Mercado Cultural: uma festa de cores, sotaques e utopias

Sonoridades distintas, culturas diversas e um desafio arriscado: ir para o meio do nada ao encontro do inesperado. Foram esses os principais ingredientes no caldeirão da décima edição do Mercado Cultural.

O começo da viagem foi no último dia 26 de novembro em Salvador, de onde partiu uma caravana insólita. Em vários ônibus, carregados com instrumentos de todos os tipos, o grupo formado por artistas nacionais e estrangeiros embarcou rumo ao interior baiano.
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No roteiro, apresentações artísticas de alta qualidade e encontros inusitados. “Queremos sair do centro e ir às periferias da Bahia, fazer algo como plantar no deserto”, diz Ruy Cezar, diretor do Mercado Cultural. O resultado foi uma grande festa, composta por diferentes cores, sotaques e utopias.

A primeira parada foi em Ibirataia, pequena cidade com aproximadamente 25 mil habitantes, localizada a mais de 300 km de Salvador, ao sul da Bahia, na região do Médio Rio das Contas. Após cinco horas de estrada, a trupe chegou ao município para três dias de atrações e muita festa. “Estou me sentindo uma circense”, diz a sambista Juliana Ribeiro.

Sem hotéis na região, o jeito foi se instalar na casa dos moradores que gentilmente abriram as portas de suas casas. Chamada acolhida comunitária, a estadia singular faz parte da utopia dos organizadores do Mercado Cultural. “É uma maneira de valorizar a participação das comunidades por onde passamos”, diz Cezar. Outro propósito é estimular o desenvolvimento local nessas regiões.

Em Ibirataia também não há cinema, teatro ou mesmo banca de jornal. O que não falta por lá é esperança. “Meu sonho é ser atriz”, afirma de queixo erguido a jovem estudante Bia Santos, de 17 anos, que nunca assistiu a uma peça teatral. São pessoas como ela que o evento pretende alcançar.

O olhar visionário está na essência do Mercado Cultural. O tema desta edição, Utopias para um Futuro Presente, busca ressaltar esse propósito central do evento. “Com essa caravana, vamos construindo uma agenda de cultura em regiões de extrema carência, lugares onde isso parecia ser algo impossível”, acrescenta Cezar.

A utopia da juventude de Ibirataia certamente é a prometida casa de cultura, para abrigar talentos locais. Segundo o prefeito Jorge Abdon, a área para a casa já está disponível, faltam chegar os recursos para construção que deve começar em março. “Nossa intenção é que ainda em 2011 esteja pronta”, afirma.

A população conferiu os shows na principal praça da cidade – se não me engano, são duas no total. Impossível não reparar o olhar atônito do público diante de atrações como a do grupo coreano Noreum Machi. Uma mistura exótica de percussão, cantos ancestrais de xamanismo e performances acrobáticas cheias de ritmo.

Até o público mais jovem, acostumado a dançar ao som do arrocha e arroché – ritmos bem populares na região – se rendeu a outras sonoridades, como a do grupo espanhol Coetus, orquestra de percussão ibérica.

Quinze músicos se revezavam nas dezenas de instrumentos. Nos vocais, Eliseo Parra, importante defensor da música folclórica espanhola, ao lado da bela Silvia Perez, nome badalado na atual cena musical de Barcelona, que arrancou aplausos emocionados em sua rápida passagem pelo Brasil.

Depois de tocar, o grupo espanhol circulava pela praça, bebendo, comendo e dançando no ritmo local, o arrocha. Entre as atrações, teve também sanfona, repente, fanfarra. E na pacata Ibirataia, o Mercado Cultural se estende um pouco mais na exposição Ibirataia, no Espelho da Mata, aberta ao público até o final de janeiro.

Entre as instalações, caleidoscópios com TVs projetando imagens da cidade, objetos antigos doados por moradores, como ferro de passar roupa movido à brasa e ainda uma amostra da variação de termos e vocábulos da região, em espiral no painel Parede de Palavras. A partir de fevereiro, a exposição segue pelas cidades do Médio Rio das Contas.

Depois de Ibirataia, a caravana de artistas voltou à estrada rumo a Dário Meira, a cerca de 400 km da capital baiana, um dos piores IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do País e uma das passagens mais marcantes da viagem.

O destino era o Terreiro da Dona Dete, casa do tradicional samba de caboclo – uma vertente do candomblé. Nesse trecho do percurso, em lugar do ônibus um legítimo pau de arara levou os artistas e a equipe de produção. O trecho barrento era iluminado apenas por algumas poucas lâmpadas.

Quem abriu o ritual da Dona Dete foi o Terno de Reis do Lagoão, grupo de músicos de um vilarejo próximo. Depois da batucada, com os pés cheios de lama, a viagem seguiu para Valentim, Vitória da Conquista e Boa Nova.

Em seguida, de 1 a 5 de dezembro, foi a vez de Salvador. O 10o Mercado Cultural tomou conta da cidade com atrações internacionais, como Carmem Souza, de Cabo Verde – que vive atualmente em Londres.

Entre os brasileiros, Egberto Gismonti e Tulipa Ruiz foram destaques. Baiana System, Retrofoguetes e Alisson Meneses e a Catrupia também agitaram a capital baiana que, aliás, precisou fôlego para acompanhar tudo. Em quatro dias, foram mais de 20 atrações.

O evento teve ainda um espaço para debates e troca de ideias no seminário Música em Rede. Na pauta, a realidade de mercados culturais e feiras de música no Brasil, cenário internacional e a relação entre realidades locais e novas formas de difusão, circulação e produção cultural no mundo.

A primeira edição do Mercado Cultural foi realizada em 1999, mas a inspiração surgiu bem antes, em 1991, quando Ruy Cezar participava de uma rede de intercâmbio cultural, composta por cinco países da América Latina. “Éramos um bando hippie e sonhador que almejava fazer circular uma produção cultural desconhecida”, diz. Mesmo sem a internet como suporte, a rede chegou em poucos anos a todos os países latino-americanos e ao Caribe. Ganhou destaque no cenário internacional e estabeleceu diálogos com outras redes similares na Europa, Ásia e nos EUA. Com financiamentos e cooperação estrangeira, cresceu. Foi quando surgiu a ideia de fazer o Mercado Cultural. A circulação de produtores estrangeiros faz do festival hoje uma plataforma de exposição e exportação da cultura brasileira.

“E o futuro da caravana?”, pergunto. “Não sabemos onde isso vai dar”, responde Ruy Cezar. “A intenção” – prossegue – “é entregar a eles a responsabilidade por seus sonhos. É preciso mostrar a eles que a solução não virá de fora.”

Carlos Minuano viajou a convite da organização do Mercado Cultural

» Leia matéria de encerramento do Mercado Cultural


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