutores eu já sabia que não existia isso. Somos iguais e viemos aqui brincar. Não tem diferença nenhuma. Eu termino o dia dizendo: “Que demais que é trabalhar com isso.” E em nenhum momento me lembro do meu acidente. (…) Esse processo foi como o Caminho de Santiago, uma viagem muito boa, não boa no sentido… É como se fosse a lembrança do caminho.”


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