Memórias + ficção = romance

Interior do Ceará, década de 1970. Um garoto acompanha o pai, dono de um limpa fossas, em suas jornadas diárias de trabalho. É na boleia do caminhão que o menino aprende não só o seu primeiro trabalho, mas muitas lições de vida. Essa poderia ser uma das maneiras de resumir Big Jato, romance recém-publicado do escritor e jornalista Xico Sá. Mas escrever apenas isso sobre um livro tão bonito seria, no mínimo, uma injustiça.

Em Big Jato, Xico Sá mescla com ficção as memórias de sua infância passada no Crato, interior do Ceará, onde nasceu. Na rápida introdução que faz, intitulada Breve e Perfumado Prólogo, o autor escreve: “Tudo isso, porém, aconteceu, mais ou menos, no vale do Cariri na primeira metade dos anos 1970. Tudo isso estava muito guardado. Agora emerge por força superior. Se um homem não conta, é um homem morto”.

As lembranças dão corpo a um belo e peculiar romance de formação, em que o leitor acompanha as venturas e desventuras do protagonista e principal narrador do livro nos momentos mais marcantes da infância até a adolescência. O autor conta, entre outros episódios, como foi perder a virgindade numa época em que os pais levavam os filhos para serem iniciados sexualmente com prostitutas, a convivência muitas vezes conflituosa com os irmãos e a primeira – e não correspondida – paixão. Mas o ponto mais forte da narrativa talvez seja o preconceito que existe, até mesmo dentro da própria casa, com a atividade exercida pelo pai, a de limpar a “sujeira” feita pelos habitantes da pequena Peixe de Pedra, cidade que provavelmente corresponde à atual – e real – Santana do Cariri.

Os irmãos e a mãe se envergonham do Big Jato, nome estampado no caminhão limpa fossa. Os colegas da escola dizem que tudo o que a família tem “vem da merda”. Mas, para o protagonista, o trabalho do pai não é motivo de vergonha. Ao contrário, ele sente orgulho do pai ganhar a vida “com aquilo de que a humanidade mais tem nojo e despreza” – nas palavras de um tio beatlemaníaco, que assume a voz narrativa em alguns trechos do livro. O protagonista até pensa em seguir a atividade do pai, algo que a mãe tenta evitar a todo custo. E, apesar de sua vontade em continuar com o Big Jato, as circunstâncias fazem com que o garoto tome outro rumo.

A beleza de Big Jato vem justamente de contradições. O fato de o pai do narrador – quase sempre chamado de “o velho” – ser um homem sisudo, que só fica de bom humor quando bebe, e a bonita relação entre pai e filho ser marcada pelas conversas escatológicas entre eles são dois exemplos dos paradoxos criados pelo autor.

Mais conhecido pelas crônicas publicadas em diversos jornais brasileiros, pelo blog no portal da Folha de S. Paulo e por participações em programas de TV, como Saia Justa (GNT) e Amor e Sexo (Globo), Xico Sá traz novamente (e desta vez com maior destaque) sua faceta de ficcionista – seu primeiro romance Caballeros Solitários Rumo ao Sol Poente (Editora do Bispo), foi publicado em 2007.


Comentários

Uma resposta para “Memórias + ficção = romance”

  1. […] Publicada na revista Brasileiros (novembro de 2012). […]

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