Se há algo que almejamos como crianças é espiar, poder saber o que acontece no quarto de portas fechadas onde nossos pais deitam juntos. Entrar no quarto dos outros satisfaz uma curiosidade, geralmente não admitida: o que fazem os outros e como satisfazem seus desejos sexuais. Freud nos diz que a origem do desejo de saber vem dessa curiosidade. Sobre ela se constitui a própria ciência. Essa seria uma das razões que explicaria o sucesso de programas como Big Brother. Abrimos as portas do quarto através da tela e espiamos como supostamente se é feliz. Não há inocência nas nossas leituras e nas nossas torcidas, todos acompanhamos os detalhes, tomamos partido, nos opomos ou nos identificamos.
O que não sabemos – nem os jornalistas que exibem, nem o público que é voyeur (que gosta de olhar) – é que esse desejo de descobrir os detalhes do suposto encontro de Ronaldo com travestis é guiado por nosso próprio desejo inconsciente de pesquisar nossa sexualidade e nossas fantasias mais proibidas. Ver o que acontece com o outro possibilita a distância necessária e confortável para poder olhar, em última instância, para nós mesmos. Parece escandaloso conceber a idéia de que isso nos é tão próximo, mas é tão escandaloso como a descoberta que Freud fez no começo do século XX: que as crianças se interessam desde pequenas pela sexualidade e que existe uma sexualidade infantil que será propulsora da constituição do indivíduo. Se não fosse assim, por que haveria tanta gente condenando, torcendo, julgando, opinando sobre a vida de um jogador de futebol cujo espetáculo é o jogo, a destreza com a bola, e não a forma como satisfaz sua libido?
Se por um lado se nega a coragem de Ronaldo de se expor para não ser extorquido, por outro ele é condenado pelo preconceito de que sua identidade sexual seria duvidosa. Sabia ou não sabia que eram travestis? E qual seria a diferença? Que importância teria? Ronaldo estaria atrás de uma experiência de prazer, de uma fantasia cuja realização é condenada pela sociedade. De um desejo que, se existe, não pode ser falado. Quantos têm essas fantasias ou as realizam na intimidade do quarto? Quem os julga por isso? Do ponto de vista das fantasias ou experiências sexuais, o único julgamento ou proibição que cabe é ético. Ninguém pode se apropriar de outro corpo se aproveitando do poder ou cometendo abusos. A pedofilia é condenada.
Entendo que nessa história sexual todos eram adultos e cientes de que estavam à procura do prazer. Ronaldo não atuou como um exibicionista, ele foi flagrado e exposto na sua privacidade. Mesmo as contratadas (travestis) encontram alguma satisfação em entregar seu corpo. Pode até ser uma satisfação masoquista que se transforma em sadismo na hora em que passam de submetidos a submetedores. De amos a escravos, de denunciados a denunciantes. Elas dão conta também de um outro elemento que aparece como fonte de prazer: a descoberta do que não se sabe, o encontro com o escondido. O fator surpresa. Parece uma coisa (uma mulher) e de repente aparece outra (um homem).
O que surpreende produz uma excitação a mais. Esse sentimento é o que está por trás de um presente, por exemplo, que se embrulha, se oculta para ser aberto e descoberto. Essa é uma das razões pelas quais o travesti não se opera, não se emascula. Castrando-se acabaria com parte da brincadeira. Menos hipocrisia! Não há uma fantasia carnavalesca que se expressa no desejo dos homens de se fantasiarem de mulher? Por que o Carnaval legaliza (autoriza a mostrar) o desejo? Não há por trás dessa fantasia um desejo infantil que corresponde ao da mulher completa? Numa fase da vida a criança pensa que pode ter tudo o que dá prazer. O homem com peitos ou a mulher com falo representam essa idéia de que se pode ter tudo. Na figura da mãe poderosa imaginamos uma mulher fálica.
Uma famosa psicanalista inglesa, Melanie Klein, especializada em psicanálise da criança, falava de um primeiro estágio em que a criança representa a mãe como uma figura combinada. Se essas fantasias ronaldianas correspondem a aspectos inconscientes de sua sexualidade infantil, a ninguém cabe julgar. Se o incomodam, se são um sintoma, se empobrecem sua vida, se ele tem prazer com isso ou não é da ordem da sua intimidade. Seria melhor que cada um de nós se ocupasse de sua própria sexualidade ou que assumisse que tem prazer espiando a de Ronaldo. Em última instância, podemos encontrar ou não o modo de sermos felizes sem usufruir do desejo dos outros. Voyeurismo não é pecado, e sim uma forma de sexualidade, mas seria bom que o assumíssemos. Freud é um pensador que nos mostrou que podemos criar tantos referenciais para os termos sexo e sexualidade quanto nos permitirem o desejo e a imaginação ou, para dizer mais, quanto nos permitir a linguagem.
Episódio pitorescoNando Reis**, em sua coluna boleiros, no estadão (8/5/2008) E eles que gostam de ser elas foram à delegacia para contar nova versão sobre o episódio controverso e obscuro. Segundo o delegado, agora as peças se encaixaram. Faz alguma diferença? Nenhuma. Os jornais já fizeram a festa, as revistas de fofoca alimentaram a sede dos abutres por mais de uma semana, os sites de piada encontraram material para se lambuzar. A única pessoa a quem Ronaldo deveria prestar algum esclarecimento e pedir desculpas pelo que fez naquela noite é a sua namorada. E ponto. O resto, ou seja, ao mundo, aos torcedores, à Nike, à Tim, ao Unicef, ele não tem por que se justificar. Sua tarefa enquanto jogador de futebol é cuidar de sua recuperação e voltar à forma física, para que esteja apto a fazer gols assim que retornar aos campos. A única coisa que interessa é o que ele faz dentro das quatro linhas e não com quem ele se encontra entre quatro paredes. Essa estúpida indústria que cria personalidades que se julgam celebridades e enfeitam os sonhos dourados daqueles que vêem a vida como assistem a telenovelas sempre serviu para estampar preconceitos travestidos de valores sociais. Ser magro é ser saudável, ser loiro é ser belo, ser rico é ser capaz. Homens viris podem se servir de prostitutas, contanto que suas esposas fiquem alheias ao fato. Mulheres que fazem o mesmo são desonestas e merecem o paredão e o apedrejamento. Só nos homens crescem os chifres, mas as mulheres livres são vistas como vacas. A hipocrisia é a alma e a arma do negócio. Sinto um certo enjôo quando vejo toda a essa encenação farsesca que pretende colorir o mundo com as cores suaves da inocência. Até mesmo o nosso presidente se coloca como modelo de retidão quando desvia os olhos da sujeira que está em cima do tapete. Não há mais a necessidade de vassouras, basta um par de óculos escuros. O colírio esquenta nas farmácias – olhos vermelhos, mesmo que tenham chorado lágrimas de crocodilo, são bem aceitos. Chorar pela dor dos outros pega bem. A noção de que as pessoas ficam mais puras se levam uma vida regrada e longe das tentações é uma forma de dizer que se sabe o que há por dentro de um indivíduo quando se mede o que ele faz por fora. Novas formas de policiamento vão entrando em vigor. A bola de cristal que vislumbra o caráter obedece a códigos estreitos que regulam o comportamento. Para medir status, basta identificar a etiqueta de uma boa marca. Mas tudo já foi diferente. Gerson fazia campanha de uma marca de cigarro não apenas porque era fumante. Mas sobretudo porque ele era um tremendo craque. Sócrates, que nunca fez propaganda, não aceita privilégios para fumar dentro dos camarotes. Corre pro ar livre e acende o seu tabaco. Mas, para o atual estereótipo medíocre do homem “do bem”, o tabagista é uma ameaça ecológica. Conheço bem o que é o lado horroroso de ser uma pessoa pública. Ter sua vida invadida e vasculhada simplesmente porque sua profissão atrai a atenção coletiva e desperta fantasias cobra um preço alto e nefasto. Há inúmeras formas de extorsão. E outras tantas de excesso e abuso. É um jogo melindroso e de tênue equilíbrio. Não existe nada mais odiável do que ouvir de alguém, em tom de cobrança, a frase-clichê: “Quem mandou ser famoso?”. Acho lamentável que a qualidade profissional de Ronaldo seja colocada em xeque por conta desse episódio pitoresco. Li numa revista matéria que, em vez de reportar o fato, fazia condenação moral, utilizando como parâmetro para seu julgamento dois ícones – Pelé e Maradona. Nada mais irônico. Até mesmo quando é atacado, Ronaldo está cercado por gigantes. |
* Ana Sigal é psicanalista ** Nando Reis é músico
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