Memórias de uma puta alegre

Ela não sabe ao certo se tem 68 ou 69 anos. Mas sabe que viveu muito e tem ainda um longo caminho pela frente. Outros amores, quem sabe. “Não estou morta”, vai logo avisando, enquanto remexe no armário de vestidos de renda e brilho. Prostituta desde os 12 anos, Maria Cheirosa hoje anda com orgulho nas “ruas de família”, em Araçuaí, cidade do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Durante 25 anos esteve à frente do Para Todos, o bordel mais famoso da cidade, onde gozavam homens perigosos de arma na cintura, gente com bafo de álcool, ricos do lugar e também meninos se iniciando nos prazeres da cama.

Cheirosa virou lenda viva. Na procissão da Sexta-feira da Paixão já representou o papel de Maria Madalena. “O padre lavou meus pés na cerimônia”, conta, sem esconder o orgulho. Não é só. No dia 21 de setembro, na festa de aniversário da cidade, ela não se faz de rogada e aceita o convite da prefeitura. Veste “um vestido brilhoso” para fazer o papel da mulata Luciana Teixeira, que no início do século XIX era dona de um bordel às margens do Rio Araçuaí, onde começou o povoamento da cidade.
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A vida nunca foi fácil para Maria Cheirosa, batizada como Maria das Dores Ribeiro. Aos 5 anos, sua mãe a entregou para uma família tradicional de Araçuaí com um único pedido à dona da casa: “A senhora crie a menina, mas não corte as tranças dela”. Sem dó nem piedade, a mulher pegou a tesoura e fez um corte duro e seco em cada uma das duas tranças. Com o cabelo da filha nas mãos, a mãe partiu e foi ser mulher da vida. “Não tinha outro jeito para sobreviver”, diz Cheirosa.

Enquanto isso, ela ficou na casa da tal família. “Eu dormia numa esteira no chão e usava um lenço na cabeça, que era ‘pelada’ de tempos em tempos”, lembra. Mas a vaidade despontou logo. Um dia, encontrou na beira do rio uma mecha de cabelo, de alguém que se banhara por ali. A mecha foi dividida em partes iguais e elas foram presas, cuidadosamente, nas bordas do pano de cabeça. De frente para o espelho, ela gostava de ver os cabelos como moldura do rosto negro de traços bonitos. Mas a brincadeira secreta precisava ser interrompida sempre porque tinha o quintal para varrer, a roupa para passar e a criança de colo para cuidar. “Naquele tempo, as meninas criadas na casa dos outros eram escravas. Nem sei se tinha ruindade nisso, era a criação da época”, diz, sem lamento.

Ela vivia tentando fugir, mas os soldados a traziam de volta. Com 12 anos, conseguiu escapar e foi atrás da mãe que, nessa época, morava na zona rural de Araçuaí. “O homem dela me fez mal no meio do mato. Ela ficou furiosa e quis me enfiar a faca.” Só restava fugir de novo. Então, embarcou no trem sem dinheiro e chegou a Teófilo Otoni, cidade grande demais para uma menina que vinha de Araçuaí.

Os homens mexiam, gostavam de sua beleza morena, e ela “ficava bestando na rua”, como diz. Dormia na calçada, vinha um, vinha outro, e ela se entregava sem resistência. Passou a ir aos botecos e foi assim que descobriu o talento para dançar. Samba, tango, bolero… Não tinha para ninguém quando Maria rodopiava no salão.

A farra não durou muito. As doenças venéreas se instalaram com força. Uma prostituta teve pena e tentou embarcar aquela menina de 13 anos no trem para que ela fosse para a casa da mãe. “Eu fedia tanto por causa das doenças que só aceitaram me levar no trem de carga”, lembra. A mãe a recebeu e cuidou da filha com poções de raiz. Assim que se sentiu curada, tomou o rumo da zona de Araçuaí, que ficava na parte baixa da cidade, entre as ruas Salinas e Grão Mogol.

Mal chegou e mostrou logo que sabia dançar bem, brigar por seus homens e enfrentar o mundo. “Naquele tempo, as prostitutas só podiam andar na zona. Se a gente passasse em rua de família ia para a cadeia.” E ela foi presa tantas vezes que até perdeu a conta. Aprendeu a andar com revólver e faca, a se meter em encrencas e a sair delas. A cicatriz enorme no braço esquerdo faz parte desse vale-tudo. “Me rasgaram com vidro de garrafa e eu revidei”, diz, com ares de eterna valentia.

O tempo foi passando e ela foi ficando. Conviveu com outras putas, como Teresa Branco, Alice 500 Réis, Maria Cabelão, Maria Cabecinha, Maria Tabaco Sem Sorte (porque não pegava ninguém) e ela virou Maria Cheirosa. E com razão: “Eu era uma nega asseada e não ficava sem o perfume Cashmere Bouquet”. Usar vestido de renda, colocar flor no cabelo e guardar o dinheiro num caixote eram outros de seus hábitos. Mesmo sem saber assinar o próprio nome, aprendeu a fazer contas para somar o dinheiro ganho no trabalho e as despesas com os filhos que nasciam. Teve nove ao todo e, desses, cinco sobreviveram. Perdeu não se sabe quantos nos abortos com lavagem de sal grosso, que provocavam hemorragias e dores de que ela não se esquece até hoje. Criou os filhos numa casa alugada e cuidou para que nenhum homem abusasse das meninas.

Maria Cheirosa dava duro e queria seu próprio negócio. Aos 20 anos já era gerente de um bordel. Depois, comprou o Secos e Molhados. Foi o primeiro passo.

Com 40 e poucos anos já era dona do Para Todos, o mais tradicional da região. E os amores? Ela garante que só se apaixonou por homens livres. Será? E os homens ricos da cidade e os políticos locais? Sobre isso ela não fala nada. Nunca. Se beijou na boca de quem devia, não sente arrependimento: “A vida é como é”.

Mas amor mesmo, desse dos grandes, surgiu quando viu um moço louro na porta do Para Todos. Era Aurino Lopes de Carvalho, um garimpeiro de 17 anos, que os companheiros chamavam de Lau. Cheirosa deixou o que estava fazendo e não teve dúvidas: “Moço, que tal nós dormir hoje?”. Ele olhou bem para aquela nega famosa e respondeu: “Sinto muito, não tenho dinheiro”. E aí ela disse: “Mas eu tenho”. Os dois foram para a cama e no dia seguinte ela pensou: “Vou ficar mais ele”. Montou uma mesa bonita com café, bolo, biscoito e requeijão moreno (típico da região). E, enquanto ele dormia, saiu para comprar um maço de Plaza de presente para seu homem. Lau acordou, gostou da mesa farta e disse: “Sinto muito, eu fumo Hollywood”. Ela voltou, trocou o maço de cigarros e o casal passou três dias junto, tempo suficiente para descobrir que o irmão de Lau era um dos homens de Maria Cheirosa. Mas quem disse que isso era um problema? Nem para ela, nem para ele.

Apaixonada, Maria Cheirosa mudou os enfeites da sua penteadeira. Ao lado dos bibelôs, do rouge (blush), do batom e do vidro de Cashmere Bouquet, colocou três fotos de Lau. Tinha muitos clientes, mas avisava sempre: “Quando Lau chegar, só fico com ele”. E anunciou também para o mulherio da zona: “É meu. Ninguém chega perto dele, senão…”. Nem precisava completar, todo mundo sabia que a nega era de briga.

Até que um dia o amado se mandou e foi ser metalúrgico no ABC paulista. Maria Cheirosa tatuou o nome de Lau no braço direito e esperou por ele. Foi uma espera de sete anos. Deu tempo de o homem arranjar mulher e um filho por lá. Mas ela sempre acreditou que ele voltaria. E não é que voltou? Deixou para trás mulher e filho em São Paulo e se instalou no Para Todos.

Mas nem tudo ia bem. Quando o álcool lhe subia à cabeça, Lau descia a mão pesada em cima de Maria Cheirosa, que se defendia bravamente. Como se não bastasse, uma de suas filhas caiu de amores pelo homem. Ela foi firme, enfrentou a filha com palavrório e separou os dois, sem precisar pegar a faca, como fez sua mãe.

Aos 55 anos, Maria Cheirosa decidiu que era hora de se casar. Sonhou com igreja, vestido de noiva e festança. Mas o bispo da cidade foi firme: “Casar na igreja, não”. Fazer o quê? Sem choramingos, ela trocou o vestido de noiva por um conjunto de saia e blazer brancos. Lau, com 39 anos, aparou o bigode e vestiu camisa social para assinar os papéis e se esbaldar na festa que entrou noite adentro. Desde então, estava encerrada a sua carreira de prostituta. Maria Cheirosa passou a se dedicar ao marido e à administração do Para Todos. O tempo foi passando…

Enquanto isso, a zona boêmia foi se esvaziando cada vez mais. Abandonados, os velhos casarões da parte baixa da cidade foram desabando. Das mulheres da zona, companheiras dos tempos áureos do Para Todos, poucas ficaram. Doentes, solitárias e pobres, elas se recolheram sabe Deus onde. Os motéis começaram a despontar na cidade e as moças passaram a se oferecer sem pudor na rodoviária. Novos tempos.

Não foi preciso pensar muito para aceitar a oferta de um empreendedor interessado em comprar os terrenos da parte velha da cidade. Por R$ 12 mil, Maria Cheirosa vendeu o Para Todos no início deste ano. Não demorou muito e o trator derrubou o salão de dança, o balcão de madeira escura onde a imagem de São Jorge vivia iluminada por uma vela e também os pequenos quartos para os casais. O Para Todos foi ao chão sem que muitos dos moradores de Araçuaí se dessem conta disso, pois a vida na cidade hoje gira na parte alta.

Maria Cheirosa doou os móveis do velho bordel para uma de suas filhas, que é dona de um dos poucos puteiros que restaram na cidade. Como sabe bem o valor do dinheiro, tratou logo de aplicar o que recebeu. Pagou o tratamento de um filho viciado em crack e reformou a casa, onde vive na companhia de Lau. Fez um bar na sala, pôs almofadas de cetim grená sobre o sofá, espalhou inúmeros bibelôs sobre os móveis e cobriu as paredes com retratos de alguns de seus 16 netos e sete bisnetos. Mas o que reina sobre todos eles é uma foto dela no vigor dos 50 anos, com flor no cabelo. “Foi Manezinho Pau de Bosta, o retratista da cidade, que tirou”, conta, com saudade nos olhos.

E o que ela guarda dos velhos tempos? Apoiada em uma bengala, Maria Cheirosa caminha até o quarto do casal e abre o armário com uma alegria de moça. Lá estão os vestidos que não lhe cabem mais no corpo, as sandálias de plataforma à la Carmen Miranda e a caixa de bijuterias vistosas. Sobre a cama de Maria Cheirosa e Lau, um cortinado de babados de renda cria um clima de romance. O amor não acaba? “Amor só se dá quando se recebe. Lau que se cuide”, avisa.

OUTRAS PUTAS

Uma história de amor. Assim podemos definir Memória de Minhas Putas Tristes, do escritor colombiano Gabriel García Márquez. O livro conta a história de um velho solitário que sempre pagou para ter sexo. Como não poderia deixar de ser, ele decide comemorar seus 90 anos no bordel. Só que, desta vez, escolhe uma adolescente virgem de 15 anos para passar a noite. Ao chegar ao quarto, o velho (cujo nome não é revelado) encontra a moça dormindo e, mesmo sem tocá-la, se apaixona por ela. Passa a vê-la com freqüência e, pela primeira vez na vida, descobre o que é amar.


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