Merde, feche essa janela!

Anoiteceu e faz frio. “Merde! voilà l’hiver” é o verso que segundo Xenofonte cabe dizer agora. Aprendi com ele que palavrão em boca de mulher é como lesma em corola de rosa. Sou mulher, logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poema…”

Xenofonte é o professor de filosofia e namorado de Luisiana, e eles são personagens de Apenas um Saxofone, um dos 18 contos do livro de Lygia Fagundes Telles, Antes do Baile Verde. Uma história de amor, com uma característica universal, que poderia se passar em qualquer lugar do mundo, inclusive em Paris.

Bem diferente do trecho a seguir:

“-Fecha essa janela, sua besta! – gritou meu irmão tomado de fúria.

Foi no pedaço do filme em que a mocinha encacheada, depois de vestir a camisola esvoaçante, abriu a janela do balcão dando para a noite. Noite de lua cheia servindo de pano de fundo para o morcego que veio crescendo no seu voo de veludo, entrou pela janela e já virou o homem com roupa de ópera.

– Mas é mesmo uma besta essa daí! – resmungou meu irmão dando um forte pontapé na cadeira da frente que estava vazia.

La na tela, a mocinha gemente mas muda (cinema mudo) revirava-se no leito, os olhos revirados, as mãos reviradas arrancando do pescoço a corrente com a cruz e mais a trança de alho virgem da cabeceira e jogando tudo longe. Sacudiu a cabeça com os cachos emaranhados, abriu a boca e o grito logo apareceu na legenda em meio da moldura rendada em preto e branco: Não! Oh! não…

– O que foi que ela disse? – perguntou a Matilde me cutucando.

– Ela disse não! – respondi sem tirar os olhos da tela.

Algumas fileiras adiante da nossa abria-se na pequena sala o poço onde dona Guiomar martelava no piano, alertando para o perigo no exato momento em que o visitante lustroso já se aproximava sem ruído da mocinha de respiração curta: Boa noite!

– E agora? O que ele disse? – perguntou Matilde, a mão gelada apertando meu braço.

Matilde era nossa agregada parda e analfabeta, de idade meio avançada. Segundo minha mãe, logo ela ia ensinar Matilde a ler…”

Já essa história só poderia se passar em alguma cidade do interior do Brasil, em algum cinema de Olímpia, de BeBedouro, de Sertãozinho, por exemplo. Matilde é personagem de Cinema Gato Preto, que faz parte do livro Invenção e Memória e, como Apenas um Saxofone, pode-se dizer que é pecado não ler.

Lygia, que tem o dom de descrever seus personagens com muito humor e inteligência, agora muda de casa.

A Companhia das Letras reedita suas obras completas e elas vêm de roupa nova, com detalhes de pinturas de Beatriz Milhazes.

Lygia Fagundes Telles é hoje um patrimônio, uma senhora das letras, um clássico da literatura brasileira e todo seu humor, charme e inteligência estão presentes na longa entrevista que ela concedeu a Alex Solnik, editor especial da Brasileiros. Aproveite.


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