Quando Lygia Fagundes Telles entra no salão clean da Cinemateca de São Paulo, penso imediatamente:
“Lá está a maior escritora brasileira viva.”
Não a conheço pessoalmente, mas há um laço entre nós. Me aproximo: “Fui aluno do Paulo Emílio Sales Gomes. Me lembro dele dando aula com dois cigarros ao mesmo tempo, um em cada mão, um Charm e um Minister.” “Um dia”, comenta Lygia, “ele chegou em casa e anunciou: ‘parei de fumar’. Passou o resto do dia num mau humor terrível. Falei pra ele: volta a fumar!” Ela me apresenta a jovem na qual se ampara, bem mais alta que ela.”Minha neta. Filha do Gofredinho.” “Prazer. Fui muito amigo do Gofredinho numa certa época. Dê lembranças a ele, pergunte se ele se lembra de mim.” “Ele morreu há dois anos”, corta ela. Eu fico boquiaberto, mais ou menos como aquele cara que estende a mão e não é correspondido.
“Quem é ela, você conhece?”, Lygia aponta uma senhora numa cadeira de rodas ao lado do caixão do Rudá. É estranho falar assim “caixão do Rudá” quando o tal Rudá é um cara com quem você bebeu, riu, se divertiu, tirou sarro e do qual ouviu coisas como: “Ó, quando eu morrer, não vão me enterrar na Consolação, hein! Não quero passar a eternidade ao lado de más companhias.” Quando Rudá nasceu, Oswald já tinha bebido, cheirado, fumado, queimado toda a herança do pai, dono de uma gleba no melhor pedaço da cidade de São Paulo, um imenso retângulo que ia da Brigadeiro à Teodoro Sampaio e da Paulista até a Brasil. Rudá jamais se conformou em ter nascido pobre numa família que tinha sido muito, muito rica. O último pedaço do bolo Oswald tentou vender ao velho Klabin, o fundador do clã. Passar a perna no cara que chegou ao País com 20 quilos de tabaco e papel de cigarro e se tornou o rei do papel não era fácil nem para alguém com a lábia do Oswald. O terreno era uma ribanceira. “Não sei quem é, mas há na família uma senhora muito idosa, de quase ou mais de 100 anos, se não me engano chamada Julieta, mas não tenho certeza se é ela.” Passa na nossa frente a senhora da cadeira de rodas, empurrada por outra mulher, mais jovem, esportiva. “Eu sou praticamente a irmã do Rudá”, diz a acompanhante. “Quem criou o Rudá foi a minha mãe, casada com o irmão dele , o Nonê, filho de Oswald com Kamia. É esta senhora. Ela tem 102 anos.” Adelaide. Adelaide está lá, mas é como se não estivesse. Ela vê tudo, em silêncio.Rudá, 16 anos mais novo que Nonê, teve uma infância difícil, continua a mulher. Conheceu a mãe, Pagu, aos 11 anos. “Oswald sempre dizia que as crianças tinham de aprender fora de casa. Um dia fomos a uma palestra do Oswald na Biblioteca Mário de Andrade. Depois da exposição, começou a sessão de perguntas.” Quem mais perguntava era uma jovem senhora, de porte delgado. Intrigado, o pequeno Rudá perguntou ao pai quem era ela. “É a tua mãe!”, respondeu Oswald, de chofre. Era Pagu, conta a filha do irmão de Rudá. Ela sabia que o Rudá estava lá, mas não quis se aproximar dele, o que Oswald comunicou ao filho. “Você quer ver a sua mãe?” “Não. Se ela não quer me ver, também não quero vê-la.” Lygia cita pessoas da família Andrade ou próximas e vem à baila Geraldo Galvão Ferraz, também filho de Pagu, com outro homem. Rudá e Geraldo nunca se entenderam, diz a quase-irmã. “Um dia, o Geraldo entrou na casa do Rudá e tirou da parede o quadro que Portinari fez da Pagu por encomenda do Oswald, e que ela tinha dado a Rudá. O Geraldo doou o quadro a um museu, só para não ficar com Rudá. E Rudá nunca o perdoou por isso, dizia que ele roubou o quadro.” “Família difícil”, pondera Lygia.
Aloysio Raulino, meu colega da Escola de Comunicações e Artes, fundada por Rudá, autor do milagre de criaruma escola de cineastas de esquerda com a grana de um governo de direita, não se conforma com a ausência de muitos ex-alunos e cineastas. “Eles têm que chegar, isso não vai ficar assim!”, exclama ele, num quase desafio. Cineasta, pelo visto, não acorda cedo. Estamos por volta de meio-dia.Vivemos, ao lado de Rudá, muitas emoções. Eu, o Aloysio, o Roman, Plácido, Walter Rogério e os professores Roberto Santos, Rudá, Capovilla, João Batista de Andrade éramos inseparáveis. Era batata. Toda tarde era assim. Acabavam as aulas, mecanicamente nos transportávamos até um boteco meia boca na entrada da Cidade Universitária. Às moscas. Os únicos fregueses éramos nós. Embalados por inúmeras bagaceiras, chopes, cachaças, conhaques, amaciados por linguicinhas fritas, torresmos, tremoços, íamos até as seis da tarde quebrando o pau sobre plano longo, plano curto, se Glauber é genial ou não, se o cinema americano é covarde. Por volta das seis, cada um de nós tomava o seu rumo. Pra casa, tomar banho, trocar de roupa, porque, lá pelas nove, tínhamos novo compromisso, desta vez Winduck, o preferido do Rudá para arrematar os papos da tarde. No cardápio, mais Glauber, Pasolini, Godard. Ou declarações de apoio, confissões, desmentidos, choros, tudo aquilo que um grupo de bebuns – com todo o respeito, já que eu era um deles – é capaz de fazer de ridículo em torno de uma mesa. Às vezes, Aloysio e Roman vinham com suas namoradas. A do Roman eu conhecia melhor, uma polonesa com a qual começou a namorar no Colégio de Aplicação, onde era meu melhor amigo. A bela Halina. As tertúlias rompiam a madrugada, todos saíam trêbados, trocando pernas, menos Rudá. Podem acusá-lo de tudo, menos de beber mal. Ele tinha o talento de emborcar um litro de vodca e logo a seguir manter uma reunião de alto nível com algum ministro dentro da seriedade e dos salamaleques exigidos. Numa dessas noitadas, ele nos revelou com que nome seu pai queria batizá-lo de verdade: Rodo Metálico da Rhodia. A marca do lança-perfume favorito de Oswald. Nonê, cuja mãe, durante a gravidez, caíra de uma escada, ganhou de Oswald o nome de Rolando Escada Abaixo. É claro que contou o fato às gargalhadas, pontuando tudo com vários underbergs e muitas anedotas de triplo sentido.
O Rudá foi o gênio que conseguiu arrancar grana dos milicos, nos anos 1960, para abrir uma escola de cinema onde empregou uma porção de cineastas inimigos do regime, é claro.Também é o gênio maluco que, certa vez, durante a filmagem de um documentário em Embu, cismou de fazer o percurso do hotel à locação – uns dez quilômetros – dirigindo um jipe, com mais quatro pessoas dentro – eu entre elas. Ele fazia umas coisas assim, mas passava logo. Éramos um grupo unido. Mas os mais amigos eram Rudá e Roman. Os mais boêmios. Os melhores de copo. Os mais cultos. E os que defendiam com mais convicção suas posições cinematográficas. Roman apresentou a Rudá a família de sua namorada e depois mulher, Halina, que tinha (e tem) uma linda irmã de 18 anos. Ele estava o quê? Quase nos 40. Rudá se encantou por ela, ela correspondeu, em pouco tempo estavam no mesmo barco.
Quem me abre os braços agora, a uns três metros, é uma mulher de preto e de cabelos pretos. Olho em sua direção, ela exclama: “Ele nem se lembra mais de mim.” Me lembro, sim: é Halina. Nos abraçamos. “Pois é, a vida é assim”, começa ela. A primeira coisa em que pensei, pelo histórico do Rudá, foi cirrose. “Não, o fígado dele estava perfeito” diz Halina, a viúva. Mas teve copo na história. Ele quebrou o fêmur depois de cair em casa, tropeçando nos próprios pés. Foi operado, se recuperava bem quando teve uma recaída repentina, o coração parou. “Nessa hora me expulsaram do quarto”, conta Halina, “vieram aplicar massagens no peito”.
Você não entendeu errado. Halina acabou por ser a viúva do ex-marido de sua irmã e melhor amigo de seu ex-marido. Podia ser enredo de um romance do Oswald, mas foi o que sucedeu na vida real.
A versão de Aloysio Raulino é outra: “Rudá cansou”. “Rudá se entregou.” Tinha voltado a beber demais, por andar deprimido. “Ele desistiu”, define Raulino, lacônico.
Sergio Bianchi, quase dois metros de altura, cara de personagem de Dostoiévski, confessa sua covardia: “Não aguento ver cara de morto.” “Eu vi”, digo a ele. “Eu vi.” Despeço-me de Lygia com um beijo e um agradecimento: “Obrigado por todos os livros que você escreveu, mas principalmente por As Meninas.” “Eu dediquei o livro ao Paulo Emílio. Quando eu lhe comuniquei que eu faria isso, ele exclamou: ‘e para quem mais poderia ser?!’”
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