O embaixador Rubens Barbosa era favorito, favoritíssimo, para o cargo de ministro das Relações Exteriores se José Serra tivesse vencido a eleição presidencial de 2010. Tem laços pessoais e afetivos com as grandes figuras do PSDB. No entanto, enquanto serviu ao Itamaraty, serviu ao País – e não a alguma facção política. É o que fica claro na leitura de O Dissenso de Washington (Editora Agir, 384 páginas), recorte dos cinco anos em que, embaixador do Brasil junto à Casa Branca, viveu de perto alguns cruciais episódios, tanto da história recente do Brasil quanto da dos Estados Unidos.
Fanático escrevinhador, Barbosa anotou tudo. E produziu o tipo de livro que faz falta a pesquisadores sérios – e aos palpiteiros de ocasião. Hoje, cabeça de uma empresa de consultoria em São Paulo e editor da revista Interesse Nacional, o ex-embaixador falou à Brasileiros.
Brasileiros – É praxe embaixadores registrarem tão minuciosamente assim suas experiências profissionais?
Rubens Barbosa – Meu livro não pretende ser um tratado acadêmico sobre a relação Brasil-Estados Unidos, nem mesmo é um livro de política externa. São notas de um observador privilegiado, feito de pequenos fragmentos e de muitas anotações. Agora começaram a ser liberados documentos reservados do Itamaraty e o primeiro que a Folha de S.Paulo publicou cita o grampo na Embaixada de Washington. O primeiro telegrama liberado foi meu. Eu contava ao Ministério que, na organização da primeira visita do Fernando Henrique, a gente notou uma interferência no telefone. Chamei uma empresa americana e ela descobriu o grampo. Tinha um fio que saía da embaixada, passava por um circo que tem lá e chegava ao Pentágono.
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Brasileiros – Pelo visto, emoções não faltaram ao seu período em Washington.
R.B. – É raro acontecer tanta coisa com um embaixador como aconteceu comigo nos cinco anos em que servi em Washington – um posto de grande visibilidade. Acabei elegendo cinco temas em torno dos quais gira o livro. Primeiro, a eleição de Bush. Segundo, o ataque de 11 de setembro. Terceiro, a guerra do Afeganistão. Quarto, a guerra do Iraque. E, por último, a eleição do Lula aqui no Brasil. Quer dizer, eu estava lá quando partidos de oposição ganharam o poder, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, ocasionando um impacto muito grande na sociedade dos dois países e na relação entre os dois países.
Brasileiros – O livro, então, vai de 1999 a 2004, é isso?
R.B. – Saí de Washington em abril de 2004. Mas achei que, para dar uma visão de conjunto sobre a relação do Brasil com os Estados Unidos, era necessário completar a análise até o final do governo Lula. Acabei escrevendo mais um capítulo, a partir de conversas, de discursos, de declarações do próprio Lula e do Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores). Para dar uma ideia de conjunto da relação do Brasil com os Estados Unidos no governo Lula, colocando em perspectiva essa relação.
Brasileiros – Olhando para frente?
R.B. – Não, para trás. Desde o reconhecimento do Brasil pelos Estados Unidos, na Independência, até agora. São 10, 15 páginas que reforçam o ponto de que as relações do Brasil com os Estados Unidos nunca foram tranquilas. Três vezes o Brasil rompeu relações diplomáticas com os Estados Unidos ao longo do século 19. Os Estados Unidos pensaram em mandar escravos negros aqui para o Brasil, como fizeram com a Libéria. Há documentos sobre isso. E o último que tratou disso foi o Abraham Lincoln. Vem daí essa ideia que persiste no subconsciente do brasileiro de que os Estados Unidos gostariam de ocupar a Amazônia.
Brasileiros – O próprio título com a palavra “dissenso” mostra que esse alinhamento Brasil-EUA não é automático.
R.B. – Usei “dissenso” por duas razões: o dissenso interno e o dissenso externo. Dissenso interno, dentro da sociedade americana, depois da eleição do Bush, do 11 de Setembro e de toda radicalização política que se seguiu. Analiso em detalhes o Ato Patriota (Patriot Act, aprovado pelo Congresso americano em outubro de 2001, concedendo ao presidente prerrogativas acima da Lei e da Constituição) e a estratégia de Segurança Nacional. Sobre o dissenso externo, procuro mostrar que no ano e meio em que servi o governo Lula em Washington não houve tanto choque assim. Apesar da guerra do Iraque, sobre a qual o Brasil tinha posição muito contrária. Até ajudei a evitar ataques pessoais. No segundo mandato do Lula é que o dissenso se ampliou. Tanto o Lula quanto o Celso Amorim desandaram a criticar abertamente o Bush, o Obama. Depois, houve a aproximação com o Irã. O episódio Honduras. Eu analiso com base nos fatos. Não em opiniões subjetivas.
Brasileiros – O senhor se baseou só em suas anotações?
R.B. – Algumas passagens, eu chequei. Falei, por exemplo, com a embaixadora Vera Pedrosa (então subsecretária política do Itamaraty). Disseram que ela falara coisas pesadas contra os Estados Unidos. Fui à casa dela no Rio e ela desmentiu. Foi no momento da transição. Chequei também com o José Dirceu. E com o (ministro Antonio) Palocci. E com o (Henrique) Meirelles.
Brasileiros – O que o governo americano pensava do Lula? Imagino que houve uma longa negociação para torná-lo palatável.
R.B. – O quadro era péssimo naquele momento da transição. Mas o próprio Fernando Henrique definiu uma política. Em abril, maio, começaram os rumores de que os candidatos iriam aos Estados Unidos. Que o Lula iria. Que o Serra poderia ir. O Ciro Gomes. Liguei para o presidente: “Se o Serra vier, os outros vão ficar de olho. Estou aqui como embaixador do Brasil, não como representante de partido político algum”. Fernando Henrique ouviu e aprovou: “O que qualquer candidato pedir você faz. Mas nada além disso”. O Lula não foi, mas em maio recebi a notícia de que o José Dirceu iria a Washington em nome dele. Conto em detalhes os encontros na Casa Branca. Eu arrumei os encontros. José Dirceu mostrou a Carta aos Brasileiros e disse às autoridades americanas que o Lula iria cumprir aquilo. Eu acreditei, fazia palestras lá nos Estados Unidos e dizia: “Lula está indo para o centro, não vai mudar nada”. Quem me ouviu e apostou nisso, deve ter ganhado um bom dinheiro… Depois apareceu o Pedro Parente, em nome do Serra. Agendei as conversas. Cito também a ação da embaixadora Donna Hrinak e do Mario Garnero. Com a Donna conspirei para que Lula fosse recebido pelo Bush.
Brasileiros – Quando?
R.B. – Depois de eleito. O presidente americano não recebe presidentes eleitos, só recebe chefes de Estado. Mas como era uma mudança muito drástica para o continente e havia uma insegurança muito grande dos americanos em relação ao governo Lula, Bush abriu uma exceção. Depois, já empossado, acompanhei outra visita do Lula ao Bush. Conto também das duas visitas do Fernando Henrique quando presidente.
Brasileiros – Estilos totalmente diferentes. Quem dava mais trabalho ao embaixador, o Lula ou o FHC?
R.B. – Não davam trabalho.
Brasileiros – Resposta diplomática.
R.B. – Não davam. É rotina.
Brasileiros – Curiosidade: onde o senhor estava no dia 11 de setembro?
R.B. – Estava me preparando para ir para a Chancelaria. Quando um colega ligou e disse: “Liga a televisão que um avião se chocou contra a Torre”. Liguei a televisão e vi a cena. Pensei que era replay. Era o segundo avião. Fui imediatamente para a Embaixada porque começaram os telefonemas, muita boataria: que tinha bomba nas embaixadas, no Departamento de Estado. Muita insegurança. Levei uma hora e tanto para falar com Fernando Henrique. Ele estava vendo pela CNN. Mas eu queria dar o quadro da situação lá: o pânico das pessoas, o sumiço do Bush.
Brasileiros – E qual era o quadro?
R.B. – Desde o começo, achei que aquilo teria um efeito dramático na psique americana e no governo americano. A única e última vez que os americanos tinham sido atacados em seu próprio território foi em 1814, na Guerra Franco-Inglesa. Os ingleses chegaram até Washington e tocaram fogo na Casa Branca. E é bom lembrar que os Estados Unidos, no fim da década de 1990, com Clinton, estavam vivendo um momento de prosperidade. O país crescia 3% ao ano havia mais de uma década. A afluência da sociedade americana era brutal. Todo mundo comprando casa, comprando barco, fazendo piscina. A gente via isso lá. Do ponto de vista político, eles estavam no auge do poderio. Tinha caído o muro de Berlim, acabara a União Soviética. Eles se achavam inexpugnáveis. Aí vem 11 de Setembro.
Brasileiros – Para o Bush, foi um achado.
R.B. – Bush surgiu apoiado por um grupo religioso radical de direita, estava fazendo um governo morno. Um presidente fraco. Pegou todas as teorias de direita, conspiratórias, e lançou à mesa. Deu no que deu. Guerra no Afeganistão. Depois, no Iraque. Repressão interna. Tortura. Tudo aprovado por ele. Está documentado.
Brasileiros – O senhor cita que o governo Bush tentou colocar o Brasil no mapa do terrorismo internacional. Como foi isso?
R.B. – É um dos capítulos do livro. O caso da Tríplice Fronteira, Brasil, Paraguai, Argentina. Nesse episódio, o Comando Sul das Forças Armadas americanas, sediado em Miami, teve influência muito grande. Vocês sabem, é uma briga tremenda por recursos do orçamento, o pessoal quer mostrar serviço para ganhar mais. O Comando Sul era a fonte das notícias de que, depois do 11 de Setembro, havia atividade terrorista na Tríplice Fronteira. Acompanhei até a CIA o General Cardoso (Alberto Cardoso, chefe do gabinete de Segurança Institucional da Presidência). E fui ao Departamento de Estado, ao Ministério da Defesa, para me informar. O governo brasileiro reconhecia que havia palestinos na região, mas nenhuma atividade terrorista. Foi nessa época que, em uma reunião do Inter-American Dialogue, acabei discutindo com o General Hill (James Hill, chefe do Comando Sul). Ele não falou especificamente sobre a Tríplice Fronteira, mas disse que havia lugares no mundo em que os estados falidos não tinham controle sobre os seus próprios territórios. Citou a Colômbia, dizendo que certas parcelas do território eram controladas pelos guerrilheiros da FARC e não pelo governo. E que o exército apoiado pelos Estados Unidos estava se equipando para combater isso. Você podia extrapolar para a Amazônia. Quando ele acabou de falar, pedi a palavra e o interpelei. Que teoria é essa? Aplica-se como? Quem é que vai dizer que o governo não tem controle?
Brasileiros – Parte da imprensa engoliu essa. Lembro-me de uma longa reportagem no Globo e no Jornal Nacional, horário nobre, veiculando acusações contra o prefeito de Chuí, dizendo que ele era membro da Al Qaeda. Uma irresponsabilidade total. Entrevistas anônimas. O acusado, claro, negava.
R.B. – Na mesma época, a CNN fez matérias mostrando as cataratas do Iguaçu, dizendo que tinha terrorista escondido lá. Eu telefonei para a emissora cobrando: “Como vocês fazem um troço desses?”. Era tudo alimentado pelo Comando Sul, com sede em Miami.
Brasileiros – Como o senhor vê hoje nossa relação com os Estados Unidos?
R.B. – Ela depende de três aspectos. Primeiro, o Brasil e os Estados Unidos encontrarem áreas de interesse comum. Concretamente. Dos setores público e privado, nossos e deles. Isso não existia, pelo menos até a recente visita do presidente Obama ao Brasil. O segundo ponto é que os Estados Unidos têm de mudar a percepção em relação ao Brasil. Escrevi um capítulo sobre os estereótipos do governo americano em relação ao Brasil. O Brasil hoje é diferente, diferente dos outros países da região, ocupa um lugar no mundo que não ocupava há dez, 15 anos. Hoje, o Brasil discute a questão do Irã, da Palestina. Terceiro ponto: o Brasil tem de decidir o que quer em relação aos Estados Unidos. Ainda não se decidiu. Assim como não sabe o que quer da China, nosso maior parceiro comercial.
Brasileiros – Do Fernando Henrique ao Lula, e agora com Dilma, a política externa brasileira mudou muito?
R.B. – Há uma continuidade na política externa. Grande parte do que Lula fez vem dos governos anteriores. Ele não inventou nada. Pega aí as prioridades: comércio exterior, América Latina, Mercosul, Conselho de Segurança da ONU. São as mesmas. O que muda é a ênfase. Na visita recente do Obama, percebi que Dilma baixou um pouco o tom. Porque no segundo mandato do Lula havia uma influência ideológica muito grande. Era ideologia, não pragmatismo. Atrapalhou muito.
Brasileiros – Por exemplo, como atrapalhou?
R.B. – Em relação aos Estados Unidos, acabou a ideologia, prevalece o pragmatismo. Está lá no comunicado conjunto da visita do Obama: um dos capítulos é o acordo de transferência de tecnologia na área espacial. Assinamos um acordo quando eu estava em Washington e o PT barrou no Congresso. Depois, aprovaram um acordo igual com a Ucrânia. É o que chamo de ocasião perdida.
Brasileiros – O senhor também foi embaixador do Brasil em Londres. Como explicar a atual crise econômica europeia?
R.B. – Tem gente que acha que a Europa vai levar uns dez anos para se recuperar. Sou otimista: cinco anos. Para se recuperar, bem entendido – não para voltar a crescer como estava crescendo. A crise de agora é diferente da de 2008. A de 2008 era uma crise de solvência: empresas entraram numa espiral de loucura, quebraram, os governos tiveram de socorrer. A de hoje é uma crise de governo, uma crise de gasto público. Os países estão com toda a riqueza comprometida com o gasto. A Itália gasta 120% do PIB, a Grécia gastava 200%. Para efeito de comparação: o Brasil gasta 40%.
Brasileiros – Os Estados Unidos também estouraram o teto do PIB, gastam mais do que produzem.
R.B. – Nos Estados Unidos, há desequilíbrios econômicos, sim, o déficit é igual ao PIB, mas a economia ainda é muito forte. O problema lá é político. Existe uma situação disfuncional: o eleitor botou o Partido Republicano para comandar a Câmara e o Senado continua na mão dos democratas. Quem controla a Câmara de Representantes é a direita mais radical. Tudo o que acontece – mesmo as grandes discussões de política externa – só tem a ver com as eleições de 2012. Isso paralisa o país.
Brasileiros – Fazendo uma comparação: Lula reverteu a expectativa negativa que havia, por parte de muita gente, e Obama está revertendo a expectativa positiva, da esperança, de transformação, que havia ao ser eleito.
R.B. – Obama está imprensado entre o pessoal de direita, ultrarradical, religiosa e isolacionista, e a esquerda do Partido Democrata, que acha o governo dele frouxo, que ele devia ter ousado mais, acabado com Guantánamo, com Abu Ghraib, com a guerra no Iraque. O fato é que a sociedade americana está dividida e não é de hoje. De 30 anos para cá, a eleição presidencial não se decide pela força do Partido Republicano ou pela força do Partido Democrata e, sim, pelo voto do centro, dos independentes. Vai acontecer a mesma coisa agora: um voto muito dividido entre republicanos e democratas e ganha quem o centro apoiar. Pessoalmente, penso que a maioria do centro não aceita essa direita radical. Então, é possível que Obama se reeleja. Mas terá de presidir um país dividido.
Brasileiros – Onde é que Obama errou?
R.B. – Na área interna, o grande erro foi gastar um enorme capital político com a aprovação da reforma da previdência e da saúde. Não conseguiu maioria, perdeu tempo e se desgastou. Na área externa, a lógica da política americana levou Obama a repetir as políticas de Bush. A agenda não mudou nada. Ao contrário, ele aumentou o número de soldados para o Afeganistão. Errou ao manter as duas guerras. Desgastou a imagem política dele e agravou a situação econômica. Os Estados Unidos gastam US$ 200 bilhões por mês nas duas guerras. US$ 200 bilhões por mês! Depois de 11 de setembro, a principal prioridade do governo americano foi o combate ao terrorismo. War on global terror. Criaram o Ministério da Defesa Interna. Hoje, só na área de segurança e defesa antiterrorismo há 850 mil pessoas com credenciais para ter acesso a documentos top secret. Existe uma indústria do antiterrorismo nos Estados Unidos.
Brasileiros – Virou uma lucrativa obsessão, não é?
R.B. – É a obsessão de não serem atacados. De certa maneira, resultou positivo. Houve ataques em Madri, em Londres, na Indonésia, na Índia, mas não nos Estados Unidos. Conto no livro a primeira conversa de Bush com Lula, no final de 2002. Bush disse: “Nesta mesa sentaram-se Kennedy, Johnson, Reagan. Todo dia recebo informação da CIA com 40 ameaças de ataque ao nosso território. Estou sentado aqui para defender o povo americano e o território americano. A guerra contra o terrorismo é nossa prioridade“.
Brasileiros – E o Lula, o que disse?
R.B. – Disse que o Brasil é solidário na luta contra o terrorismo e tal, mas que no governo dele a prioridade do Brasil seria combater a pobreza.
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