Memórias encadernadas

No mês de outubro, o Museu da Pessoa lançou o livro Memórias de Brasileiros – uma história em todo canto, organizado e editado por José Santos, pela equipe do museu e pela Editora Peirópolis. O livro faz parte de um projeto do museu, que há dois anos, em comemoração aos 15 anos de existência, começou a pensar em algo que compilasse todos os relatos registrados até o momento. A edição traz cerca de cem dessas histórias – de um acervo de mais de dez mil, entre anônimos e pessoas conhecidas. Algumas são também frutos das três caravanas realizadas pela equipe de historiadores do museu, que, em busca de histórias dos confins do País, ouviram pessoas que vivem à beira do Velho Chico, entre a Bahia e Pernambuco, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e na região indígena de Maués, no Amazonas. Leia abaixo trechos de algumas histórias selecionadas pela Brasileiros. A íntegra está no acervo do museu ou no portal: www.museudapessoa.net.

YAGUARÉ YAMÃ

Yaguarê Yamã nasceu no dia 3 de outubro de 1973, na aldeia Yãbetué, no município de Nova Olinda do Norte (AM), região dos índios maraguás.
[nggallery id=15555]

“(…) Minha infância foi cheia de aventuras. O que mais a gente fazia era ir para a floresta e fazer nossas aventuras mirins. A gente saía, um monte de curuminzinho andando no mato, entrava na floresta e ia imaginando animais fantásticos, procurando o Reino da Cobra Grande (…) Eu comecei a estudar quando tinha uns 11 anos, lá em Parintins. Aquilo era um mundo novo para mim, foi uma coisa que me marcou. Por exemplo: aprender a ler foi uma coisa (…). E os livros? Quando aprendi a ler, eu comecei a gostar dos livros, toda hora eu estava lendo, querendo saber das coisas, aprendendo. (…) Em São Paulo, fiz faculdade de Geografia, que é outra experiência muito invocada. É difícil achar indígena na faculdade. (…) Já tinha iniciado a minha carreira de escritor e o lugar que eu mais gostava de freqüentar era a biblioteca (…). Mas eu me sentia muito sozinho, andava muitas vezes sozinho por aí porque não tinha o que fazer. Um dia alguém disse assim: “Olha, eu instalei internet para ti!” (…) Achava estranho esse negócio de conversar com as pessoas sem saber quem é (…) Aí veio uma pessoa chamada Renata conversar comigo, e a gente teve a idéia de trocar o telefone. (…) Aí fomos conversando, e a gente teve coragem de se conhecer pessoalmente, combinamos de nos encontrarmos lá no Metrô Anhangabaú. Nossa, como eu estava nervoso para conhecê-la. Passados uns três dias, ela disse que estava disposta a namorar comigo. Acabamos casando! E um dia eu perguntei para ela se ela gostava realmente de floresta, de mato, essas coisas. Ela disse que gostava, então tá bom: “Você está pronta para ir?” Prontamente ela aceitou e foi embora comigo. Voltei pra minha terra.”

THEREZINHA

Therezinha de Jesus Jansen Pereira nasceu em 15 de dezembro de 1928, em São Luís do Maranhão.

“A minha mãe era maravilhosa, uma rainha. Ainda hoje os passos dela me prendem. Às vezes, ela estava com os olhos lacrimejando. E dizia que estava pedindo a Ele por mim, pois tinha medo de que eu não fosse, na vida, tão feliz como ela. O espírito de uma verdadeira mãe. Prometi a ela que se aquilo a preocupava, eu nunca me casaria. E nunca me casei. Não tenho frustração, fico feliz de ter feito a vontade dela.(…) Hoje, a cultura do Maranhão faz parte da minha vida, adoro o convívio com as pessoas humildes, simples. Pessoas que passam o mês inteiro sem trabalhar. Um é auxiliar de pintor, o outro é pedreiro. Só profissão miudinha assim. Mas quando a pessoa parte para fazer aquilo que abraçou, que é ser um cantador de boi, brota a força de Deus, porque Ele é quem ensina (…)”

PAULO FREIRE, EDUCADOR

Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, em Recife (PE). Um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. Faleceu em 2 de maio de 1997.

“Minha escolaridade foi tardia. Entrei no primeiro ano ginasial com 16 anos de idade, exatamente quando colegas meus estavam entrando na faculdade. Estudei lá no Oswaldo Cruz, em Pernambuco, do então segundo ano do ginásio até o último ano do curso chamado pré-jurídico. Terminei fazendo o curso de Direito. Nunca mais parei de gostar de estudar. Mas o gosto não era pela advocacia (…)”

BAUER, JOGADOR DE FUTEBOL

José Carlos Bauer nasceu em 21 de novembro de 1925, em São Paulo (SP). Foi jogador do São Paulo, do Botafogo e da seleção brasileira. Faleceu em 2007.

Semifinal da copa de 50, Brasil 6 x 1 Espanha: “Se a Espanha ganhasse ou empatasse o jogo, estariam falando até hoje, como se fala da nossa derrota para o Uruguai, mas foi um jogo em que a cada gol do Brasil, agora não sei precisar quando foi, se foi no quarto, quinto, sexto gol, várias pessoas começaram a cantar “Touradas de Madri”: “Eu fui às touradas de Madri, pararatimbum, bum, bum, pararatimbum, bum, bum.” Era muito ruído, todo mundo cantando; isso eu nunca vi, jogador mais nenhum viu.”

MARICOTA

Maria Fragoso Borges nasceu em 4 de abril de 1920, em Belo Horizonte (MG). Mãe dos músicos Marilton, Márcio, Telo e Lô Borges. Faleceu em 2006.

“Eu era doida para ter filho, mas demorou cinco anos e, um belo dia, fiquei grávida. Fiz um trato com Nosso Senhor. “Se eu tiver um filho, vou ter quantos o Senhor quiser. Não vou evitar, não vou fazer nada.” Tive 12 porque Ele mandou 12. (…) Minha família toda gostava de tocar e de fazer barulho. A “esquina” começou depois que voltamos do Edifício Levy para a casa onde já havíamos morado, na Rua Divinópolis. E eles iam para a esquina, ficavam tocando violão até tarde. As meninas eles não deixavam ir, porque falavam muita bobagem. Os vizinhos tinham ódio deles. Chamavam a polícia. O (nome) Clube da Esquina fui eu que inventei.(…)”

DONA IZABEL, A BONEQUEIRA

Izabel Mendes da Cunha nasceu no dia 3 de agosto de 1924, na zona rural de Porto Volantes, atual distrito de Santana do Araçuaí (MG)

“Meu pai trabalhava fazendo roça e a minha mãe, fazendo panela e pote, mexendo com o mesmo barro que a gente hoje mexe. Ela fazia essas peças: panela e pote e prato, essas coisas pra vender pros vizinhos de lá da roça, e também fazia pra gente usar em casa mesmo(…). E eu tinha muita vontade de brincar com boneca. Vivia falando em boneca, mas eu não sabia como é que era. Nesse tempo não tinha essas bonecas que hoje em dia tem, de plástico, de louça, ninguém ouvia falar nisso. Eu pegava sabugo de milho que meu pai havia colhido e debulhado pra dar à criação, guardava aqueles sabugos, enrolava um pedacinho, retalhinho de pano na cintura e falava que era boneca. (…) Aquele barro era difícil de achar onde a gente morava. E a minha mãe brigava quando a gente ia apanhar um bolinho pra fazer um brinquedo. Mas quando ela ia almoçar ou fumar um cigarro, eu pegava um bolinho de barro e escondia. (…) Fazia aquelas bonequinhas, pequenininhas. Ai, me enchia tanto de gosto ter aquilo pra mim! Eu nem tinha mais sono pra ir dormir de noite. Tinha uma vontade do dia amanhecer logo pra cuidar das minhas bonequinhas. (…) Eu mesma que fazia a idéia, criava a imaginação pras minhas peças. Pegava o barro e pensava em fazer alguma coisa, a peça de um jeito, e fazia. (…) Então eu falava: ‘A senhora me ensinou a mexer com o barro, agora essas peças foi Deus que me ensinou.’ (…) Eu ensinei para muitas pessoas que eu não conheço e que agora sabem esse trabalho. (…) Tem hora que eu faço elas alegres, sorrindo. Tem hora que eu faço outras sérias, bem sérias. Eu faço outras com raiva, com raiva mesmo… Tudo eu faço. (…) Agora eu estou cansada e custa muito fazer uma peça. E tem hora que eu falo que eu vou parar de fazer, que eu já trabalhei demais, que eu cansei. Mas dá vontade de continuar mexendo com o barro…”


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.